domingo, 27 de dezembro de 2009

Homilia Domingo da Sagrada Família

Celebramos neste domingo da oitava do Natal a festa da Sagrada Família e o Evangelho de São Lucas apresenta-nos o episódio da perda e encontro de Jesus no templo de Jerusalém.
Como texto escolhido pela liturgia para a apresentação da família que deve servir de modelo às famílias cristãs é um texto estranho, até contraditório, porque parece haver muito pouco de família, ou pelo menos e à luz dos parâmetros psicológicos e sociais actuais estamos mais perante uma família problemática que uma família modelo.
Antes de mais, e conhecendo um pouco a história prévia ao acontecimento relatado pelo Evangelho de hoje, sabemos que o casal vive uma relação especial, uma relação em que a sombra da infidelidade pairou no ar. Sabemos também que há um filho que não é fruto da relação matrimonial, o que não deixou de causar problemas ao casal e até colocar a hipótese de dissolução da união matrimonial.
Hoje, e pelo Evangelho de São Lucas, ficamos a saber que o jovem adolescente vive com bastante liberdade e independência, ou se quisermos olhar com uma lente mais crítica, vive com uns pais pouco atentos à sua segurança e controlo. Um dia de viagem sem conhecimento do paradeiro do filho parece bastante negligência e descuido. E o filho, pela resposta à mãe quando encontrado no templo de Jerusalém, parece também um miúdo um pouco mal-educado para com os seus pais, ou mãe, porque no relato o pai parece quase omisso, uma figura de segundo plano e sem qualquer autoridade sobre o filho.
Estamos assim, e face a estes dados, perante uma família que aparentemente tem muito pouco para oferecer de exemplo a outras famílias. Bem pelo contrário, parece mais uma das nossas famílias contemporâneas, com todos os seus problemas e defeitos, uma família desestruturada e em crise.
Mas é aqui e nesta dimensão e circunstância de crise que a sagrada família de Nazaré se revela surpreendentemente uma família modelo, uma família a seguir e a imitar. E revela-se como modelo a imitar na medida em que não são os laços sanguíneos o que a une, nem é o poder ou a autoridade que governa, mas são outros valores, valores que ultrapassam a dimensão meramente sociológica, antropológica ou cultural, são valores evangélicos, valores da dimensão do transcendental e do divino.
Assim compreende-se que José tenha aceite não só Maria na sua aparente infidelidade mas também que ela fosse mãe de um filho que não era seu, do seu sangue, mãe do Filho de Deus. Nesta relação e nesta família não é o sangue, a linhagem que cria os laços de pertença, nem o sentido de propriedade, mas sim a aceitação do outro pelo que ele vale por si próprio e aos olhos de Deus.
Podemos ver já vividas por Maria e José as recomendações de São Paulo aos Colossenses de que os esposos se devem respeitar e amar como convém no Senhor. E o que convém no Senhor é que os esposos se amem e vivam em comunhão, com sentimentos de misericórdia, de bondade, de paciência, de humildade e de mansidão.
Sentimentos que também devem presidir à relação com os filhos, à sua educação e formação, pois só assim eles poderão crescer em liberdade e responsabilidade, aprender a amar os pais por aquilo que receberam deles em termos de amor e carinho, e não apenas em termos materiais ou sociais.
Estas recomendações de São Paulo foram também vividas por Jesus porque o evangelista diz-nos ao terminar o relato deste episódio que ao regressar a Nazaré Jesus era obediente a seus pais e crescia em espírito, estatura e graça. O episódio de Jerusalém e a resposta um pouco desabrida mostra a consciência da sua liberdade e missão, mas também o sentido da educação que tinha recebido de seus pais. Uma vez mais e acima dos laços familiares estava o laço divino, a pertença e filiação divina, uma realidade que também a nós, a cada um de nós, nos deve marcar nas nossas relações.
Antes de mais, e antes de ser pais e filhos, geração genética e sanguínea, somos criaturas de Deus, somos seus filhos bem amados e portanto é a nossa filiação e relação divina que deve marcar a nossa vida e as outras relações que possamos estabelecer. A família e as relações familiares são um espelho não só da relação e familiaridade que habita a Trindade mas também da relação que Deus estabelece com a humanidade e com cada um de nós.
Desta realidade nasce um desafio enorme para as nossas famílias e relações familiares, que devem libertar-se do peso e dos laços humanos que as condicionam para passarem a viver fundadas no amor e na liberdade de Deus e na responsabilidade que tal forma de vida acarreta. Peçamos ao Senhor a graça de o podermos experimentar.

2 comentários:

  1. Boa noite Frei José Carlos,

    A homília do Domingo da Sagrada Família surpreendeu-me pela actualidade e pelo desafio que nos deixa. A pretexto "do episódio da perda e encontro de Jesus no templo de Jerusalém" fala-nos de uma outra dimensão para a qual caminha a realidade da Família de hoje (não é preciso que seja desestruturada e em crise...) e que passo a transcrever para não correr o risco de deturpar o que afirmou ..." Mas é aqui e nesta dimensão e circunstância de crise que a sagrada família de Nazaré se revela surpreendentemente uma família modelo, uma família a seguir e a imitar. E revela-se como modelo a imitar na medida em que não são os laços sanguíneos o que a une, nem é o poder ou a autoridade que governa, mas são outros valores, valores que ultrapassam a dimensão meramente sociológica, antropológica ou cultural, são valores evangélicos, valores da dimensão do transcendental e do divino". Rezemos ao Senhor para que sejamos capazes de libertar-nos do peso e dos laços humanos que condicionam as nossas famílias e relações familiares "para passarem a viver fundadas no amor e na liberdade de Deus e na responsabilidade que tal forma de vida acarreta". Que coragem e profundo desafio, Frei José Carlos. Um grande obrigada. Bem haja.MJS

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  2. Bom dia Frei José Carlos,
    A sua análise objectiva da realidade actual de infidelidade, causa grave e principal da desestruturação das famílias, deixando o elemento mais fraco, o que não provocou a rotura, com a consciência de que se refizer a sua vida recai em adultério; desta realidade em que o elemento mais fraco sofreu a inexplicável e inesperada traição
    sem estar preparado para ela, porque a confiança nos valores evangélicos era inabalável... O que resta a estas pessoas? Elas viveram responsavelmente fundadas no amor e na liberdade de Deus, a sociedade está preparada para justificar e punir o erro de quem provocou a rotura através das estruras legais, mas o sofrimento do elemento mais fraco de não se poder abeirar dos sacramentos se alguém livre surgiu e é uma promessa de uma nova vida a dois marcada por laços divinos.
    Este é o retrato do que se passa com um dos meus filhos com uma dor imensa por não se poder unir a alguém, uma amiga que reúne todas as condições de ser uma esposa exemplar e com provas dadas de ser uma excelente mãe de dois rapazinhos adoráveis educados no amor de Deus.
    É um desabafo para o qual gostaria de encontrar solução...
    GVA

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