No editorial deste mês de Setembro da revista “Le Monde des Religions”, Frédéric Lenoir comenta um ensaio recentemente publicado em França, e da autoria de Jean-Pierre Denis, intitulado “Porque o cristianismo provoca escândalo”. Creio que é suficientemente interessante, e até provocador, para tomar algumas notas, enquanto esperamos que o livro nos chegue às mãos e possamos confirmar o que se ensaiou.
Assim, não podemos deixar de assumir que a contra cultura “libertinária” que nasceu do Maio de 68 é hoje a cultura que nos domina a todos, é a cultura dominante, enquanto que o cristianismo se transformou em algo verdadeiramente periférico, não sei se verdadeiramente uma contra cultura periférica, ou apenas algo periférico.
A contra cultura, que se desenhou no Maio de 68 de uma forma embrionária, evoluiu das margens e da periferia para o centro, tornou-se norma, ganhando aos poucos as consciências, as mentalidades e os consensos sociais, atingindo mesmo e ainda que imperceptivelmente um nível elevado de controlo social. Não temos, por acaso, algum pudor, para não dizer medo, em assumir algumas ideias e posições menos politicamente correctas?
Simetricamente a esta evolução e ocupação cultural o cristianismo foi sendo relegado para a esfera do privado, colocado à margem, gerando aquilo que todos nós sabemos e que habitualmente apelidamos de descristianização. A forma mais visível, todos temos isso claro, é o despovoamento das nossas assembleias dominicais e das nossas igrejas. Mas essa é apenas a ponta do iceberg, porque a questão é mais profunda e não só cultural mas creio que também ontológica.
E neste ponto temos que ter presente e também assumir, que de facto e apesar de dois mil anos de história e de uma época a que chamamos “cristandade”, o nosso mundo e a nossa história deixam muito a desejar em termos de cristianismo. É verdade que temos as catedrais e os mosteiros, a arte e a filosofia, os símbolos e as organizações, o respeito e os direitos do homem, um património cultural e social inquestionável; mas temos também a intolerância, as organizações rígidas e obsoletas, as perseguições e as guerras, uma moral bastantes vezes estreita e constrangedora, uma história e um presente nos quais se mesclam a beleza e o horror, a humanidade e a desumanidade.
Será que não abandonámos a liberdade e a bondade subversiva que marca a mensagem de Jesus, no que diz respeito à moral, à religião e ao poder? Será que a partir do século IV com a associação ao poder e ao governo imperial não se gerou uma confusão enorme entre o que é ser seguidor de Jesus Cristo, cristão na mais radical acepção da palavra, e cristão enquanto membro de um igreja, de uma confissão religiosa, de um grupo social cultural dominante?
Neste sentido, a descristianização em que todos nos inserimos e da qual todos temos consciência pode de facto ser uma bênção de Deus, pode ser uma nova oportunidade para um seguimento mais fiel e verdadeiro de Jesus Cristo, um renascimento da fé à luz dos Evangelhos, na qual o amor do próximo e o amor de Deus serão colunas angulares, na qual uma resistência ao consumismo materialista conduzirá a um novo humanismo e a uma conservação ecológica da casa natural em que vivemos. Necessitamos abandonar os esquemas estereotipados, os espartilhos que nos colocamos em nome e em defesa de uma fé, que a bem da verdade é mais uma consciência ou concepção colectiva, corporativista, que verdadeiramente a consequência de uma experiência pessoal e profunda do mistério amoroso de Deus vivida no seio da comunidade dos irmãos.
Para a prossecução deste renascimento, desta reconstrução cristã, para aproveitar a oportunidade, Jean-Pierre Denis propõe cinco pontos de desenvolvimento: reanimar a cultura, objectar de consciência, ligar o tempo, ultrapassar o visível, refundar o sentido. Projecta-se desta forma um cristão contra cultural, chamado do contra, que não se envergonha dos seus valores e princípios, nem reivindica qualquer poder ou autoridade, mas que se define essencialmente pelo seu poder de objecção face aos desafios e propostas do seu tempo.
“O Cristianismo crítico é um cristianismo de objecção, objecção de consciência, objecção pelo testemunho, objecção pela experiência e objecção pela esperança.”
Aproximamo-nos assim de São Paulo e do escândalo que os primeiros cristãos provocavam aos seus contemporâneos, aproximamo-nos da fidelidade de que os mártires dos primeiros séculos são o exemplo mais puro.
Como disse ao início, estas são apenas notas, apontamentos que exigem uma leitura mais aprofundada do ensaio de Jean-Pierre Denis e uma reflexão mais madura das várias propostas aí apontadas. Contudo, e face ao interesse e desejo de todos nós por uma maior fidelidade à liberdade subversiva de Jesus, deixo estas notas para alimentar a partilha e a reflexão.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarO tema complexo que hoje partilha connosco e propõe como reflexão faz parte de um dos grandes desafios, talvez o maior que a Igreja enfrenta há várias décadas e que os cristãos menos “acomodados” debatem, em público e/ou em privado. Se me permite, eu diria, que a questão é anterior a Maio de 68, a Karl Marx, Lenine, Estaline ou Mao Tsé –Tung.
Na realidade, os acontecimentos de Maio de 68 marcam um virar de página, uma fractura com a sociedade anterior, com efeitos no campo politico, económico, social, cultural e religioso (Daniel Cohn-Bendit, Deputado Europeu, dirá “Não resta nada de 68” ...). A sociedade mudou radicalmente e novos fenómenos se registaram no campo demográfico, com novas atitudes geracionais, grandes transformações políticas ocorreram com a queda do muro de Berlim, verificaram-se novos avanços da ciência e da tecnologia, cujos resultados foram incorporados pela sociedade ... Para quem viveu estes acontecimentos, e alguns acontecimentos nacionais, antes e depois do 25 de Abril de 74, talvez se compreenda, sem aceitar, a questão que coloca ... “Não temos, por acaso, algum pudor, para não dizer medo, em assumir algumas ideias e posições menos politicamente correctas?”
Paralelamente, muitos de nós, não conseguimos assumir a nossa posição como cristãos. Noutro comentário havia falado deste fenómeno. Não assumimos a nossa fé, no seio da família, com os amigos, no trabalho... Como afirma ...” o cristianismo se transformou em algo verdadeiramente periférico, não sei se verdadeiramente uma contra cultura periférica, ou apenas algo periférico.”
Permita-me que cite esta passagem, extraída do último Capítulo do livro “Ir à Igreja, porquê?, pág. 285, de Frei Timothy Radcliffe” … Mas, muitas vezes, os cristãos parecem tolhidos pelo medo, recusam-se a sair pela porta que Jesus abriu. Receamos dizer o que pensamos. Talvez tenhamos medo de confessar a nossa fé ao mundo e de expressar as nossas dúvidas uns aos outros. Receamos, porventura, aparecer como excêntricos na nossa sociedade secular ou como desleais à linha “partidária” da nossa Igreja, trancados numa pequena sala eclesiástica “do andar de cima”. Receamos, quiçá, perder a nossa identidade aconchegante e deixar que o Espírito Santo nos empurre para fora do ninho. Mas “foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (GL 5,1)” …
Não pretendo fazer nenhum “libelo” mas houve atitudes, comportamentos por parte de certos sectores da Igreja Católica e , de alguns de nós, entre os quais me incluo, que rejeitamos posições dogmáticas personificadas numa Instituição que se recusava e recusa a analisar, a compreender as transformações que se operararam na sociedade ( é o momento de perguntar, Frei José Carlos, se estou a ser correcta?) e que explicam, parcialmente, a situação actual.
…”É verdade que temos as catedrais e os mosteiros, a arte e a filosofia, os símbolos e as organizações, o respeito e os direitos do homem, um património cultural e social inquestionável; mas temos também a intolerância, as organizações rígidas e obsoletas, as perseguições e as guerras, uma moral bastantes vezes estreita e constrangedora, uma história e um presente nos quais se mesclam a beleza e o horror, a humanidade e a desumanidade.”
Obrigada por esta partilha que nos interroga e que nos faz acreditar que é possível seguir a Jesus Cristo como verdadeiros discípulos, dando como exemplo os Seus Ensinamentos, sem receio, e vivendo-os, no quotidiano, para que se possa construir uma Humanidade mais fraterna, mais justa, mais solidária.
Bem haja, Frei José Carlos.
Um abraço fraterno, MJS
Frei José Carlos,
ResponderEliminarParabéns por esta nova apresentação do seu blogue que acabei de ler. O tema escolhido é também de grande interesse para nós e fruto de grande coragem no acordar das nossas consciências, apelando também à partilha e a reflexão. Vou estar atenta à chegada da obra, de preferência na versão linguística original, o que me leva a aprender por diversas vertentes.
Um abraço sempre amigo,
GVA