quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Dominicanos...perspectivas para estes tempos

Quando refundou a Ordem de São Domingos em França, Lacordaire escreveu que a “essência da Ordem de São Domingos é a salvação das almas pela doutrina e pela pregação, mediante as observâncias monásticas claramente determinadas pelas nossas Constituições, e uma hierarquia electiva em todos os seus níveis”. Determinava-se o fim, os meios principais e os meios secundários que regiam a Ordem.
Podemos recorrer ao momento fundacional de São Domingos para pensar e repensar a Ordem e a sua presença no mundo, ibérico como o nosso, nos nossos dias, mas creio que o momento de refundação de Lacordaire está mais próximo do nosso, ainda que também já bastante distante. Se no tempo de São Domingos os valores e referências religiosas e espirituais eram comuns, aceites por todos ainda que com incidências diferentes, no tempo de Lacordaire essa realidade tinha já mudado alguma coisa. O século da Luzes, a revolução francesa e o fim de Napoleão tinham trazido outros valores, outras referências, uma realidade social e religiosa diferentes. Hoje estamos ainda mais diferentes e quando falamos de algumas realidades religiosas, alguns conceitos estruturalmente cristãos, encontramo-nos com homens e mulheres que não sabem do que estamos a falar ou que não querem saber.
Assim, e face a estas realidades convém realmente reflectir sobre o que queremos para os nossos tempos, que ordem de São Domingos se adequa a estes tempos que são os nossos em universo ibérico.
Antes de mais, e é uma questão de fé, teologal e por isso basilar, estamos ainda convencidos da necessidade da salvação de almas? Acreditamos que há ainda almas para salvar, ou que valha a pena salvar, e com as almas os corpos dos nossos irmãos? Quando olhamos para alguma complacência com que vivemos podemos interrogar-nos se de facto ainda acreditamos nesta necessidade, neste fim da Ordem.
Acreditamos que temos essa missão, e vivemos para ela, ou pelo contrário o que fazemos quer socialmente ou intelectualmente serve apenas para nosso deleite e realização pessoal?
E se ainda acreditamos, como usamos os meios que a Ordem dispôs sabiamente para essa missão? Que doutrina assumimos e pregamos? E que pregação realizamos?
Neste sentido e num mundo de novos areópagos em qual deles nos situamos, porque não podemos estar em todos.
São Domingos escolheu a itinerância mendicante, Lacordaire o ensino esmerado, e nós o que podemos escolher? Onde nos podemos situar para pregar?
A Ordem sempre teve fama de intelectualidade, e para isso contribuíram os nossos antepassados da teologia como São Tomás. O século XX deixou-nos a memória de Lagrange, Congar, Chénu, Tillard. Pensaram a fé e contrastaram-na com os valores e desvalores do seu tempo. Poderemos nós fazer o mesmo, mesmo que isso implique pagar o preço que quase todos eles pagaram de serem mandados silenciar, de serem remetidos para a escuridão das bibliotecas. Mas foi nessa escuridão que brilharam.
Que ousadia nos habita hoje para pensar? É verdade que sempre estivemos na Igreja e com a Igreja, mas não foi o nosso serviço maior a essa mesma Igreja, questionar, levá-la a pensar sobre o que fazia e como o fazia?
Tudo isto no entanto só foi possível devido a uma outra realidade teologal, da fé, a experiência pessoal e comunitária de Deus. Os nossos irmãos que foram mandados silenciar, que foram perseguidos, as nossas comunidades que estiveram na vanguarda da teologia ou dos direitos do homem rezavam juntas, viviam em comum e partilhavam as suas fraquezas e virtudes. Não eram perfeitos, ainda que a ideia de perfeição nos acompanhe como um aguilhão desde que combatemos os cátaros, mas acreditavam nos irmãos e acreditavam que Deus estava com eles e naquilo que faziam.
Uma presença dominicana que queira ser significativa neste século XXI tem que regressar a estas experiências, a uma vivência sã e salutar daquilo que se diz serem as observâncias regulares. Não podemos viver sem rezar conjuntamente, sem partilhar a nossa fé e os nossos estudos, sem guardar um conjunto de disciplinas que ajudam a moldar o nosso ser e a testemunhar da experiência divina que fazemos.
Neste âmbito tem lugar reflectir sobre a visibilidade, sobre os sinais exteriores. Não podemos negar que o hábito branco e negro é a nossa melhor imagem de marca e que a sabemos utilizar muito pouco. Outros certamente a explorariam de uma forma mais comunicacional e produtiva, mas creio que nunca tivemos essa veia. Contudo, e para além do hábito e do sinal de pertença que ele pode traduzir, temos o nosso Oficio coral, esse momento comum que marca o nosso dia a dia e as nossas raízes monásticas. Quantas vezes o temos descuidado e dessa forma perdido uma oportunidade de nos conhecerem, de nos tornarmos significativos para homens e mulheres que andam em busca de um momento especial na rotina do seu dia a dia.
Desde sempre a democracia e o sistema electivo marcou o nosso governo e as nossas relações. Disso nunca abdicámos nem poderemos abdicar, mas nesta democracia cabe repensar a responsabilidade dos superiores, daqueles que foram eleitos para governar e da oportunidade de novos projectos, da criatividade e responsabilidade pastoral. Hoje e mais do que nunca necessitamos líderes, líderes que governem as comunidades em equilíbrio de diferenças promovendo e perseguindo a unanimidade, combatendo a uniformidade e a indiferença, líderes que sonhem com novas formas de presença, novos projectos e que com o seu sonho arrastem outros atrás.
Pouco depois de fundar a Ordem São Domingos dispersou os poucos frades que viviam com ele. No momento da partida João de Navarra recusou-se a partir para Paris sem levar dinheiro para a viagem. Não deve ter sido fácil para São Domingos mas por fim todos partiram e certamente João com o dinheiro que necessitava e considerava necessário para a viagem e instalação na cidade da universidade.
Hoje e no nosso contexto se queremos partir para algum lado, se queremos construir alguma coisa temos que saber o que os irmãos necessitam, que dinheiro pedem para a viagem e instalação, e com este dinheiro não queremos referir-nos ao vil metal, porque esse ainda vamos tendo, mas àquilo que pode levar os irmãos a querer recomeçar tudo de novo, com uma nova alegria e esperança. Que sonhos transportamos connosco para sermos outro Domingos, outros Lacordaire, ou até outro João de Navarra?

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,
    Quem ousa dizer que o conhece e que de alguma maneira lhe seguiu os passos desde os seus votos definitivos à sua ordenação, até hoje,na sua partilha da oração e da palavra com os que regular ou irregularmente têm o privilégio de estar consigo e com todos, num chamamento de imitação de vida,só pode desejar-lhe a realização dos seus sonhos, dos vossos sonhos de Dominicanos.
    Que o Senhor o ajude sempre a recomeçar com alegria e esperança.
    Tenha uma santa noite,
    GVA

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