quinta-feira, 2 de março de 2017

Se alguém quiser seguir-me! (Lc 9,23)

Iniciámos ontem a nossa caminhada quaresmal e hoje, sem quaisquer rodeios o Evangelho de São Lucas questiona-nos sobre o sentido da nossa caminhada. Sabemos para onde vamos? Sabemos como vamos? Sabemos o que levar?
Em poucas linhas o Evangelho de hoje recorda-nos que a nossa caminhada tem como destino a paixão e morte de Jesus. Caminhamos durante quarenta dias para nos prepararmos para esta experiência, na pessoa de Jesus e na memória que fazemos, na nossa própria pessoa quando chegar a horada nossa Páscoa.
Caminhamos descentrando-nos de nós próprios para fazer a experiência do amor, tal como Jesus fez quando acolheu a vontade do Pai, para mergulhar nessa torrente de amor que nos libertará da aniquilação da morte pela ressurreição, tal como realizou com Jesus. Caminhamos na memória do milagre do amor porque é na memória do amor que permanecemos vivos para a eternidade.
Caminhamos de mão vazias e estendidas, como peregrinos sem tecto nem pão, mas cheios de confiança porque sabemos que o nosso nada não nos perderá. A ruina e a ferrugem não alcançarão o nosso tesouro porque ele se constitui de boas obras, de palavras de ternura, de gestos de libertação. Caminhamos na esperança do Pai que nos espera de braços abertos para nos fazer tomar parte na sua alegria, a nós que fomos fiéis no pouco.
Caminhamos carregando a nossa cruz, a cruz de todos os dias com o seu peso e a sua dimensão por vezes desproporcionada à nossa pequenez. Tropeçamos nela tantas vezes e vamos até ao chão esmagados pela totalidade do seu poder sobre a vida que esperamos nossa e não nos pertence. Os nossos olhos rasos de água olham o pó, o pó que somos, e os veios da madeira que se dilatam como querendo escorrer o que nos resta de fôlego.
Um grito ecoa, de desespero, de solidão, “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?” E no silêncio o amor, e depois um sussurro leve de entrega porque acolhemos o amor da cruz, aprendemos a amá-la, “Pai nas tuas mãos entrego o meu espirito!”    
O amor é o nosso destino, o amor é o nosso caminho, o amor é o que levamos. A cruz recorda-nos que o amor se entrega, totalmente, e nessa entrega é ressuscitado. A caminhada da Quaresma é uma aprendizagem da crucifixão do amor que conduz à sua ressurreição gloriosa.

 
Ilustração:
“São Francisco abraçando Cristo crucificado”, de Bartolomé Esteban Murillo, Museu de Belas Artes de Sevilha.

quarta-feira, 1 de março de 2017

Homilia de Quarta-Feira de Cinzas

A leitura da Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios que escutámos terminava com as palavras, este é o tempo favorável, este é o dia da salvação. Ao iniciarmos a Quaresma nesta Quarta-Feira de Cinzas temos que assumir que este é também para nós o tempo favorável, um tempo propício a fazermos caminho ao encontro da Salvação.
Para nos ajudar a fazer este caminho a Igreja oferece-nos, a partir das palavras de Jesus no Evangelho de São Mateus, um conjunto de exercícios ou obras, como são a esmola, a oração e o jejum, para mais facilmente caminharmos em direcção à meta.
Para muitos são um sacrifício, exigem um esforço suplementar, uma disposição que parece ir em sentido contrário do que nos parece normal, um confronto duro e doloroso com aquilo que nos satisfaz e que nos é gratificante.
Contudo, temos que assumir que Jesus não nos pede nada que esteja para além das nossas forças, alguma coisa que se oponha à nossa realização. Assim sendo, a esmola, a oração e o jejum são movimentos de vida, são actividades que deviam fazer parte da nossa vida, do nosso quotidiano.
A Igreja ao propô-las na Quaresma cumpre o seu papel de mestra e sábia, pois oferece-nos um período, que poderíamos dizer experimental, para percebermos como são importantes e até inerentes à nossa própria condição humana estas actividades e movimentos.
A esmola como movimento interior, profundamente humano, descentra-nos de nós próprios, faz-nos olhar para o outro que pode estar mais próximo ou mais longe mas que compõe também a minha existência. Eu não sou sem o outro, o outro faz-me e eu faço o outro com aquilo que partilho com ele.
Podemos assumir a esmola como uma oferta pecuniária, uma partilha de bens, mas ao assumi-la como um movimento interior, humano, a esmola é uma entrega de mim ao outro, é uma disposição de complementaridade, de fraternidade. A esmola humana é a partilha de mim, do meu tempo, da minha palavra, do meu afecto, do meu interesse. Nestas condições a minha esmola torna-se mais que humana, torna-se divina, pois vivo o mesmo movimento de entrega de Deus ao fazer-se homem como nós.
A oração como movimento interior, actividade humana, obriga-me a olhar a minha finitude mas igualmente a beleza e a grandeza da obra da criação. Na oração eu existo para um Outro que é meu criador e meu redentor, que me fez semelhante a si e por amor se fez semelhante a mim, menos no pecado, para me poder devolver à marca indelével do seu amor eterno.
Na oração como movimento interior humano não cumprimos preceitos nem realizamos ritos, ainda que eles estejam presentes como marcos para não nos desviarmos do centro, mas vivemos na luz e na força que nos move a buscar uma perfeição, uma plenitude, que sentimos existir e à qual pertencemos. Como diz Santa Catarina de Sena, mergulhamos num oceano que nos apela a mergulhar cada vez mais fundo.
O jejum, como actividade profunda do ser humano, conduz-nos à relativização das nossas necessidades, dos nossos afectos e satisfações. O jejum mostra-nos o quanto verdadeiramente temos necessidade, como afinal é tão pouco o que nos alcança a felicidade, que não depende do conjunto dos bens mas da alegria que nos provoca o que possuímos. No jejum faço a experiência da minha finitude, da minha pobreza existencial enquanto dependente de factores externos de subsistência, mas também da riqueza existencial enquanto me relaciono com os outros.      
Por isso, e tal como nos alertava o Papa Francisco, o jejum que mais necessitamos não é o jejum de bens materiais, mas o jejum e a abstinência das palavras que podem ferir o outro, que não o deixam crescer e desenvolver, realizar-se em plenitude, o jejum de palavras que não nos dignificam, que nascem do nosso coração para humilhar e escravizar o outro. Afinal e como nos diz Jesus, não é o que entra pela boca do homem que o contamina, mas o que sai e nasce do coração com maus desejos.
Querendo lançar-nos nesta caminhada quaresmal, assumindo estes movimentos naturalmente, não podemos deixar de ter presentes duas realidades que nos são apontadas por São Paulo e pelo profeta Joel.
A realidade apontada por São Paulo prende-se com a iniciativa de Deus, com a reconciliação que Deus operou com todos os homens e mulheres e que portanto nos solicita um acolhimento sincero, franco, sem temor. As nossas obras, a nossa disposição para a conversão, são um caminhar ao encontro do que Deus nos oferece, do que já realizou por nós em Jesus Cristo seu Filho. Esta iniciativa divina deve assim animar-nos na confiança, no esforço exigido pelos movimentos.
Ânimo e confiança que são reforçados pelas palavras do profeta Joel, pois tal como ele diz ao povo de Israel, Deus pode deixar atrás de si uma bênção. Para o profeta, a conversão do povo, o acolhimento da clemência e compaixão de Deus acarreta consigo uma bênção divina, que não podemos deixar de agradecer.
A nossa caminhada Quaresmal no esforço e na confiança que lhe colocarmos, nas obras de conversão e encontro que realizarmos, vai ser uma experiência de graça, uma bênção de Deus. Procuremos pois ir confiantes, e ainda que em qualquer momento a caminhada se torne mais dura e árida, que caiamos na rotina e no desalento, não deixemos de acreditar que a bênção do Senhor nos precede e nos segue, é nela que nos movemos desde sempre.
 
Ilustração:
1 – “O jovem rico”, de Heinrich Hoffman, Riverside Church, New York.
2 – “Cristo no jardim das oliveiras”, de Heinrich Hoffman, Riverside Church. New York

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Homilia do VIII Domingo do Tempo Comum

Com a leitura do Evangelho que escutámos chegamos ao fim do chamado Sermão da Montanha e do período do Tempo Comum que medeia o tempo do Natal e a Quaresma. Na próxima quarta-feira, com a imposição das cinzas, damos início à caminhada de preparação para a celebração da Páscoa.
Tendo presente já esta caminhada não podemos deixar de ler e assumir o Evangelho nesta perspectiva, não podemos desperdiçar as possibilidades que nos oferece de elaborarmos propósitos de conversão, de mudança de vida, para vivermos verdadeiramente a experiência da ressurreição de Jesus na próxima festa da Páscoa.
Neste sentido olhamos para as palavras de Jesus que nos diz que a vida é mais que o alimento e o vestuário, que a vida é mais que as realidades que todos os dias nos envolvem, realidades que fazem parte da vida mas não são a vida na sua essência.
É incontestável que necessitamos ocupar-nos e preocupar-nos com o que temos que vestir e comer, com a casa onde habitamos, com a qualidade de vida que é necessária facultar àqueles que dependem de nós, com as seguranças que necessitamos para qualquer desaire ou desastre da nossa vida.
Contudo, e como Jesus nos alerta, essas preocupações e ocupações não podem distrair-nos do verdadeiramente fundamental, bem pelo contrário devem estar orientadas e iluminadas pelas necessidades verdadeiras e fundamentais para a vida do homem. Não nos podemos dar ao luxo da idolatria do bem-estar, mas devemos viver em tudo e com tudo como um dom ou um serviço que nos é facultado para um bem maior como é a nossa plenitude humana e divina.
Jesus não é um romântico que acredita no amor e uma cabana, também não está alucinado com um idealismo naturalista; ele conhece bem as dificuldades e necessidades dos homens e mulheres, pois faz parte de uma família, trabalha com as suas próprias mãos e conhece as dificuldades que passam aqueles que são oprimidos e explorados pelo império dominador.
É face a esta diversidade de situações que Jesus nos vem alertar para o valor natural de cada um, de cada homem e mulher, que vale mais do que o que come e o que veste, que vale mais do que o que produz ou como se apresenta. Jesus apresenta-nos o que verdadeiramente nos deve preocupar e ocupar, o nosso ser, o valor intrínseco de cada um de nós, tenha mais ou tenha menos dinheiro, seja reconhecido publicamente ou viva no anonimato. Valemos muito mais do que o valor que nos damos.
Neste sentido, e na medida em que a Igreja nos convida a viver exercícios de centralidade pessoal como são o jejum, a esmola e a oração, de que forma os podemos assumir no tempo quaresmal que se nos oferece dentro de dias? Como vou libertar-me de alguma coisa, como vou jejuar, para me centrar no valor de mim próprio, naquilo que verdadeiramente sou aos olhos de Deus? Quantas alienações me afastam de mim próprio e necessito assumir para me encontrar comigo, na minha verdadeira pessoa enquanto relação com os outros e com Deus?
E daquilo que me liberto, do que jejuo, como o vou partilhar com o outro, como fazer esmola? Não uma esmola meramente material, que muitas vezes não nos altera em nada, que não me faz ver o valor da vida, mas uma esmola que me descentra de mim próprio e me leva ao encontro do outro naquilo que ele é e eu devo valorizar para um verdadeiro e pleno encontro. Quantas vezes estamos com os outros mas não nos encontramos, não retiramos as máscaras que nos escondem.
Nesta esmola do encontro com aquilo que verdadeiramente somos e que o outro é, temos que assumir as palavras de São Paulo que escutámos na leitura da Primeira Carta aos Coríntios. Não nos podemos importar com o que os outros podem pensar, com o juízo que podem fazer da nossa fragilidade ou da nossa força, porque ninguém é justo para poder julgar o outro e apenas a Deus cabe o direito de julgar. O importante é a consciência que não nos acusa de nada, porque em tudo procuramos o Reino de Deus e a sua justiça, e portanto nada há a temer.
Esta fidelidade e consciência tranquila são fruto dessa confiança e fé de que Deus não nos abandona, de que Deus se preocupa connosco e nos acompanha nas nossas necessidades. Tal como nos recordava o profeta Isaías, Deus é como uma mãe que não se esquece dos seus filhos, porque é fruto das suas entranhas, carne da mesma carne. E nós somos fruto das entranhas do amor de Deus Pai, que nos criou e nos redimiu depois de nos termos perdido no nosso egoísmo para sermos seus filhos adoptivos.
É esta ternura solícita de Deus que nos deve fortalecer e animar a olhar para nós com valor e a olhar os outros com respeito e carinho, com o valor que lhes é devido. Afinal, e como diz São Paulo, nós somos administradores, somos gestores dos mistérios de Deus, e o maior mistério é a vida do homem, é a nossa pessoa, que apesar das suas fragilidades e infidelidades continua a ser amada por Deus, continua a ser cuidada e acarinhada por Deus, porque como diz Santo Ireneu “a glória de Deus é o homem vivo”.
Procuremos pois a glória de Deus cuidando da vida de todos e cada um, precedendo cada gesto e cada palavra, cada obra realizada, com o amor total que é a justiça do Reino de Deus.

 
Ilustração:
1 – “A idolatria de Salomão”, de Sebastiano Conca, Museu do Prado, Madrid.
2 – “O juízo de Salomão”, de Peter Paul Rubens, Statens Museum for Kunst, Copenhaga.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Homilia do VII Domingo do Tempo Comum

Ao terminarmos as leituras que a Liturgia da Palavra nos oferece neste domingo não podemos deixar de dizer e assumir que estamos diante de leituras provocadoras, revolucionárias, textos que nos obrigam a pensar um pouco mais a nossa condição humana e a nossa identidade de cristãos e filhos de Deus.
A leitura do livro do Levítico convida-nos a ser santos porque Deus é santo. A realidade do nosso quotidiano parece levar-nos para bem longe dessa santidade. No entanto, e apesar de tudo, a santidade permanece, está lá no meio destas realidades, está presente como um dom, como um gérmen que faz parte da nossa constituição essencial. Criados à imagem e semelhança de Deus, de Deus que é santo, possuímos na nossa matriz essa santidade divina.
São Paulo, na Carta aos Coríntios que escutámos na segunda leitura, recorda-nos essa santidade ao dizer-nos que somos templos de Deus, que o templo de Deus é santo, e portanto na habitação do Espirito em cada um de nós partilhamos a santidade de Deus.
A santidade é assim um dom que nos é feito, que nos constitui, mas que necessita como todos os dons de ser desenvolvido de modo a alcançar a plenitude, a fonte e o cume da sua essência. Por essa razão o livro do Levítico traduz a santidade em recomendações muito práticas, como o não odiar o irmão, o não vingar-se, o não guardar rancor, em suma, em amar o próximo como a si próprio.
Podemos dizer que a santidade de acordo com o Levítico se traduz num conjunto de normativas vividas de modo a respeitar e a amar o próximo, um próximo que faz parte da nossa tribo, do nosso povo, da nossa cultura, que se insere na nossa zona de conforto.
As palavras de Jesus no Evangelho de São Mateus vão contudo mais longe, radicalizam a santidade, porque já não se trata de um esquema normativo, de uma práxis enquadrada, mas de uma audácia e generosidade sem mais. A santidade é para ser vivida de forma extravagante, exorbitante, poderíamos dizer “provocadora”.
Por isso, e fazendo referência à Lei de Talião, dente por dente olho por olho, Jesus parte para uma proposta inovadora e radical, para uma proposta que se desenquadra, que toma uma carga de exagero e por isso é provocadora para o outro. A santidade em acção altera-nos, faz-nos outros, e faz do outro alguém diferente.
Para expressar esta extravagância da santidade, Jesus utiliza as imagens da face que se oferece a quem bateu, da túnica e do manto, das milhas a caminhar. Há sempre mais, há um extraordinário que se oferece ao outro e que o outro não espera, que o surpreende e provoca. Oferecer a outra face é desarmante, é manifestar que a violência não tem sentido, dispor-se a entregar o manto quando se discute por causa de uma túnica, é manifestar a relativização dos bens, dispor-se a caminhar duas milhas é manifestar a generosidade do tempo e da disponibilidade.  
Para uma completa compreensão destas palavras de Jesus não podemos deixar de ter presente que o manto era segundo a Lei de Moisés algo que não se podia guardar para o outro dia, mesmo que fosse o penhor de algum negócio. O manto tinha a carga social, psicológica e religiosa da protecção que era devida a cada homem. Não se podia ficar com a protecção do outro. E Jesus convida a disponibilizá-la como manifestação de santidade.
Também não podemos deixar de referir que a expressão usada pelo evangelista para se referir ao pedido de caminhar é nova e unicamente usada no Evangelho quando Simão de Sirene é solicitado a levar a cruz de Jesus. Não se trata assim apenas de um acompanhar o outro mais umas milhas, mas de carregar com ele, de levá-lo mais longe do que o solicitado, poderíamos dizer de alterá-lo para melhor.
Mas se o nosso egoísmo e egocentrismo nos conduzem frequentemente em sentido contrário ao que nos é proposto por Deus, a nossa avidez de satisfação não nos deixa espaço de liberdade, temos que olhar de caras as palavras de São Paulo quando diz aos cristãos de Corinto, como nos diz a cada um de nós, tudo é vosso, mas vós sois de Cristo.
Tudo nos é oferecido, tudo nos é proporcionado, porque não somos então capazes de viver em liberdade e liberalidade, confiando ao outro o que nos foi confiado, conscientes que a promessa de Jesus para a nossa generosidade e amor é uma retribuição cem vezes maior e mais satisfatória?
Necessitamos por isso de olhar a santidade com outros olhos, com os olhos de Deus, percebendo que na medida do nosso amor e da nossa generosidade para com todos estamos a ser perfeitos como o Pai, porque nessa dádiva sem medida e recompensa nos aproximamos e assemelhamos ao Filho que é Jesus Cristo, verdadeira garantia de todos os dons presentes e futuros.

 
Ilustração:
“Domine quo vadis?”, de Annibale Carracci, National Gallery, Londres.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Homilia do V Domingo do Tempo Comum

Acabámos de escutar no Evangelho, “vós sois o sal da terra, vós sois a luz do mundo”! Duas afirmações de Jesus que não podem deixar de nos ser repetidas todos os dias, que não podemos deixar de assumir na nossa vida. Elas são verdadeiramente fundamentais, constituem-nos naquilo que somos como discípulos de Jesus.
Para termos uma maior percepção do significado destas palavras, poderíamos dizer desta admoestação de Jesus, necessitamos olhar o momento em que elas são proferidas e o peso que o próprio Jesus lhes dá.
Neste sentido, não podemos esquecer que nos encontramos no capítulo quinto do Evangelho de São Mateus, no chamado discurso da montanha, e que Jesus alerta os seus discípulos com estas palavras imediatamente a seguir à proclamação das bem-aventuranças, que escutámos no domingo passado. Assim, umas e outras estão intimamente associadas, e associam-se naquilo que podemos dizer que é a virtude mais intrínseca às bem-aventuranças, a esperança.
Para nos ajudar a compreender esta associação, temos que olhar também para a função do sal, para a utilização do sal ao tempo de Jesus. É verdade que seria um condimento para a comida, e portanto facilmente percebemos como somos chamados a condimentar a vida com a nossa fé. Mas o sal era igualmente um conservante, o elemento usado para conservar alguns alimentos, e é nessa dimensão e função que Jesus nos interpela. Os discípulos de Jesus são chamados a conservar a esperança, a não a deixar corromper pelos embates da vida.
Face às bem-aventuranças, e nomeadamente às duas últimas que falam de perseguição, o desafio que Jesus nos coloca é de não desanimar nem desistir, ainda que possamos fraquejar, que o possamos negar. Ele não nos pode negar, não nos pode abandonar, e por isso essa ordem de ser como o sal, de perseverar e preservar o dom recebido. Não é tarefa fácil, podemos levantar o sobrolho um bocadinho cépticos, mas a verdade é que é necessário, nós somos os continuadores dessa missão, somos os guardiões desse tesouro.
A história de dois mil anos mostra-nos que aqueles que perseveraram na esperança foram capazes de mudar o mundo à sua volta, foram capazes de animar outros homens e mulheres a não desistir, foram fonte de esperança e muitas vezes de alternativa ao que parecia inevitável. Imediatamente brilham na minha memória a Madre Teresa de Calcutá, o Papa João Paulo II, pois tivemos a oportunidade de os conhecer em vida, de conhecer as suas palavras, a esperança que o alimentava e que contagiavam a outros homens e mulheres.
Ao recordá-los, instintivamente percebemos a dimensão de ser luz para os outros, a segunda admoestação de Jesus aos seus discípulos depois das bem-aventuranças. A verdadeira luz é o próprio Jesus, mas aqueles que o seguem e confiam na sua presença e auxílio reflectem essa luz, quando e sempre que realizam as obras de misericórdia inerentes às bem-aventuranças. Tal como nos diz o profeta Isaías que escutámos na primeira leitura, aquele que mata a fome do próximo, aquele que o acolhe, aquele que lhe dá de vestir, aquele que não vira as costas ao seu semelhante, faz a luz acontecer, brilha como a luz nas trevas, pois é precedido nos seus actos pela luz do amor de Deus que o alcançou e deixa com o seu gesto e testemunho um rastro luminoso de uma outra realidade possível, a realidade do Reino de Deus.
Esta missão que Jesus nos confiou, de ser sal e luz no mundo, vive no entanto no fio da navalha, sujeita as duas grandes tentações, que muitas vezes nos levam a desistir pois frequentemente caímos nelas. São as tentações da grandeza de meios e do orgulho egocêntrico.
São Paulo alerta-nos para elas no trecho da Primeira Carta aos Coríntios que escutámos, quando nos diz que não se apresentou com sublimidade de linguagem ou grandes títulos diante daqueles aos quais anunciou a boa nova de Jesus. Foi com humildade, a tremer de veras e com temor que se apresentou, porque se sabia ministro, enviado de alguém maior que ele, com uma verdade que não lhe pertencia. Foi com poucos meios que anunciou a Jesus Cristo.
Diante da convocatória de Jesus para a missão somos muitas vezes tentados pela grandeza, pelo desejo de ter grandes meios, uma grande eloquência, os melhores meios técnicos para levar os outros a acreditar e a mudar de vida. E afinal Jesus e o testemunho de São Paulo dizem-nos que não necessitamos nada disso, que é na pobreza e na humildade que a obra de Deus se desenvolve. Como diz São Paulo, é quando sou fraco que então sou forte.
Esta consciência leva-nos também a perceber o orgulho, essa ilusão de que as coisas acontecem por nós e pelas nossas forças e inteligência. Não somos nós que somos a luz, mas apenas espelhos da luz, e por isso se há algum mérito é o do nosso esforço e trabalho de busca constante, o nosso tentear para perceber cada vez melhor a luz e deixá-la transparecer em nós. E ainda aqui, e neste trabalho, muito temos a agradecer a Deus pelo que vai fazendo em nós.   
A Palavra do Senhor neste quinto domingo do Tempo Comum conduz-nos assim a cuidar a nossa esperança, a tomar consciência deste tesouro que levamos e somos chamados a oferecer aos outros, na simplicidade e na confiança, porque nessa partilha activa e concreta nos transformamos em porta luz da grande Luz que é Jesus Cristo, da total manifestação de amor de Deus aos homens seus filhos.

Ilustração:
1 – “O Recém-nascido”, de Georges de La Tour, Museu de Belas Artes, Ontário.
2 – Pormenor de “Madalena Penitente”, de Georges de La Tour, Louvre-Lens.

domingo, 22 de janeiro de 2017

Homilia do III Domingo do Tempo Comum

A leitura do Evangelho de São Mateus que escutámos apresenta-nos o início do ministério público de Jesus, os primeiros momentos da sua vida pública, aquilo que poderíamos dizer o lançamento da exposição aos olhos de todos.
Por esta razão, São Mateus apresenta nesta passagem os grandes tópicos da vida de Jesus, os elementos que vão marcar o seu ministério e que nos próximos domingos iremos encontrar nas leituras do Evangelho, como são o apelo à conversão, o ensino da nova Lei, a proclamação da presença do Reino dos Céus, e as curas e milagres que manifestam essa presença a todos os homens sem excepção.
Neste início do ministério de Jesus, São Mateus tem também a preocupação de nos situar, de nos contextualizar estes primeiros momentos, não só a nível geográfico mas também a nível histórico, poderíamos dizer circunstancial, e assim nos informa que Jesus passou de Nazaré para Cafarnaum após a prisão de João Baptista.
Perante esta informação poderíamos supor algum medo por parte de Jesus, algum temor relativamente à sua vida, mas tal não está em causa, porque a migração para Cafarnaum representa um dado mais do assumir de Jesus da profecia de Isaías de que nos fala o Evangelista e que mais tarde, no regresso à sua terra natal, Jesus vai assumir verbalmente diante de todos provocando o escândalo e a rejeição por parte daqueles que o conheciam desde a infância.
A opção geográfica de Cafarnaum como local para início das actividades prende-se inevitavelmente com a pujança económica e o desenvolvimento da cidade, mas também com a abertura cultural, uma certa marginalidade religiosa que deixa terreno para uma convocatória, para um anúncio de algo novo a acontecer. Como Jesus dirá num outro momento, não são os bons que necessitam de cura! Aquele caminho do mar onde circulavam povos tão diferentes, aquela Galileia dos gentios, estavam preparados na sua diversidade para escutar.
E é por um apelo que Jesus inicia a sua actividade, um apelo à conversão, à semelhança e na continuidade de João Baptista e da sua pregação junto do rio Jordão. Jesus vai ao encontro das expectativas e desejos daqueles homens que certamente se encontravam desorientados, como ovelhas sem pastor, face ao que acreditar, em que Deus acreditar, pois eram tantos e cada um com a sua singularidade.
É com uma pregação curta e incisiva, directa, com este apelo à mudança de vida, e sem qualquer discurso moralista, que Jesus consegue captar a atenção, consegue distinguir-se e fazer-se ouvir, consegue captar a benevolência de uns quantos que decidem deixar tudo para o seguir quando os chama no meio dos seus afazeres e trabalhos.
As redes que Pedro e André lançavam e que Tiago e João concertavam representam na perfeição a situação em que se encontravam todos aqueles homens e mulheres aos quais Jesus se dirige e apela a uma mudança de vida. Afinal também eles andavam enredados com diversas realidades que não lhes permitia viver em liberdade e dignidade, também eles estavam presos nas malhas da rede de uma vida sem sentido.
E por incrível que pareça continuamos envolvidos nessas mesmas redes, continuamos a ser capturados por aquelas redes que nos quartam na nossa liberdade, na nossa dignidade, que nos impossibilitam de viver em plenitude. São as redes do nosso egoísmo, da nossa injustiça ou violência, da nossa preguiça, da exploração e utilização do próximo como um objecto ou uma mercadoria. Tantas realidades que nos aprisionam.
E Jesus vem lançar-nos o desafio de assumirmos ser pescadores de homens, de entrarmos numa nova rede, Jesus vem oferecer-nos a liberdade optando por constituir uma malha da rede do amor, por ser uma pedra viva da Igreja que é o seu corpo. Opção pessoal e intransmissível que não se fundamenta em doutrinas ou discursos, mas apenas e exclusivamente num encontro de intimidades, se assim podemos falar.
São João, testemunha privilegiada destes primeiros chamamentos junto às margens do lago, conta-nos que a resposta de Jesus face à disponibilidade dos pescadores para o seguir foi “vinde ver”, vinde viver na intimidade a experiência e então sabereis como ser pescadores de homens, como partilhar a minha missão, como a vossa vida pode ser outra.
São Paulo, na Carta aos Coríntios que lemos, não deixa de assinalar a mesma necessidade, pois com a sabedoria das palavras corremos o risco de desvirtuar a cruz de Cristo. É a vida, a intimidade da relação com Deus e o testemunho na relação com os irmãos que podem despertar no outro a curiosidade por Jesus, o desejo de largar as redes que nos prendem, que nos transforma em pescadores de homens.   
Peçamos a Deus Pai a luz do Espirito para sermos verdadeiramente anunciadores do Evangelho, de Jesus crucificado que nos salvou, não com palavras mas com obras de misericórdia.

 
Ilustração:
“os Pescadores Valencianos”, de Joaquin Sorolla y Bastida.

domingo, 8 de janeiro de 2017

Homilia da Solenidade da Epifania do Senhor

Estamos a terminar o tempo do Natal, e a Solenidade da Epifania coloca-nos diante desse grande mistério da revelação de Deus aos homens no mistério da Encarnação. Deus faz-se carne da nossa carne e os magos vindos do oriente para adorar o Menino revelam-nos que esse mistério, que essa encarnação, se dirige a todos os homens e a todos os tempos.
Nesse sentido, é bom que tenhamos presente duas realidades que trespassam os textos da primeira leitura do Profeta Isaías e o Evangelho que escutámos, como são o desafio da superação da desilusão, e a grandeza divina da realidade quotidiana.
O texto do profeta Isaías que escutámos faz eco de um momento delicado da história do povo de Israel, pois assiste-se ao regresso do povo à sua terra depois do exílio na Babilónia. Foi um momento de grande euforia, de grandes esperanças e alegrias. Contudo, o choque com a realidade, com a pobreza, com a destruição do templo e a incapacidade imediata de o reconstruirem, gerou uma grande desilusão e frustração. As expectativas estavam longe de serem alcançadas.
É neste cenário, perante este espirito de um certo derrotismo, que o profeta vem lançar o seu grito de esperança, que desafia o povo a não perder a esperança, bem pelo contrário a reanimá-la e a reforçá-la pois algo maior ainda está para acontecer. Aqueles que acreditarem e perseverarem na esperança do cumprimento das promessas divinas não só reconstruirão o templo como verão afluir a ele todos os povos e os tesouros das nações.
A chegada dos magos a Jerusalém e a inexistência de qualquer recém-nascido no seio da família real deve ter provocado também uma desilusão, pelo menos num primeiro momento. Ter-se-iam equivocado na sua busca? Teria sido em vão todo o esforço da viagem? Inadvertidamente Herodes vai servir de reanimador da esperança, vai servir de ponte à frustração do desencontro, e vai reencaminhar a esperança daqueles homens para o que vinham buscar desde longe. Afinal as Escrituras confirmavam a busca em que se tinham envolvido.
Esta realidade da frustração, da desilusão face às expectativas que construímos, pode também acontecer connosco, com cada um de nós e nas mais diversas situações da vida, no nosso mundo profissional, nas nossas relações afectivas, na nossa própria relação e expectativa face à acção de Deus. Num primeiro momento podemos viver como se tudo se fosse realizar como idealizado, sonhado, e depois confrontarmo-nos com uma realidade bem diferente.
As leituras do profeta Isaías e do Evangelho de São Mateus dizem-nos que não podemos cruzar os braços, que não podemos perder a esperança. São naturais as expectativas, são luminosos e gratificantes os primeiros momentos, mas também existem os desafios que se lhes seguem, as dificuldades que necessitamos enfrentar e superar. E é quando continuamos a viver na esperança, a lutar por acreditar, que fazemos a experiência do extraordinário que estava ao virar da esquina. Para os magos foi a estrela que novamente se iluminou e os conduziu ao lugar onde se encontrava o menino. Continuar a acreditar, manter viva a esperança, faz-nos encontrar a luz que nos guia à realização plena.
Realização plena que não se encontra no alto dos céus, nem na profundidade dos mares, acessível apenas a alguns eleitos. A realização encontra-se presente no nosso dia-a-dia, na nossa casa, nessa casa a que os magos se dirigiram e onde encontraram o Menino Rei que procuravam. É no nosso quotidiano, nas nossas realidades mais simples e básicas, que nos podemos encontrar com Deus, que lhe podemos oferecer o que de melhor temos.
Seria certamente diminuto o sentido do mistério da encarnação, do Filho de Deus se fazer carne da nossa carne, homem como todos os homens excepto no pecado, se não fosse para nos mostrar que é na nossa condição humana que se encontra o caminho para a nossa realização plena, para a nossa felicidade, iniciada aqui e agora através do bem e do amor, da verdade e da justiça com que vivemos e que nos projecta na eternidade.
Deus manifesta-se na nossa humanidade para a divinizar, em todas as dimensões, em todos os tempos e em todos os lugares, e os magos que procuram o Menino representam-nos a todos neste processo de busca e encontro. Deus vem ao nosso encontro se partirmos também ao seu encontro. E quando tal encontro acontece, regressamos inevitavelmente como os magos por outro caminho, o caminho da nossa humanidade divinizada, o caminho da consciência da nossa identidade divina.
Procuremos pois manter acesa a nossa busca, assim como a esperança de a levar a bom termo, pois é essa esperança que nos conduz. Tal como diz o poema de São João da Cruz somente a sede nos ilumina na busca da fonte, “de noche iremos, de noche, que para encontrar la fuente, solo la sede nos alumbra”.

 
Ilustração:
“Adoração dos Magos”, de Andrey Mironov.