sábado, 14 de agosto de 2010

Sinos a rebate

Das memórias que conservo da minha infância, dos oito ou dez anos, uma delas é a do toque dos sinos a rebate. Lembro-me que ardiam as matas da “Ribaboa” e da “Cabeça da Mata”, ainda distantes da aldeia e portanto sem grande perigo para as casas, mas o fogo era tão intenso que tocaram os sinos a rebate. E então foi ver homens e mulheres, crianças e velhos, tudo a correr pelos caminhos sem saber muito bem o que fazer mas com uma vontade enorme de pôr cobro ao incêndio que ameaçava as vinhas e as matas. Cada um munia-se do que tinha e podia, uma enxada, um balde, uma ramo verde de pinheiro, todos queriam ajudar os bombeiros que com os seus meios mais técnicos e sofisticados lutavam contras as chamas em ebulição. Estávamos todos unidos numa luta, numa guerra contra um inimigo cujo poder de destruição era muito superior ao nosso. Não sei se posso dizer que vivíamos como rurais, éramos todos rurais e por isso o mal de alguém era um mal para todos, a luta de um era uma luta de todos, ou quase todos.
Ficou-me na memória o toque dos sinos a rebate, a aflição das pessoas, os rostos de angústia e desespero, mas também a solidariedade, o empenho e a vontade tremenda de querer vencer o inimigo. E a algazarra da miudagem para a qual toda aquela movimentação era uma enorme novidade e motivo de satisfação curiosa.
Hoje, passados trinta e tal anos, pois não tenho outra memória, voltei a ouvir o toque dos sinos a rebate. O fogo que nos tem cercado e cujo fumo negro há dias nos vai encobrindo o sol, nos vai tornando o ar irrespirável, nos vai enchendo as casas de muchanas negras, chegou até junto das casas, aos quintais e jardins que estão paredes meias com as matas de pinheiros e os matos de giestas e tojo. Puxado a vento o fogo parecia imparável e nem mesmo os bombeiros com as suas viaturas e tecnologias pareciam capazes de lhe fazer frente. Toda a ajuda era pouca para fazer face a tantas frentes de fogo, a um fogo que avançava à velocidade vertiginosa do vento forte. E dos lugares mais recônditos, do fundo dos vales, como de uma boca do inferno, as colunas de fumo negro evoluíam no ar dificultando a visão e a respiração.
Tocaram os sinos mas quase não apareceu ninguém, estavam todos ou ocupados a tentar salvar o que era seu ou então displicentemente indiferentes à sorte do que ardia. Deixámos de ser rurais, somos outra coisa qualquer, uma outra coisa na qual a solidariedade e o sentido do comum e do bem para todos se perderam. Passámos a confiar na técnica e a deixá-la resolver as situações, não nos envolvemos e olhamos para o lado deixando os soldados da paz sozinhos numa luta sem tréguas e sem compaixão.
Tive a oportunidade de poder ajudar distribuindo água e leite àqueles que por detrás dos muros das casas, nas bermas dos caminhos, iam combatendo como podiam as chamas ameaçadoras. Estavam exaustos depois de tantos dias de combate mas não podiam abandonar as frentes e eu não podia fazer muito mais por eles. Contudo, um pouco de um com um pouco de outro pode fazer muita diferença. Se todos déssemos um pouco do nosso melhor acredito que as coisas poderiam ser diferentes, no combate e certamente na prevenção e no cuidado que é necessário para manter as matas limpas e cuidadas.
Este trabalho, esta ajuda, possibilitou-me também em primeira-mão ver o resultado do fogo, o negro que nos rodeia e rodeará nos próximos tempos, os pequenos e grandes pinheiros queimados, os penedos e as pedras descarnadas de qualquer musgo e vegetação. E perante tal horror as lágrimas são impossíveis de conter, porque é muito triste, muito triste pelo que se perdeu mas sobretudo pelo futuro que se hipotecou. Ao olhar o negrume interrogava-me sobre o que queremos deixar às gerações futuras, aos filhos e sobrinhos, aos netos: se um planeta habitável e cheio de vida e frescura ou um deserto de negrume e morte onde respirar será impossível.
Ao terminar não posso deixar de prestar o meu agradecimento e louvor aos valorosos soldados da paz, aos bombeiros que têm dado tanto da sua vida neste combate. Sei quantos perderam já a vida este ano, sei também daqueles que por estes lados não perderam a vida mas estiveram bem perto. Em outros incêndios haverá histórias parecidas. Por eles e pela luta que travam peço ao Senhor nosso Deus, que os sinos toquem a rebate no céu para que os anjos os acompanhem e os guardem.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    Já havia lido o texto que partilhara intitulado “Sinos a rebate” quando liguei o aparelho de TV para ouvir as notícias. Pouco passava das 13h00 e contrariamente ao que acontece, com frequência, a imagem era de partilha de alimentos, feita por populares aos bombeiros ... A seguir lamentava-se o que se tinha perdido, passando pelas “festas” que já não se realizavam (e quão importantes, nestas zonas do País mais isoladas, a “festa anual” é o momento de convívio, de reencontro, de partilha de muita coisa ...), e a angústia dos momentos vividos.
    A partilha que hoje faz connosco para além de nos relatar a experiência vivida pelo Frei José Carlos, neste verão de 2010, a qual se multiplica por muitos outros lugares de Portugal, em especial no Norte e no Centro, até à data, mas também noutras partes do mundo, fala-nos também do que fomos perdendo nos últimos 30 a 35 anos. Modificámo-nos do ponto de vista humano e paisagista, nos meios rural e citadino. Passámos por transformações materiais que nos conduziram ao “crescimento económico” mas não ao “desenvolvimento económico e social”. Não nos desenvolvemos como um “todo”. Só o “ter”, o “parecer” são importantes. O “ser” tem pouco ou nenhum valor. A vivência da solidariedade, da fraternidade, da entre ajuda, dos pequenos gestos, da palavra partilhada no momento oportuno, foram desvalorizadas. Felizmente ainda há pessoas bonitas, em todas as classes sociais. No meio de um “materialismo” exagerado, há palavras, gestos inesperados, em dias menos bons da nossa vida, de tanta compaixão, que digo muitas vezes para comigo ou partilho: isto só pode acontecer, porque o “filho de Deus continua entre nós”.
    Permita-me que transcreva alguns excertos do texto que escreveu que me sensibilizaram muito: ...” Estávamos todos unidos numa luta, numa guerra contra um inimigo cujo poder de destruição era muito superior ao nosso. Não sei se posso dizer que vivíamos como rurais, éramos todos rurais e por isso o mal de alguém era um mal para todos, a luta de um era uma luta de todos, ou quase todos.”…
    …” Tocaram os sinos mas quase não apareceu ninguém, estavam todos ou ocupados a tentar salvar o que era seu ou então displicentemente indiferentes à sorte do que ardia. Deixámos de ser rurais, somos outra coisa qualquer, uma outra coisa na qual a solidariedade e o sentido do comum e do bem para todos se perderam. Passámos a confiar na técnica e a deixá-la resolver as situações, não nos envolvemos e olhamos para o lado deixando os soldados da paz sozinhos numa luta sem tréguas e sem compaixão.”
    …”Se todos déssemos um pouco do nosso melhor acredito que as coisas poderiam ser diferentes, no combate e certamente na prevenção e no cuidado que é necessário para manter as matas limpas e cuidadas.”…
    …”E perante tal horror as lágrimas são impossíveis de conter, porque é muito triste, muito triste pelo que se perdeu mas sobretudo pelo futuro que se hipotecou”…
    Faço minhas as palavras do Frei José Carlos ...” Por eles (os soldados da paz) e pela luta que travam peço ao Senhor nosso Deus, que os sinos toquem a rebate no céu para que os anjos os acompanhem e os guardem.”
    Desejo ao Frei José Carlos e a todos os que vivem ou passam férias em lugares atingidos pelos fogos, que possam viver com a tranquilidade desejada e merecida e que o ar se torne respirável. Bem haja, Frei José Carlos.
    Um abraço fraterno,MJS
    P.S. No verão de 76, do século passado, quando estava a leccionar, no ex-colégio Nuno Álvares, escola secundária, na época, situado no Carregal do Sal, ouvi pela primeira vez tocarem os sinos a rebate, por diversas vezes (só conhecia a expressão da literatura …). São experiências que nos marcam mas como afirma os tempos eram outros. A realidade dos fogos de grandes dimensões e dispersos iniciara-se em 1975 … MJS

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