domingo, 21 de fevereiro de 2021

Homilia Domingo I da Quaresma - Ano B

Queridos Irmãos

Estamos a iniciar a Quaresma, este tempo especial de quarenta dias que nos vai ajudar a preparar o coração para celebrar a Páscoa. Como certamente já todos experimentámos é um tempo breve, passa rapidamente, e quando chegamos ao fim da Quaresma temos o sentimento que naquele momento é que devíamos estar a começar. Por outro lado, este mesmo tempo que passa rapidamente torna-se mais demorado, lento, se verdadeiramente nos empenhamos em fazer algo diferente, quando esbarramos nas resistências do que desejamos converter na nossa vida. É a relatividade do tempo.

Mas é neste tempo relativo que somos impelidos ao deserto, a esta experiência de combate, de prova. E não podemos dizer que é um convite que nos é feito por Deus ou pela Igreja, é uma realidade inerente ao nosso próprio baptismo, realidade presente ao longo de toda a nossa vida, mas que Deus e a Igreja nos convidam a tomar consciência com esta experiência demarcada no ritmo do ano, com a caminhada da Quaresma.

Os relatos que escutamos nos Evangelhos da passagem de Jesus pelo deserto seguem-se imediatamente ao baptismo, é o Espírito que conduz Jesus ao deserto, poderíamos dizer que é uma consequência imediata do seu baptismo. Mas surpreendentemente, este deserto a que Jesus é conduzido, é um deserto bastante povoado, ali encontramos os animais selvagens, os anjos de Deus, o próprio demónio que tenta Jesus. O relato de São Marcos que hoje lemos é bastante lacónico na apresentação deste acontecimento, poderíamos dizer que o deixa na privacidade e intimidade da vida de Jesus, mas não deixa de apresentar a diversidade de presenças no deserto.  

Esta diversidade de presenças no deserto mostra-nos que o deserto não é um lugar de solidão, que não vamos ao deserto para travar um combate solitário. As histórias dos Padres do deserto mostram-nos como o deserto é bastante povoado. Ao imaginarmos a Quaresma como um deserto, um tempo e espaço de combate, temos de assumir que também aqui não estamos sós. Na Quaresma toda a igreja entra connosco no deserto, no combate, cada um de nós acompanhado dos outros irmãos, dos anjos de Deus, da própria natureza, do tentador.

Neste sentido, podemos perguntar-nos desde já, com quem vamos fazer o combate desta Quaresma, quem vamos acompanhar ou nos vai acompanhar, não esquecendo que à luz do que escutámos na primeira leitura do Livro do Génesis, todas as criaturas que saíram da arca depois do dilúvio estavam incluídas na Aliança de Deus, podemos dizer, estavam sob a sua bênção. Vamos acolher os outros como bênção e ser bênção para eles nesta Quaresma?

Este combate que vamos desenvolver na Quaresma não pode ser visto como uma armadilha que Deus nos estende, para aferir do nosso bom comportamento, da nossa boa vontade e disposição. Como sabemos Deus não quer a morte do pecador, mas que ele viva, e viva dignamente. A prova do deserto é como as provas fotográficas, como as provas das serigrafias, em que se imprime uma vez para ver o que necessitamos ajustar em termos de cor, de luz, que ponto vermelho do olho necessitamos retocar. A prova do deserto é para ajustar o nosso olhar sobre nós próprios, é um acerto da focagem para a melhor imagem que podemos captar de nós e dos outros.

No combate do deserto, na Quaresma e igualmente no resto dos outros dias do ano, fazemos a experiência do confronto com o que há de selvagem em nós, essas forças tantas vezes indomadas que deixamos nos dominem no orgulho, na inveja e no egoísmo, concedendo desta forma poder ao mal. Contudo, não podemos esquecer que também elas fazem parte da Aliança de Deus, devem ser vistas com os olhos de Deus, e paralelamente a elas habitam em nós as graças de Deus, os seus dons, e no nosso combate somos acompanhados pelos anjos de Deus.

Queridos irmãos, temos assim um vasto projecto pela nossa frente para estes quarenta dias, um projecto que nos envolve interiormente e nos envolve com os outros, um projecto do qual não podemos desistir à primeira resistência, à primeira falha, tal seria dar-nos por derrotados antes do tempo, ou melhor, derrotados face a uma vitória que já nos foi alcançada e que somos convidados a partilhar, pois como nos dizia São Pedro na sua carta, Cristo morreu pelos nossos pecados, para nos conduzir a Deus.

Que nesta caminhada de Quaresma que agora vamos iniciar possamos ter essa alegria de sentir os anjos de Deus caminhando e lutando connosco, anjos que tantas vezes são homens e mulheres como nós, frágeis, pecadores, mas que acreditam que podem ser melhores, que querem ser melhores, e junto dos quais também nós procuraremos ser anjos de caminhada e combate.  

Ilustração:

1 – Cristo no deserto, de Motetto da Brescia, Metropolitan Museum of Art, Nova York.

 

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