Solilóquio ao Santíssimo Sacramento, incluindo o Mistério da Oração do Horto de D. José de Faria Manuel
Senhor, quando nessa forma / Sacramentado vos vejo
Não sei em que forma, ou como / Fale de vossos extremos.
Porque são tão peregrinos / Nesse augusto Sacramento
Que embaraçado o discurso / Só toma pé no silêncio.
Aí Senhor fino amante / Vos entregais todo inteiro
Alma, ser, e divindade, / Corpo, Sangue, vida, alento.
E de qualquer à vontade / Tão facilmente sujeito
Que nem fugis dos agravos / Nem recusais os empenhos.
Tão hidrópico de penas / (Enfim sois amante eterno)
Que suposto que impassível / Nelas vos estais revendo.
Se este sois nesse retiro, / Se assim é, como confesso,
Como aquela noite infausta / Tivestes às penas medos?
Naquela, digo, em que o céu / Esteve sangue chovendo
Tanto que a corrente abriu / Na terra sulcos, e regos.
Não porque as nuvens o dessem / Em horroroso portento
Mas porque o Sol o suava / Pavoroso, ou estupendo.
Não esse sol material / Que eclipsado depois vemos
Mas vós meu Sol de justiça / Carregado dos meus erros.
Que como de minhas culpas / Éreis o resgate, e preço,
Chegada a hora da paga / Vos pôs a justiça o pleito.
Mas quem vos visse sair / Para este sucesso mesmo
Desde o Cenáculo ao Horto / Repetindo hinos, e versos.
Qual candidíssimo cisne, / Cantando da morte ao tempo
Tão sabedor da vossa hora, / Como amante desse excesso.
Ao monte das oliveiras / Que estavam todas tecendo
Capela a vosso amor / Para os triunfos mais certos.
E logo que ao Pai pedíeis / Com terníssimos afectos;
Cheia a alma de agonia, / E o coração de ânsias cheio.
Pai meu, Pai meu, se é possível / Revogar-se este decreto
Tão cruel, passe de mim / Este cálice de tormentos.
Mas se é contra a obediência / Este favor que vos peço
Não quero minha vontade, / Só vossa vontade quero.
Pedis e não alcançais? / É grande pena prevendo-o,
Pois sabeis, não há-de ter / Despacho o requerimento.
Um Anjo vem confortar-vos / Sendo vós dos Anjos prémio?
Não sei se lhe chame alívio / Pois vo-lo dá quem é menos.
Se isto não é buscar penas / Ou motivo ao sofrimento,
Sendo alívio o padecer, / Meu Senhor eu não o entendo!
Que é isto Senhor? Que é isto? / Não sei se vos desconheço!
Com finezas tão amantes / Há temores tão incertos?
Não sabe temer perigos / Esse amor que é verdadeiro
Pois sois verdadeiro amante / De quem são esses receios?
Ai ò humana enfermidade! / Mas ai ò favor supremo!
Que prevenindo este caso / Se antecipou nos remédios.
Pois Sacramentado aí / Torna o Amor por si mesmo
Deixando-se quando vivo / Da morte um vivo modelo.
Deu abonada fiança / Nesse Real Sacramento
Que daria pelos homens / A vida em tosco madeiro.
E que seria seu sangue / Herança de testamento,
Ainda que a vontade humana / Recusasse estes efeitos.
Dai-me pois Senhor vontade / Memória, e entendimento
Com que lembrando-me deles / Vos ame, como lhes devo.[1]
[1] FALCONI, Francisco – Rosário do Santíssimo Sacramento, Lisboa, Domingos Carneiro, 1662.
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