Todos os anos no
segundo domingo da Quaresma somos confrontados com a narração da transfiguração
de Jesus no alto do monte Tabor. Surpreendentemente, e apesar de só três discípulos
terem presenciado este momento e de lhes ter sido dito para não revelarem nada
a ninguém, os três evangelistas sinópticos narram este acontecimento como se
fosse algo verdadeiramente significativo, demasiado importante para ser
esquecido ou ficar apenas na privacidade de poucas testemunhas.
Sabemos que a
transfiguração ocorre depois de Jesus ter anunciado aos discípulos a sua paixão
e morte em Jerusalém, o futuro que o espera, e que se afasta bastante do que
são as expectativas dos discípulos. Podemos dizer que a transfiguração é um
apoio, um vislumbrar do que afinal está em jogo e vai para além do inevitável e
trágico da morte, um incentivo a passar a barreira da dor e do sofrimento da
perda do mestre.
Contudo, e sabendo
também nós o pouco que os discípulos percebiam e intuíam da pessoa e missão de
Jesus, é de todo plausível assumir que tão pouco perceberam alguma coisa do
momento da transfiguração. Só as aparições do ressuscitado lhes terá permitido
perceber o que afinal lhes tinha sido dado contemplar na transfiguração, a
glória do Filho escondida na nossa roupagem humana.
E é esta uma das
razões para a importância e significado dados pelos evangelistas ao momento da
transfiguração, pois o que de facto está em jogo é a nossa humanidade, a
humanidade onde habita a glória de Deus.
A assistência de um
público numeroso àquele momento teria como consequência a busca do
espectacular, do maravilhoso de Cristo, a busca de um super-homem, quando não é
esse o objectivo da manifestação. Se tal tivesse acontecido Santo Ireneu
perderia a oportunidade e as razões para dizer que a glória de Deus é o homem
vivo, o homem vivo na sua humanidade e chamado a santificar essa humanidade
assumindo plenamente a glória que o habita.
A transfiguração é de
facto um vislumbre da glória divina, glória que habitou entre nós na pessoa e
na carne de Jesus Cristo pelo mistério da encarnação, e que nos assumiu também
ali naquele momento quando envolveu Pedro Tiago e João sob a mesma sombra. Todos
participaram e foram assumidos na manifestação da glória, pois de contrário e
como foi dito em outros momentos não teriam sobrevivido, pois ninguém pode ver
a glória de Deus e viver.
Esta consciência do
perigo de morte face à glória de Deus está patente no medo dos três discípulos envolvidos
pela nuvem, no seu cair por terra, pois sabiam que não podiam ver a glória
divina. Mas o medo torna-se maior e mais angustiante quando se percebe que a
manifestação da glória divina acontece na pessoa de um homem, daquele Jesus que
eles conheciam e admiravam mas que desconheciam na sua identidade divina, na
sua glória natural.
Se pensarmos com um
pouco de seriedade, não podemos deixar de assumir que de facto é assustador,
até aterrador, pensar que a glória de Deus habita num homem, habita em cada um de
nós, que há uma luz e uma força que estão para além de nós próprios e que nos
assume e incorpora, mas que de certa maneira evitamos porque nos é mais fácil
viver sem a assumir, sem a ter presente.
A transfiguração de
Jesus é uma promessa da nossa transfiguração, podemos até dizer que é a sua antecipação
ao realizar-se na humanidade de Jesus, mas que pela nossa fragilidade humana
não nos é ainda permitido viver em plenitude.
Vivemos assim como
Abraão num momento de promessa, de proposta divina, que exige sair da nossa
terra, da nossa família, do nosso conhecido e da nossa zona de conforto para
entrar numa dinâmica de passagem, de peregrinação, para entrar num processo que
fará de nós mais do que somos e podemos ver agora.
Sermos testemunhas da
transfiguração, assumi-la como um mistério que nos pertence, é entrar nessa
dinâmica proposta a Abraão de ser mais, de ser uma bênção para todos os povos e
todos os homens. Aquele que se sabe habitado pela glória divina não pode deixar
de abençoar e procurar ser uma bênção para todos aqueles que com ele se cruzam.
Paulo pede isso mesmo a Timóteo na leitura que escutámos, quando lhe afirma que
fomos chamados à santidade pelo desígnio de Deus.
Nas circunstâncias da
nossa vida com as suas dificuldades e limitações, a transfiguração vai
realizando-se na medida em que vamos estando abertos e dispostos à graça de
Deus, à escuta da palavra do Filho que nos revela a nossa identidade e o amor
do Pai por cada um dos seus filhos. Nessa atitude cooperante com a graça,
podemos descer do monte, das nossas experiências intimas com Deus que nos
iluminam e fortalecem, e podemos encontrar-nos de rosto transfigurado pelo amor
com os nossos irmãos que nos aguardam no seu sofrimento e nas suas necessidades.
Que a Palavra de Deus,
escutada, meditada, rezada, nesta Quaresma, nos faça assumir a glória que nos habita
e somos chamados a venerar em cada um dos nossos irmãos.
“Transfiguração de Jesus”, de Francesco Zuccarelli, Lempertz Auctions.
“Abraão e os três anjos”, de Giovanni Battista Tiepolo, Museu do Prado.
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