Caríssimos Irmãos
No domingo passado a
leitura do Evangelho conduzia-nos ao deserto e às tentações de Jesus, hoje
eleva-nos ao monte Tabor, conduz-nos à transfiguração de Jesus. Um monte e um
acontecimento que não podem deixar de ser colocados no horizonte de outro
monte, de outro acontecimento, o monte do Gólgota e a crucifixão de Jesus.
E se alguma dúvida pudesse
existir sobre este alinhamento, esta permuta de montes e acontecimentos, a
Liturgia da Palavra, na leitura do Livro do Génesis com o sacrifício do filho
de Abraão, bem como a leitura da Carta aos Romanos, com a referência à entrega
do filho por parte de Deus Pai, desfazem-nos essas dúvidas.
Ao dar os primeiros
passos na nossa caminhada para a Páscoa é-nos oferecida uma linha de
orientação, um horizonte; o que podemos sofrer, o sacrifício que podemos viver,
as mortes que podemos experimentar, estão precedidas pela luz da glória, pela
transfiguração. Tal como acontece no relato do sacrifício de Isaac sabemos que Deus
providenciará, é dessa forma que responde Abraão ao filho quando este lhe
pergunta pelo cordeiro para o sacrifício. Deus providenciará o que nos falta.
A proximidade do monte
Tabor e da transfiguração com o monte Gólgota e a crucifixão de Jesus conjuga-se,
no entanto, em opostos, em contrários, pois se no monte Tabor Jesus é
transfigurado pelo grande amor do Pai, no monte Gólgota ele é desfigurado pelos
nossos pecados. E num e noutro momento os nossos olhos ficam cegos perante os
acontecimentos e o mistério que os envolve. E por causa desta cegueira, as nossas
atitudes e os nossos gestos sofrem igualmente uma inversão, padecem de
contradição, e acontece-nos o que os Evangelhos nos relatam das testemunhas
presentes aos acontecimentos.
Assim, no momento da
transfiguração, quando se manifesta a glória de Jesus, os três discípulos presentes
ficam cheios de medo, apavoram-se perante o que presenciam, esquecendo-se de
adorar o Senhor, como seria normal num momento como aquele. Neste contexto, não
nos podemos esquecer que Pedro, que está presente, uns dias antes tinha afirmado
a sua fé respondendo que Jesus era o Messias, o Filho de Deus. Este acontecimento
comprova-lhe a afirmação realizada anteriormente. A atitude não deveria ser de
medo. Por outro lado, no momento da elevação da cruz no alto do Gólgota, no
momento total da desfiguração, quando todos fogem, são aqueles que são
considerados os mais fracos, as mulheres e o discípulo amado, que permanecem e
adoram, sem medo. Quando já nada há a esperar permanece o amor.
As atitudes de uns e
outros perante os acontecimentos e a sua dimensão extraordinária mostram-nos a
fatalidade da nossa condição de discípulos, de crentes, de homens e mulheres
que vivem em contradição, pois temos a consciência de que não vivemos fielmente
como Deus nos convida e espera de nós, e tão pouco vivemos como é habitual
viver no mundo.
Esta situação paradoxal
conduz-nos à tentação de Pedro, de querer aprisionar os momentos, os momentos
de felicidade, pelo prazer e pela alegria que nos trazem, mas também os
momentos de dor, quando nos recusamos a assumir essa dor e a fechar a ferida,
quando não acreditamos que temos força para superar a dor. Afinal como é bom
estarmos aqui, nesta experiência feliz, mas também na dor, porque mudar e sair
da dor exige força, uma transfiguração de nós.
Esta tentação da
materialidade do momento, se assim se pode dizer, está à nossa porta, tal como
a sabedoria, e se temos de combater a tentação, temos também de nos agarrar à
sabedoria, deixar-nos guiar por ela, pois como noz diz no livro de Eclesiastes há
um tempo para tudo debaixo do sol, um tempo para colher pedras e um tempo para
as arremessar, um tempo para chorar e um tempo para rir.
E Deus sabe das nossas
fraquezas e da nossa necessidade de pararmos, de colhermos forças, para
continuar a caminhada, a luta da vida. Deus aprova e acolhe os nossos momentos
de descanso, sabe como nos são necessários, mas não podemos ficar aí, nem
podemos desanimar, há um futuro para viver.
Por isso no início da Quaresma o mistério da transfiguração, por isso em cada semana o domingo, para nos darmos tempo, para nos fortalecermos, animarmos. Deus não procura o sacrifício do que amamos, mas oferece-nos o seu Filho amado, para que o escutemos, para que experimentemos o seu amor, para que nos deixemos conduzir pela sua palavra e por meio dela transfigurar-nos e transfigurar a realidade à nossa volta.
Ilustração:
1 – Transfiguração, de Francesco
Zuccarelli, Kunsthaus Lempertz.
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