Queridos Irmãos
Estamos a iniciar a Quaresma, este
tempo especial de quarenta dias que nos vai ajudar a preparar o coração para
celebrar a Páscoa. Como certamente já todos experimentámos é um tempo breve,
passa rapidamente, e quando chegamos ao fim da Quaresma temos o sentimento que
naquele momento é que devíamos estar a começar. Por outro lado, este mesmo
tempo que passa rapidamente torna-se mais demorado, lento, se verdadeiramente
nos empenhamos em fazer algo diferente, quando esbarramos nas resistências do
que desejamos converter na nossa vida. É a relatividade do tempo.
Mas é neste tempo relativo que somos impelidos
ao deserto, a esta experiência de combate, de prova. E não podemos dizer que é
um convite que nos é feito por Deus ou pela Igreja, é uma realidade inerente ao
nosso próprio baptismo, realidade presente ao longo de toda a nossa vida, mas
que Deus e a Igreja nos convidam a tomar consciência com esta experiência
demarcada no ritmo do ano, com a caminhada da Quaresma.
Os relatos que escutamos nos
Evangelhos da passagem de Jesus pelo deserto seguem-se imediatamente ao
baptismo, é o Espírito que conduz Jesus ao deserto, poderíamos dizer que é uma consequência
imediata do seu baptismo. Mas surpreendentemente, este deserto a que Jesus é
conduzido, é um deserto bastante povoado, ali encontramos os animais selvagens,
os anjos de Deus, o próprio demónio que tenta Jesus. O relato de São Marcos que
hoje lemos é bastante lacónico na apresentação deste acontecimento, poderíamos
dizer que o deixa na privacidade e intimidade da vida de Jesus, mas não deixa
de apresentar a diversidade de presenças no deserto.
Esta diversidade de presenças no
deserto mostra-nos que o deserto não é um lugar de solidão, que não vamos ao
deserto para travar um combate solitário. As histórias dos Padres do deserto
mostram-nos como o deserto é bastante povoado. Ao imaginarmos a Quaresma como
um deserto, um tempo e espaço de combate, temos de assumir que também aqui não
estamos sós. Na Quaresma toda a igreja entra connosco no deserto, no combate,
cada um de nós acompanhado dos outros irmãos, dos anjos de Deus, da própria
natureza, do tentador.
Neste sentido, podemos perguntar-nos
desde já, com quem vamos fazer o combate desta Quaresma, quem vamos acompanhar ou
nos vai acompanhar, não esquecendo que à luz do que escutámos na primeira
leitura do Livro do Génesis, todas as criaturas que saíram da arca depois do
dilúvio estavam incluídas na Aliança de Deus, podemos dizer, estavam sob a sua
bênção. Vamos acolher os outros como bênção e ser bênção para eles nesta
Quaresma?
Este combate que vamos desenvolver na
Quaresma não pode ser visto como uma armadilha que Deus nos estende, para
aferir do nosso bom comportamento, da nossa boa vontade e disposição. Como sabemos
Deus não quer a morte do pecador, mas que ele viva, e viva dignamente. A prova
do deserto é como as provas fotográficas, como as provas das serigrafias, em
que se imprime uma vez para ver o que necessitamos ajustar em termos de cor, de
luz, que ponto vermelho do olho necessitamos retocar. A prova do deserto é para
ajustar o nosso olhar sobre nós próprios, é um acerto da focagem para a melhor
imagem que podemos captar de nós e dos outros.
No combate do deserto, na Quaresma e
igualmente no resto dos outros dias do ano, fazemos a experiência do confronto com
o que há de selvagem em nós, essas forças tantas vezes indomadas que deixamos
nos dominem no orgulho, na inveja e no egoísmo, concedendo desta forma poder ao
mal. Contudo, não podemos esquecer que também elas fazem parte da Aliança de
Deus, devem ser vistas com os olhos de Deus, e paralelamente a elas habitam em
nós as graças de Deus, os seus dons, e no nosso combate somos acompanhados
pelos anjos de Deus.
Queridos irmãos, temos assim um vasto
projecto pela nossa frente para estes quarenta dias, um projecto que nos envolve
interiormente e nos envolve com os outros, um projecto do qual não podemos
desistir à primeira resistência, à primeira falha, tal seria dar-nos por
derrotados antes do tempo, ou melhor, derrotados face a uma vitória que já nos
foi alcançada e que somos convidados a partilhar, pois como nos dizia São Pedro
na sua carta, Cristo morreu pelos nossos pecados, para nos conduzir a Deus.
Que nesta caminhada de Quaresma que
agora vamos iniciar possamos ter essa alegria de sentir os anjos de Deus
caminhando e lutando connosco, anjos que tantas vezes são homens e mulheres
como nós, frágeis, pecadores, mas que acreditam que podem ser melhores, que
querem ser melhores, e junto dos quais também nós procuraremos ser anjos de
caminhada e combate.
Ilustração:
1 – Cristo no deserto, de Motetto da
Brescia, Metropolitan Museum of Art, Nova York.
Sem comentários:
Enviar um comentário