Foi para a liberdade que fostes chamados (Gl 5,13)
Foi esta frase da Carta de São Paulo aos Gálatas que deu o título à reflexão que o Professor Tolentino Mendonça apresentou no ciclo “Tardes de Setembro” no Convento de São Domingos. Frase sumamente provocadora quando nos confrontamos com ela e com pessoas que se desencontraram com a liberdade no interior da Igreja. Caso paradigmático, e apresentado pelo próprio Professor Tolentino Mendonça, o do escritor recém-falecido José Saramago, que saltou da cadeira quando numa discussão sobre a Igreja e Deus lhe foi apresentada esta frase. Onde está a liberdade na Igreja, perguntou ele, e como ele perguntam muitos outros homens e mulheres que são nossos irmãos na fé.
Fomos chamados para a liberdade, mas para que liberdade? Uma liberdade que como o próprio São Paulo nos responde não deve ser ocasião para satisfação dos nossos apetites carnais, mas para o serviço do amor. E mais, se tivermos em conta o que nos diz Jesus no Evangelho de São João, fomos chamados para uma liberdade que apenas se torna efectiva, real, na medida em que se funda no conhecimento e na aceitação da verdade que é o próprio Jesus: “se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres” (Jo 8,31-32).
Neste sentido, e buscando resposta para a pergunta sobre o sentido da liberdade cristã, temos que nos aproximar de Jesus, temos que o conhecer, como Homem e como Filho de Deus, na sua verdade, para a partir daí alicerçarmos a nossa liberdade. E Jesus foi um homem livre, livre de preconceitos, livre de medos, livre de concepções estreitas da humanidade, da sua e da dos outros.
Podemos ver isso na forma como se relacionava com aqueles que cruzaram a sua vida, a mãe, os discípulos, as multidões, os doentes e pecadores, os carrascos da sua própria morte. A sua relação com qualquer uma destas entidades é uma relação de confiança, de esperança de crescimento, uma relação que conhece os defeitos, o substrato lodoso que nos marca a todos, consciente do mal que nos atinge e fere, mas também uma relação aberta à capacidade de renovação, de transformação e superação. Jesus era livre na liberdade que reconhecia em cada homem.
Jesus foi também um homem livre na sua relação com o divino, com o Pai, relação que cuidava e cultivava, que convidava os outros a partilhar. Era livre na sua relação com o templo, que frequentava como bom judeu que era, mas que também criticava por saber das limitações que acarretava na vivência relacional com Deus e com um Deus que é Amor e é Pai. Era livre em relação à palavra da Lei pois sabia que ela era para o serviço e crescimento do homem e não para a sua escravatura, ainda que muitas vezes e pelas injunções mais perversas fosse motivo de sofrimento e de escravidão.
Jesus era livre também na relação com o seu próprio corpo, corpo tocado pelos leprosos, pelas mulheres de má vida, sobre o qual permitia o descanso e o repouso da cabeça daqueles que amava. Corpo livre e por isso passível de ser entregue para o sacrifício da cruz, de ser oferecido como alimento para cada homem e mulher, corpo transfigurado que assimila todos aqueles que se aventuram no mistério de se alimentarem dele.
É a verdade da sua pessoa, a aceitação de quem é e como é, Filho de Homem e Filho de Deus, expressão viva do amor entregue para resgate dos servos infiéis, que torna Jesus livre, capaz de oferecer a liberdade de Deus e de ver nos outros a liberdade potencial de irmãos e herdeiros com ele.
Aceitar isto, é aceitar que a liberdade que buscamos, que desejamos, assenta na liberdade do outro, na liberdade do seu mundo e da sua condição de filho de Deus, bem como na entrega e no serviço salvífico por amor do próximo, assenta na insatisfação dos nossos apetites carnais no que eles têm de desejo de poder, de glória, de prestigio, de controlo e de narcisismo. Fomos chamados à liberdade, mas para uma liberdade de controlo e disciplina, de conversão, sobre aquilo que nos desumaniza e desumaniza aqueles com quem partilhamos a vida. Quando reclamamos a liberdade, seja ela de que tipo seja, esquecemos frequentemente que lhe corresponde uma face de responsabilidade. Ser livre, ou querer ser livre, é ser e querer ser responsável.
Fomos chamados para a liberdade, na qual nos reconhecemos como necessitados e carentes de conversão, de melhoramento. Fomos chamados para a liberdade para libertar os outros, para os retirar dos seus poços de vergonha e os dignificar como homens e mulheres, como filhos de Deus. Fomos chamados para a liberdade do serviço, para em conjunto construirmos e nos encontrarmos com a verdade e a liberdade, porque ninguém é livre sozinho e ninguém se encontra com a verdade sem o espelho da face do outro.
Podemos ser livres na Igreja, e mais particularmente na Igreja Católica? Não só podemos, como devemos, porque de contrário estamos a negar o mistério da encarnação, a mensagem libertadora de Jesus, e a natureza da própria Igreja como Corpo de Cristo. Podemos sê-lo e devemos sê-lo na busca constante da fidelidade à liberdade de Jesus, à pessoa de Jesus e à sua Palavra, não nos deixando aprisionar e agrilhoar pelas estruturas que historicamente foram dando corpo e orgânica a um conjunto de homens e mulheres que partilham o mesmo caminho na busca do mesmo fim. Muitas vezes, e infelizmente mais do que devíamos, infantilmente deixamo-nos ficar…
No fim da vida seremos julgados pelo amor; mas pelo amor a estruturas temporais e circunstanciais, ou pelo amor à fonte do Amor e a tudo o que fizemos fielmente, ou tentámos fazer, por essa mesma fonte?
Sinceramente, não quero ser julgado pelo amor aos andaimes da obra, mas pela obra acabada com amor.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarA partilha que nos propõe como reflexão, se me permite e se interpretei correctamente completa e precisa a reflexão do Padre Tolentino Mendonça “Foi para a liberdade que fostes chamados (Gl 5,13)”. Clarifica e precisa de que “liberdade” falamos, sobre o sentido da “liberdade cristã”. Uma liberdade que nos permite estar ao “serviço do amor” e ser verdadeiros discíplulos de Jesus. E passo a citá-lo …”E mais, se tivermos em conta o que nos diz Jesus no Evangelho de São João, fomos chamados para uma liberdade que apenas se torna efectiva, real, na medida em que se funda no conhecimento e na aceitação da verdade que é o próprio Jesus: “se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres” (Jo 8,31-32).”
A liberdade de ser, de estar, de opinar, de respeitar a liberdade do nosso semelhante, é um processo de construção permanente, de alternativa, de risco, comunitário, e também de responsabilidade como afirma …”Quando reclamamos a liberdade, seja ela de que tipo seja, esquecemos frequentemente que lhe corresponde uma face de responsabilidade. Ser livre, ou querer ser livre, é ser e querer ser responsável.” …
Obrigada por nos salientar que podemos e devemos ser livres no seio da Igreja e, mais particularmente na Igreja Católica.
Que Jesus ilumine o Frei José Carlos e a todos, neste exercício permanente de construção e defesa da liberdade cristã, de pertença a Cristo, ao serviço do Homem.
Bem haja, Frei José Carlos.
Um abraço fraterno,
MJS