Caríssimos irmãos
Escutámos o Evangelho de São João e podemos dizer que ficámos
com vertigens, meio perdidos no meio de tantas palavras, tantas recomendações,
de tantos conceitos, que na nossa formação e vida cristã sabemos que são
palavras fundamentais e incontornáveis: mandamentos, Espírito, verdade, amor.
É um trecho denso, compacto, o que a leitura do Evangelho nos
oferece hoje, e por isso dentro da nossa lógica e do nosso pensamento, numa
tentativa de sobrevivência, de nos mantermos à tona da corrente da água, procuramos
estabelecer uma hierarquia, uma sequência lógica. O que vem primeiro, o que é
mais importante, a partir de qual posso planificar as prioridades, tal como numa
dieta, como oriento o meu regime através da pirâmide alimentar?
A incapacidade de estabelecer esta pirâmide hierárquica, que
me gera uma certa confusão e perplexidade, tem, no entanto, uma grande virtude,
poderíamos dizer uma estratégia pedagógica e funcional fundamentais; não
conseguimos distinguir o mais importante, hierarquizar os elementos, porque as
diversas realidades funcionam em rede, sustentam-se equitativamente.
Na iminência da separação parece que Jesus nos quis dizer
muitas coisas. Como uma mãe, atrasada para o trabalho, que sai porta fora e dá
instruções aos filhos que ficam em casa, da comida que ficou no forno, da roupa
que devem meter na máquina, de não se esquecerem de levar o cão a passear,
assim parece Jesus ao despedir-me dos discípulos. Contudo, Jesus não disse
muito, pelo contrário, agiu como uma mãe que diz confiante aos seus filhos, “meninos
está tudo aí, já sabem como é, orientem-se”. Ao sair porta fora, a instrução
que Jesus nos deixa é de observar os seus mandamentos, de amar e acolher o
Espírito da verdade, é uma instrução de uma tal simplicidade e redundância que
nos surpreende e desconcerta. O que é isto?
E as recomendações de Jesus não são mais que o cumprimento do
Evangelho, o culminar da sua missão, a abolição da religião como obediência
cega a leis indecifráveis e a instauração de uma obediência esclarecida, uma
obediência que é regida pelo amor e não pelo medo e o temor de se ser punido e
castigado. E temos de o assumir, é para todos nós muito mais fácil viver a
docilidade da submissão do que a liberdade do amor. Este tem muitos riscos.
E é devido a estes riscos, que o amor comporta, que Jesus nos
promete um defensor, o Paráclito, para nos apoiar e sustentar, para nos
defender, para nos iluminar, para que não nos equivoquemos no objecto e nos
frutos dos amor. Se o nosso amor for apenas palavras doces, piedosas,
convenientes, poderíamos dizer politicamente correcto, não teremos necessidade
nenhuma de qualquer apoio ou defensor, não correremos nenhum perigo; mas se o
nosso amor for verdadeiro, reflexo do amor de Deus, necessitamos intrinsecamente
do Espírito, do seu apoio, uma vez que o amor vai confrontar-se e chocar com o
mundo, com os seus valores e estratégias, com essa apetência do domínio e do
poder sobre o outro.
As recomendações de Jesus partem da sua experiência de amor
com o Pai, desse fluxo amoroso que circula entre ambos e oferece-o a todos
aqueles que o quiserem e procurarem amar, a todos os que procurarem amar os seus
irmãos reconhecendo neles a imagem e a presença de Deus, a habitação do Espírito
divino. No Evangelho amar é deixar-se conduzir pelo Espírito e deixar-se conduzir
pelo Espírito é amar a Deus e aos irmãos. E qualquer homem ou mulher conduzido
pelo Espírito da verdade, amando no Espírito e pelo espírito, realiza naturalmente
a observância dos mandamentos de Deus.
Como todos sabemos este ano tivemos uma Quaresma diferente, na
qual tivemos de jejuar de muitas das nossas rotinas com o isolamento social a
que fomos obrigados; também não pudemos celebrar a grande festa da Páscoa da
Ressurreição de Jesus e continuámos numa espécie de quaresma prolongada que se
mantém até ao presente. Contudo, dentro de duas semanas celebraremos o
Pentecostes, com o qual termina o tempo pascal e com o qual terminará também o
nosso tempo de jejum das celebrações comunitárias.
Temos duas semanas para nos prepararmos , para entrar no
nosso coração, olhar a nossa vida e tentar perceber o que Deus quer de nós, a
liberdade que nos oferece, essa circulação de vida que nos é oferecida, para
não voltarmos com medo, nem num espírito de servidão, mas profundamente
convictos que a fé, que a nossa fé reside na relação, numa teia de relações com
os outros e com Deus, e não num sistema de crenças.
As crenças desaparecem, mudam-se com os tempos, mas as
relações permanecem, mais fortes ou mais ténues, mas permanecem, porque o outro
deixa sempre uma marca em nós, uma marca indelével. E o outro que é Jesus Cristo,
deixou-nos uma marca que fortalecemos e alimentamos em cada domingo, fazendo
memória na comunidade reunida, celebrando o tempo presente como tempo da
eternidade.
Como nos diz a leitura da Carta de São Pedro, que saibamos
dar razões da nossa esperança, da nossa fé, da caridade que procuramos que nos
alimente, ao retomarmos a nossa vida sacramental e celebrativa nas nossas
comunidades. Que o nosso regresso seja sinal de uma vida nova que aprendemos a
viver e aspiramos viver melhor em união com Deus e com os nossos irmãos.
Ilustrações:
1 – Cristo do campo de trigo, de Thomas Francis Dicksee,
Christie’s London, 13 Dez 2012.
2 – Deixai vir a mim os pequeninos, Baixo Relevo em mármore,
de Ligier Richier, Biblioteca Nacional de França.
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