Solilóquio ao Santíssimo Sacramento incluindo o Mistério da Cruz às Costas de André Nunes da Silva
Divina obreia, que cerra / Aquela carta que ao golfo
Do mundo sempre inconstante / Serve de roteiro, e porto.
Em cujo papel, a Fé / Advertida lê, sem olhos,
Em cinco breves palavras / De todo um Deus, o ser todo.
A quém Sábio instituíste, / Humano, e divino Esposo,
Porque no mar da Paixão / Vos decifrasse os escolhos.
Quando o Soberano Lenho / Fiando sacros despojos
Na morte a vida buscáveis, / Na pena acháveis o logro.
A aquele madeiro Santo, / Que foi por divino abandono,
Para vossa morte porta, / Para nossa vida porto.
Chave foi com que do céu / Nos abristes o tesouro,
Que para ser chave mestra / Até com guardas a noto.
Porque estava destinada, / Para ser remédio nosso,
Lhe destes Senhor os braços, / Sobre lhe dares os ombros.
Tanto afectais nesse lenho / Os tormentos rigorosos,
Que de novo lhe dais glórias, / Se vos dá penas de novo.
Cruz santa, aumentai-lhe as dores, / Que de seus extremos colho,
Que se lhe afrouxais as ânsias / Vos há-de virar o rosto.
Das duas acções que teve / Árvore sacra convosco,
No princípio, e fim das penas, / Na vida, e na morte o provo.
Enquanto penas lhe destes / Vos deu os braços gostoso,
Porém tanto que afrouxaram, / Vos voltou as costas logo.
Quando ruínas padecia, / Por culpas o mundo todo,
Então porque não caísse, / Pusestes à ruína o ombro.
Oh quanto! Senhor, ò quanto / Pesadas as culpas noto,
Pois quem sustenta o criado / Pediu à terra socorro.
Mas sendo vós Deus, e sendo / A Carga pecados toscos,
Impróprio era em vós parar, / Parar na terra era próprio.
Do incruento sacrifício, / Recordação do penoso,
Que nesta cruz padecestes / Por salvar o mundo todo.
De minha dor lastimado / Oh pelicano amoroso,
Este pródigo admiti, / Purificai este monstro.
Que sendo-me (doce Amor) / Do mundo no vario golfo
Roteiro o Pão, tábua a Cruz / Tomarei seguro porto.[1]
[1] FALCONI, Francisco – Rosário do Santíssimo Sacramento, Lisboa, Domingos Carneiro, 1662.
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