É pena que a leitura
que escutámos não inclua o versículo imediato, porque nele é-nos dito que Deus
fez um vestido de peles para cobrir o homem e a mulher. Com o texto que nos é
apresentado ficamos apenas com a lógica do castigo pela transgressão, podemos
até dizer que com um espirito de vingança expresso na promessa feita de a
mulher esmagar a cabeça da serpente. E afinal trata-se de muito mais que isso.
Assim, podemos e
devemos unir a leitura do livro do Génesis com o Evangelho de São Lucas, com o
relato da anunciação, e ver num e noutro momento o grande movimento de Deus, a
sua actividade existencial que se realiza em vir ao encontro do homem. Deus vem
ao encontro do homem pecador para o salvar, para o proteger da sua própria desgraça,
desse desejo íntimo de querer ser Deus e não se reconhecer criatura.
Após comerem do fruto
da árvore proibida o homem e a mulher descobrem-se nus, e tentam infantilmente
cobrir essa nudez entrelaçando folhas de figueira à volta da cintura, como se a
sua condição pudesse ser salva pelas suas mãos. Apesar de vestidos, cobertos
nas suas vergonhas, não estão aptos a apresentar-se diante de Deus que vem ao
seu encontro.
Face a esta desgraça, à
transgressão cometida, e da qual resulta esta incapacidade de se apresentarem,
Deus cobre-os com um vestido de pele, porque sem ela seriam chagas vivas,
horrores monstruosos que nem se poderiam olhar. Ainda hoje, cada um de nós, como
se tivesse estado presente naquele momento, quando vê uma ferida, a pele
arranhada, uma escoriação, não deixa de sentir uma certa repugnância, um mal-estar
que leva a desviar o olhar.
A pele com que Deus
cobre o primeiro homem e a primeira mulher é um gesto de misericórdia, é a
reabilitação da capacidade de relação e acolhimento. Deus vem em salvação do
homem pecador e transgressor e abre-lhe novamente as portas da relação, da
possibilidade do encontro com o outro e consigo próprio, pois como dirá Job, na
minha carne verei a Deus.
Estas palavras de Job
ganham uma dimensão superior quando olhamos para a anunciação do nascimento do
Filho de Deus, para o mistério da Encarnação do Verbo. A salvação oferecida aos
nossos primeiros pais, com o vestido de peles, não é suficiente para o verdadeiro
e pleno encontro com Deus. Podemos encontrar-nos uns com os outros, podemos até
dirigir-nos a Deus, mas haverá sempre uma barreira, a opacidade da nossa
fragilidade e contingência da nossa finitude. Na nossa pele continuamos a ser
seres finitos.
No seu amor extremo e
infinito pela obra criada à sua imagem e semelhança Deus vem habitar na própria
carne do homem, nessa carne que pudicamente escondemos e da qual desviamos o
olhar quando ela se nos apresenta ferida, sangrenta, em chaga. No seu amor infinito
pelo homem Deus não se exclui dessa experiência dolorosa, e se no momento do
nascimento como homem podemos contemplar a carne imaculada e divina de um
recém-nascido, no momento da sua morte sobre o madeira da cruz vemos a carne
macerada e ferida, trespassada pelos ferros, e da qual todos desviam o olhar.
Deus veio habitar na
nossa carne, na sua infinita e suprema misericórdia, para nos libertar da
tentação de querermos ser como deuses, de querermos ser anjos ou até
super-homens. Jesus Cristo oferece-nos a divinização na nossa carne, na nossa condição
humana, e por isso já não necessitamos de nada de extraordinário para nos
encontrarmos com Deus e até para nos encontrarmos verdadeiramente com os nossos
irmãos. É na nossa humanidade vivida, bem vivida, assumida na sua fragilidade e
na sua eternidade, que nos encontramos uns com os outros e com Deus presente em
cada um de nós, na nossa carne.
O mistério da
Imaculada Conceição de Maria, como rezamos na oração da colecta desta
solenidade, é uma preparação de uma digna morada para o Filho de Deus, uma morada
histórica e temporal enquanto necessária ao nascimento de Cristo na nossa carne
humana; mas é também uma antecipação do que a todos nos é oferecido, a possibilidade
do nascimento de Cristo na nossa vida, na nossa carne, a purificação das nossas
chagas putrificadas do pecado, na medida em que a deixarmos ser habitada pelo
Espirito Santo de Deus.
A Solenidade da
Imaculada Conceição de Maria coloca-nos diante do grande movimento de Deus ao
encontro do homem, um movimento que pode ser rejeitado, contraposto com o nosso
movimento de orgulho, ou que pode ser acolhido como Maria o fez diante da
anunciação do anjo Gabriel. Na Carta aos Romanos, São Paulo convida-nos a
acolhermo-nos uns aos outros como Cristo nos acolheu para glória de Deus.
Dispostos a celebrar a
vinda do Filho de Deus ao nosso encontro, no Natal do Senhor, estejamos também
dispostos a acolher todos os nossos irmãos que se dirigem a nós, pois na sua humanidade,
na sua carne muitas vezes ferida e magoada, está presente o Verbo de Deus. Que
nestes dias de Advento o procuremos ver!
Ilustração:
1 – Adão e Eva após o
pecado, Johan Vilhelm Gertner, Coleccção Privada, Dinamarca.
2 – Imaculada Conceição,
Peter Paul Rubens, Museu do Prado, Madrid.
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