O Evangelho deste quinto domingo da Quaresma apresenta-nos o episódio da mulher adultera, episódio da vida de Jesus que podemos considerar histórico ou muito provável uma vez que no seu tempo a questão da execução por lapidação estava em discussão junto dos rabinos e doutores da lei de Israel.
É um episódio que encontramos apenas no Evangelho de São João, ainda que provavelmente não seja da autoria de João, pois não só usa um vocabulário diferente do resto do texto do Evangelho, como se percebe pela leitura que foi um episódio colocado à força, como que enxertado na continuidade da narração do texto.
Os primeiros comentários ao Evangelho de São João, como o de São João Crisóstomo, desconhecem este relato e só com Santo Agostinho é que o vamos encontrar meditado e comentado. Há assim um desconhecimento, ou pelo menos uma certa reticência na sua aceitação, ainda que num texto siríaco do século terceiro como é a Didaskália ele apareça transcrito tal e qual como hoje os encontramos no Evangelho.
Isto significa que ainda que o acontecimento se tenha dado, que o texto se tenha redigido, houve uma certa dificuldade na sua aceitação. E a dificuldade prende-se com a natureza do pecado, com o adultério que não só era condenado pela lei de Israel mas que também foi condenado por São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios (1 Cor 6,9).
Foi necessária uma certa prática da reconciliação e da penitência, uma reflexão sobre o sucedido para se perceber que a história ia e vai muito para além do adultério da mulher apanhada em flagrante, ela é apenas um motivo para a revelação dos outros adultérios e da verdadeira relação que é pedida.
Assim, convém ter em conta que como o autor do texto diz tudo foi preparado como uma armadilha para apanhar Jesus, era ele o objectivo, era ele que queriam apanhar como adultero e por isso não aparece na história o homem que estava com a mulher em flagrante, porque à luz da lei de Moisés tanto um como outro deveriam ser apedrejados até à morte. Era Jesus que eles queriam apanhar, e queriam-no apanhar em flagrante face à lei e face à sua própria palavra.
É uma armadilha mortal, porque se Jesus se coloca do lado da lei de Moisés nega toda a sua compaixão, todas as suas palavras e gestos para com aqueles que tinham sido excluídos e eram considerados pecadores. Pelo contrário se não condena a mulher coloca-se contra a lei de Moisés, e como a própria lei estabelecia quem se colocasse contra ela deveria ser apedrejado, porque como a lei era de Deus não tinha nada de injusto. O círculo de morte que estabelecem à volta da mulher apanhada em flagrante envolve assim também Jesus, pois a pena de morte para o crime da mulher como para o crime do crítico da lei era a mesma.
Face a isto, a este desafio e a uma questão de vida, porque não era uma questão retórica que estava em jogo, Jesus levanta-se para pronunciar o seu juízo, para dar a resposta que eles pretendiam. E neste aspecto é interessante notar que Jesus se levanta mudando assim como que de plano e condição, deixando a posição humana para hieraticamente assumir a posição de Deus. “Quem não tiver pecados que atire a primeira pedra”.
E eles foram saindo, porque de facto tinham pecados, e o primeiro deles era o do próprio adultério, eles tinham sido infiéis a Deus ao arvorarem a própria lei como última resposta, como última realidade. A lei que lhes tinha sido dada como guia e orientação tinha sido idolatrada, tinha sido elevada à condição da própria divindade, esquecendo e subtraindo a misericórdia de Deus espelhada e subjacente à própria lei. Como lhes tinha anunciado o profeta eles tinham cavado cisternas para guardar a água mas as cisternas estavam rotas, os esquemas judiciais falhavam à essência da lei que era a misericórdia de Deus para com eles, para com todos os homens.
Abandonando o local fica apenas Jesus e a mulher, a adúltera e o verdadeiro esposo, ficam apenas Deus e a humanidade necessitada de perdão pela idolatria. E na sua misericórdia, dando cumprimento à essência da lei Jesus envia a mulher reconciliada para casa, ela que podia ter também abandonado a cena quando os outros se ausentaram. Porque razão ficou, senão porque no fundo esperava e desejava aquele perdão, o juízo de amor sobre a sua vida desencontrada?
Todos nós somos esta mulher porque quase todos os dias adulteramos a nossa condição de cristãos e filhos de Deus sujeitando-nos a outros senhores e a outros esposos, trocamos a felicidade da fidelidade do amor de Deus pelos prazeres momentâneos da nossa auto satisfação e glória. Idolatramos outras leis esquecendo-nos da verdadeira lei de Deus, da lei do amor, e neste aspecto somos também como aqueles fariseus e escribas porque nos nossos ambientes armamos os mesmos círculos de morte com as nossas críticas, as nossas invejas, o nosso azedume e até a nossa competição ou vaidade.
Necessitamos por isso ir abandonando esses esquemas, essas armadilhas, e ir deixando-nos ficar cada vez mais junto aos pés de Jesus para receber o seu perdão. E uma vez mais não podemos esquecer que se o juízo é proferido pela divindade, ela mantém-se abaixada na nossa humanidade, ao nosso nível, escrevendo no nosso pó da terra, a fórmula como lhe podemos seguir em fidelidade.
É um episódio que encontramos apenas no Evangelho de São João, ainda que provavelmente não seja da autoria de João, pois não só usa um vocabulário diferente do resto do texto do Evangelho, como se percebe pela leitura que foi um episódio colocado à força, como que enxertado na continuidade da narração do texto.
Os primeiros comentários ao Evangelho de São João, como o de São João Crisóstomo, desconhecem este relato e só com Santo Agostinho é que o vamos encontrar meditado e comentado. Há assim um desconhecimento, ou pelo menos uma certa reticência na sua aceitação, ainda que num texto siríaco do século terceiro como é a Didaskália ele apareça transcrito tal e qual como hoje os encontramos no Evangelho.
Isto significa que ainda que o acontecimento se tenha dado, que o texto se tenha redigido, houve uma certa dificuldade na sua aceitação. E a dificuldade prende-se com a natureza do pecado, com o adultério que não só era condenado pela lei de Israel mas que também foi condenado por São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios (1 Cor 6,9).
Foi necessária uma certa prática da reconciliação e da penitência, uma reflexão sobre o sucedido para se perceber que a história ia e vai muito para além do adultério da mulher apanhada em flagrante, ela é apenas um motivo para a revelação dos outros adultérios e da verdadeira relação que é pedida.
Assim, convém ter em conta que como o autor do texto diz tudo foi preparado como uma armadilha para apanhar Jesus, era ele o objectivo, era ele que queriam apanhar como adultero e por isso não aparece na história o homem que estava com a mulher em flagrante, porque à luz da lei de Moisés tanto um como outro deveriam ser apedrejados até à morte. Era Jesus que eles queriam apanhar, e queriam-no apanhar em flagrante face à lei e face à sua própria palavra.
É uma armadilha mortal, porque se Jesus se coloca do lado da lei de Moisés nega toda a sua compaixão, todas as suas palavras e gestos para com aqueles que tinham sido excluídos e eram considerados pecadores. Pelo contrário se não condena a mulher coloca-se contra a lei de Moisés, e como a própria lei estabelecia quem se colocasse contra ela deveria ser apedrejado, porque como a lei era de Deus não tinha nada de injusto. O círculo de morte que estabelecem à volta da mulher apanhada em flagrante envolve assim também Jesus, pois a pena de morte para o crime da mulher como para o crime do crítico da lei era a mesma.
Face a isto, a este desafio e a uma questão de vida, porque não era uma questão retórica que estava em jogo, Jesus levanta-se para pronunciar o seu juízo, para dar a resposta que eles pretendiam. E neste aspecto é interessante notar que Jesus se levanta mudando assim como que de plano e condição, deixando a posição humana para hieraticamente assumir a posição de Deus. “Quem não tiver pecados que atire a primeira pedra”.
E eles foram saindo, porque de facto tinham pecados, e o primeiro deles era o do próprio adultério, eles tinham sido infiéis a Deus ao arvorarem a própria lei como última resposta, como última realidade. A lei que lhes tinha sido dada como guia e orientação tinha sido idolatrada, tinha sido elevada à condição da própria divindade, esquecendo e subtraindo a misericórdia de Deus espelhada e subjacente à própria lei. Como lhes tinha anunciado o profeta eles tinham cavado cisternas para guardar a água mas as cisternas estavam rotas, os esquemas judiciais falhavam à essência da lei que era a misericórdia de Deus para com eles, para com todos os homens.
Abandonando o local fica apenas Jesus e a mulher, a adúltera e o verdadeiro esposo, ficam apenas Deus e a humanidade necessitada de perdão pela idolatria. E na sua misericórdia, dando cumprimento à essência da lei Jesus envia a mulher reconciliada para casa, ela que podia ter também abandonado a cena quando os outros se ausentaram. Porque razão ficou, senão porque no fundo esperava e desejava aquele perdão, o juízo de amor sobre a sua vida desencontrada?
Todos nós somos esta mulher porque quase todos os dias adulteramos a nossa condição de cristãos e filhos de Deus sujeitando-nos a outros senhores e a outros esposos, trocamos a felicidade da fidelidade do amor de Deus pelos prazeres momentâneos da nossa auto satisfação e glória. Idolatramos outras leis esquecendo-nos da verdadeira lei de Deus, da lei do amor, e neste aspecto somos também como aqueles fariseus e escribas porque nos nossos ambientes armamos os mesmos círculos de morte com as nossas críticas, as nossas invejas, o nosso azedume e até a nossa competição ou vaidade.
Necessitamos por isso ir abandonando esses esquemas, essas armadilhas, e ir deixando-nos ficar cada vez mais junto aos pés de Jesus para receber o seu perdão. E uma vez mais não podemos esquecer que se o juízo é proferido pela divindade, ela mantém-se abaixada na nossa humanidade, ao nosso nível, escrevendo no nosso pó da terra, a fórmula como lhe podemos seguir em fidelidade.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarComo bem afirma ..."Todos nós somos esta mulher porque quase todos os dias adulteramos a nossa condição de cristãos e filhos de Deus sujeitando-nos a outros senhores e a outros esposos, trocamos a felicidade da fidelidade do amor de Deus pelos prazeres momentâneos da nossa auto satisfação e glória. (..) somos também como aqueles fariseus e escribas porque nos nossos ambientes armamos os mesmos círculos de morte com as nossas críticas, as nossas invejas, o nosso azedume e até a nossa competição ou vaidade."
Que Jesus nos ajude a abandonar esses "esquemas", essas "armadilhas" e sejamos capazes de ter a humildade e a coragem para reconhecer os nossos erros, as nossas fragilidades e receber o Seu perdão. Obrigada por nos ajudar a interpretar este episódio da vida de Jesus. Bem haja.MJS
P.S. Frei José Carlos,
Dediquei uma parte da tarde deste domingo para reler alguns dos textos que publicou em 2009, para fazer uma retrospectiva. Falta pouco tempo (próximo Maio) para relembramos que, em tão boa hora, iniciou este blogue. Pela ajuda que nos (seguidores do blogue) tem dado, tomo a liberdade de colocar-lhe uma questão, e um desafio: considera a hipótese de vir a reunir os textos numa brochura, numa publicação simples, que possamos ter à mão, em qualquer momento, para reler, meditar? Se não fui curial nesta abordagem, peço-lhe que me perdoe.MJS
Frei José Carlos,
ResponderEliminarApresento as minhas desculpas. No P.S. aonde se lê Maio, deve ler-se "Abril 2009". MJS
Frei José Carlos,
ResponderEliminarColoca-nos perante os círculos de morte que armamos com o que de menos bom pensamos, sentimos e fazemos, mas relembra-nos igualmente a esperança de alcançarmos o perdão de Deus Humanizado, ao lutar com perseverança contra a sujeição ao pecado.E a oração é sempre a arma mais poderosa.
GVA