Caros Irmãos
O Evangelho de São Marcos
que escutámos apresenta-nos a cura de um leproso, um acontecimento que frequentemente
lemos em associação ao pecado, em que associamos a lepra física à lepra
espiritual, ao pecado.
Esta leitura é, no
entanto, limitada, poderíamos dizer falaciosa, uma vez que nos conduz a uma
espécie de espiritualização dos gestos e milagres de Jesus, a um desvio do
olhar do que verdadeiramente acontece.
Não estamos perante a
cura de um cego ou um mudo, de um paralítico ou de um endemoninhado; a cura do
leproso, o toque de Jesus naquele homem, tem consequências imediatas, também
ele passa ao estatuto de impuro, e como nos diz o Evangelho, fica impedido de
entrar às claras nas cidades.
Uma história apócrifa
conta que o leproso ao pedir a ajuda de Jesus, ao pedir a sua cura, justifica o
seu estado partilhando que o mal lhe adveio por ter caminhado com outros homens
e por se ter sentado à mesma mesa, que o seu mal e a sua marginalização são
fruto do convívio com os outros.
Esta explicação e justificação
é bastante ilustrativa do que está em causa neste milagre, nesta cura, e conduz-nos
ao que o relato do Evangelho nos apresenta de necessidade de acolhimento da
comunidade. Tal como estava estipulado no Livro do Levítico, que escutámos na
primeira leitura, não bastava ficar curado da lepra, era necessária uma
certificação por parte das autoridades religiosas, era necessário um sacrifício,
um ritual de integração social, que Jesus recomenda ao leproso que cumpra.
A lepra ao tempo de Jesus
era motivo de marginalização, de exclusão social, e ainda hoje, passados dois
mil anos, e quando temos já a lepra confinada a pequenos grupos e locais do
mundo, o mecanismo de exclusão e marginalização continua a funcionar. No contexto
desta pandemia que vivemos, quantos dos nossos irmãos não sentiram na pele essa
marginalização, e mesmo antes dela quantas realidades, problemas de saúde física,
psíquica, de idade, de diferença cultural, não estavam envolvidas em
marginalização e exclusão?
Continuamos ainda hoje a gravar
essas marcas na pele de cada um de nós, nesse órgão que nos defende como fronteira
em relação aos outros, mas que é também porta para o acolhimento. Diz-nos o
Livro do Génesis que quando o homem se descobriu nu, depois do pecado, Deus
lhes fez uma roupas de pele para que pudessem continuar a viver. A pele é fronteira
de proteção do nosso interior, mas é também o veículo para a convivência de uns
com os outros.
Sofrer de lepra é estar
impedido de ser tocado, desse toque que tanto sentimos necessidade, que nos é
fundamental, e que também neste contexto da pandemia experimentámos em termos
de carência e importância. Quantos abraços entre amigos ficaram por dar,
quantos abraços entre avós e netos estão em falta, quantas mãos estendidas
tivemos de recolher porque não podemos tocar o outro, para não sermos veículos
de contaminação? E como nos demos conta da importância e da necessidade que
temos desses gestos, desses toques, da pele na pele, do toque que nos humaniza.
Mas se Jesus toca o leproso
pela carência de toque, pela necessidade de sermos tocados para sermos outros,
o outro, de imediato lhe recomenda o cumprimento do estipulado pela lei, porque
afinal não basta apenas o toque, a cura milagrosa, necessitamos de ser integrados
na sociedade, no grupo, necessitamos voltar ao convívio dos outros, família,
amigos, mundo da escola ou do trabalho. No fundo, necessitamos de muitos toques,
um único não basta, necessitamos dos outros, não de apenas um outro.
E é aqui, nesta
necessidade dos outros, que nos cruzamos com o que nos dizia São Paulo no
trecho da Carta aos Coríntios que ouvimos, que o que quer que seja que façamos
seja para o interesse de todos, pelo bem de todos, pela salvação de todos e desta
forma para a maior glória de Deus. Não vivemos sozinhos nem sobrevivemos pensando
apenas em nós. Como encontramos no Livro do Génesis Deus viu que tudo o que
tinha feito era bom, menos o homem estar só.
Dentro de dias vamos
iniciar a Quaresma, esse tempo de preparação para a Páscoa da Ressurreição de
Jesus, e como em outros anos somos convidados e desafiados a gestos de
conversão, de mudança de atitude, a assumir claramente a corpo ressuscitado que
somos, a pele divinamente dignificada pelo toque de Deus em Jesus.
Que os nossos propósitos
de gestos e atitudes de conversão tenham presentes esta dimensão tão humana do
toque, que nos saibamos tocar, cuidar na pele que nos envolve, protege e
comunica, desde a pele macia dos bebes à pele enrugada dos nossos pais e avós;
e através destes toques e gestos saibamos acolher e integrar aqueles que por
qualquer razão possam ter experimentado a marginalização, a exclusão, o peso da
solidão na sua pele.
Tal como Jesus, que
arriscou e não teve medo de tocar o leproso, ainda que ficasse marcado pela
impureza, também nós não nos deixemos intimidar e arrisquemos acolher o outro na
nossa pele com as marcas da sua pele.
Ilustração:
1 – Jesus cura o leproso,
Gravura em madeira do século XVI.
NOTA: Interessante a
máscara do leproso, à semelhança das nossas.
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