sábado, 18 de setembro de 2010

Foi para a liberdade que fostes chamados (Gl 5,13)

Foi para a liberdade que fostes chamados (Gl 5,13)
Foi esta frase da Carta de São Paulo aos Gálatas que deu o título à reflexão que o Professor Tolentino Mendonça apresentou no ciclo “Tardes de Setembro” no Convento de São Domingos. Frase sumamente provocadora quando nos confrontamos com ela e com pessoas que se desencontraram com a liberdade no interior da Igreja. Caso paradigmático, e apresentado pelo próprio Professor Tolentino Mendonça, o do escritor recém-falecido José Saramago, que saltou da cadeira quando numa discussão sobre a Igreja e Deus lhe foi apresentada esta frase. Onde está a liberdade na Igreja, perguntou ele, e como ele perguntam muitos outros homens e mulheres que são nossos irmãos na fé.
Fomos chamados para a liberdade, mas para que liberdade? Uma liberdade que como o próprio São Paulo nos responde não deve ser ocasião para satisfação dos nossos apetites carnais, mas para o serviço do amor. E mais, se tivermos em conta o que nos diz Jesus no Evangelho de São João, fomos chamados para uma liberdade que apenas se torna efectiva, real, na medida em que se funda no conhecimento e na aceitação da verdade que é o próprio Jesus: “se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres” (Jo 8,31-32).
Neste sentido, e buscando resposta para a pergunta sobre o sentido da liberdade cristã, temos que nos aproximar de Jesus, temos que o conhecer, como Homem e como Filho de Deus, na sua verdade, para a partir daí alicerçarmos a nossa liberdade. E Jesus foi um homem livre, livre de preconceitos, livre de medos, livre de concepções estreitas da humanidade, da sua e da dos outros.
Podemos ver isso na forma como se relacionava com aqueles que cruzaram a sua vida, a mãe, os discípulos, as multidões, os doentes e pecadores, os carrascos da sua própria morte. A sua relação com qualquer uma destas entidades é uma relação de confiança, de esperança de crescimento, uma relação que conhece os defeitos, o substrato lodoso que nos marca a todos, consciente do mal que nos atinge e fere, mas também uma relação aberta à capacidade de renovação, de transformação e superação. Jesus era livre na liberdade que reconhecia em cada homem.
Jesus foi também um homem livre na sua relação com o divino, com o Pai, relação que cuidava e cultivava, que convidava os outros a partilhar. Era livre na sua relação com o templo, que frequentava como bom judeu que era, mas que também criticava por saber das limitações que acarretava na vivência relacional com Deus e com um Deus que é Amor e é Pai. Era livre em relação à palavra da Lei pois sabia que ela era para o serviço e crescimento do homem e não para a sua escravatura, ainda que muitas vezes e pelas injunções mais perversas fosse motivo de sofrimento e de escravidão.
Jesus era livre também na relação com o seu próprio corpo, corpo tocado pelos leprosos, pelas mulheres de má vida, sobre o qual permitia o descanso e o repouso da cabeça daqueles que amava. Corpo livre e por isso passível de ser entregue para o sacrifício da cruz, de ser oferecido como alimento para cada homem e mulher, corpo transfigurado que assimila todos aqueles que se aventuram no mistério de se alimentarem dele.
É a verdade da sua pessoa, a aceitação de quem é e como é, Filho de Homem e Filho de Deus, expressão viva do amor entregue para resgate dos servos infiéis, que torna Jesus livre, capaz de oferecer a liberdade de Deus e de ver nos outros a liberdade potencial de irmãos e herdeiros com ele.
Aceitar isto, é aceitar que a liberdade que buscamos, que desejamos, assenta na liberdade do outro, na liberdade do seu mundo e da sua condição de filho de Deus, bem como na entrega e no serviço salvífico por amor do próximo, assenta na insatisfação dos nossos apetites carnais no que eles têm de desejo de poder, de glória, de prestigio, de controlo e de narcisismo. Fomos chamados à liberdade, mas para uma liberdade de controlo e disciplina, de conversão, sobre aquilo que nos desumaniza e desumaniza aqueles com quem partilhamos a vida. Quando reclamamos a liberdade, seja ela de que tipo seja, esquecemos frequentemente que lhe corresponde uma face de responsabilidade. Ser livre, ou querer ser livre, é ser e querer ser responsável.
Fomos chamados para a liberdade, na qual nos reconhecemos como necessitados e carentes de conversão, de melhoramento. Fomos chamados para a liberdade para libertar os outros, para os retirar dos seus poços de vergonha e os dignificar como homens e mulheres, como filhos de Deus. Fomos chamados para a liberdade do serviço, para em conjunto construirmos e nos encontrarmos com a verdade e a liberdade, porque ninguém é livre sozinho e ninguém se encontra com a verdade sem o espelho da face do outro.
Podemos ser livres na Igreja, e mais particularmente na Igreja Católica? Não só podemos, como devemos, porque de contrário estamos a negar o mistério da encarnação, a mensagem libertadora de Jesus, e a natureza da própria Igreja como Corpo de Cristo. Podemos sê-lo e devemos sê-lo na busca constante da fidelidade à liberdade de Jesus, à pessoa de Jesus e à sua Palavra, não nos deixando aprisionar e agrilhoar pelas estruturas que historicamente foram dando corpo e orgânica a um conjunto de homens e mulheres que partilham o mesmo caminho na busca do mesmo fim. Muitas vezes, e infelizmente mais do que devíamos, infantilmente deixamo-nos ficar…
No fim da vida seremos julgados pelo amor; mas pelo amor a estruturas temporais e circunstanciais, ou pelo amor à fonte do Amor e a tudo o que fizemos fielmente, ou tentámos fazer, por essa mesma fonte?
Sinceramente, não quero ser julgado pelo amor aos andaimes da obra, mas pela obra acabada com amor.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    A partilha que nos propõe como reflexão, se me permite e se interpretei correctamente completa e precisa a reflexão do Padre Tolentino Mendonça “Foi para a liberdade que fostes chamados (Gl 5,13)”. Clarifica e precisa de que “liberdade” falamos, sobre o sentido da “liberdade cristã”. Uma liberdade que nos permite estar ao “serviço do amor” e ser verdadeiros discíplulos de Jesus. E passo a citá-lo …”E mais, se tivermos em conta o que nos diz Jesus no Evangelho de São João, fomos chamados para uma liberdade que apenas se torna efectiva, real, na medida em que se funda no conhecimento e na aceitação da verdade que é o próprio Jesus: “se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres” (Jo 8,31-32).”
    A liberdade de ser, de estar, de opinar, de respeitar a liberdade do nosso semelhante, é um processo de construção permanente, de alternativa, de risco, comunitário, e também de responsabilidade como afirma …”Quando reclamamos a liberdade, seja ela de que tipo seja, esquecemos frequentemente que lhe corresponde uma face de responsabilidade. Ser livre, ou querer ser livre, é ser e querer ser responsável.” …
    Obrigada por nos salientar que podemos e devemos ser livres no seio da Igreja e, mais particularmente na Igreja Católica.
    Que Jesus ilumine o Frei José Carlos e a todos, neste exercício permanente de construção e defesa da liberdade cristã, de pertença a Cristo, ao serviço do Homem.
    Bem haja, Frei José Carlos.
    Um abraço fraterno,
    MJS

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