segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Homilia do IV Domingo do Tempo Comum Ano B

A leitura do Evangelho de São Marcos que escutámos apresenta-nos aquilo que poderíamos chamar o “debutar” de Jesus, o primeiro acontecimento com impacto público da vida e missão de Jesus, a cura do homem com um espirito impuro na sinagoga de Cafarnaum.
Estamos no primeiro capítulo do Evangelho de São Marcos e se o compararmos com os outros Evangelhos Sinópticos ficamos com a sensação que o autor tem pressa, que há nele um desejo tremendo de síntese, e assim retirou da narração outros factos que tanto o Evangelho de Mateus como o de Lucas nos apresentam projectando dessa forma esta jornada de Cafarnaum para capítulos posteriores.
Tal facto, rapidez sintética, deve-se ao público para o qual São Marcos escreve, o público romano habituado aos tratados de direito e à história, à oratória pública, e ao qual é necessário apresentar aquele que fala com autoridade, aquele Jesus que não é mais um comentador de tratados, mais um escriba, mas alguém que tem poder de palavra e cujos milagres, cujos gestos, confirmam esse mesmo poder de palavra.
E assim, para confirmar esse poder de palavra, essa autoridade que os romanos são chamados também a reconhecer, São Marcos apresenta-nos o homem possuído de um espirito impuro que é libertado por Jesus, pela sua autoridade expressa em palavras que agem, que transformam.
Hoje, para cada um de nós, esta mesma necessidade de reconhecimento mantém-se válida e assim somos chamados por Deus e na nossa procura de fidelidade a escutar a Palavra feita carne, a escutar Jesus, a perceber o seu poder, a acolher o seu poder transformante da nossa vida, a sua dinâmica libertadora daquelas realidades que nos afastam do projecto de Deus e inviabilizam a nossa plenitude humana.
Contudo, esta palavra transformante, libertadora, pode gerar o medo, pode colocar-nos na mesma situação daquele espirito impuro que interpela Jesus na certeza de que algo se vai perder, alguma coisa vai sofrer uma conversão. Afinal de contas, é esta uma das experiências mais básicas do homem, o sentimento de medo face ao desconhecido, face à novidade, face à perda de poder e controlo.
Algumas vezes face à interpelação de Deus, ao convite a uma vida nova, ao seguimento do seu Filho, também nós sentimos medo, pois percebemos que enveredamos por uma nova vida que não sabemos onde nos levará, que nos desinstalará do que conhecemos e damos por garantido, que nos exige algo mais do que estamos habituados a dar. E sabemos como damos muito pouco! Se das nossas capacidades físicas utilizamos pouco mais de dez por cento, que poderemos dizer das nossas capacidades espirituais?
Mas é face a este medo que Jesus se nos apresenta como a luz e a verdade, a fortaleza e o refúgio seguro, como a autoridade por natureza, para que não temamos a novidade radical do projecto de Deus, a conversão que nos é solicitada e está ao nosso alcance, à mão das nossas capacidades.
Jesus apresenta-se com autoridade para o nosso próprio interesse, como diz São Paulo na Carta aos Coríntios, não é para nos perdermos nem para nos armar uma cilada, bem pelo contrário, é para que vivamos em segurança, em liberdade, num justo equilíbrio entre aquilo que são as nossas preocupações do mundo e a necessidade urgente de centrarmos a nossa vida em Cristo Jesus.
E hoje em dia, face a tantas solicitações do mundo, a tanta preocupação com os filhos, com o trabalho, com a sustentabilidade da família, é necessário que não nos deixemos vencer pelo medo, mas bem pelo contrário que nos fortaleçamos com um espirito de optimismo, de confiança, não perdendo o norte de que tudo o que fazemos deve estar orientado para Deus e por Deus, para a nossa plena realização como homens e mulheres e filhos de Deus.
Não temais é o grande convite de Jesus nas aparições após a ressurreição e continua a ser o convite que nos é feito hoje. O medo impede-nos de caminhar, de nos equilibrarmos, de nos abrirmos à novidade do Reino de Deus, à transformação da nossa vida. Face a esse medo, não podemos deixar de rezar reutilizando as palavras do espirito impuro: Senhor, eu sei quem tu és, o Santo de Deus, tens tudo a ver connosco, porque te fizeste um de nós em Jesus de Nazaré, faz-nos viver na graça da salvação que nos alcançaste.

 
Ilustração:
1 – O Exorcismo, Les Très Riches Heures du Duc de Berry, Musée Condé, Chantilly.
2 – Jesus abençoando o mundo, Les Très Riches Heures du Duc de Berry, Musée Condé, Chantilly.  

domingo, 21 de janeiro de 2018

Homilia do III Domingo do Tempo Comum Ano B

As leituras que escutámos neste terceiro domingo interrelacionam-se por temáticas comuns, como são a questão do tempo e a forma como o vivemos, como são a conversão que necessitamos realizar em cada dia, em cada momento, no tempo que nos é concedido viver.
A leitura do profeta Jonas é certamente a mais clara e incisiva das leituras de hoje na questão da conversão, pois Jonas vai à grande cidade de Nínive para provocar a mudança de atitudes, para provocar a conversão, tão desejada por Deus, que não se vinga nem quer a morte do pecador, mas pelo contrário que se converta e viva.
Contudo, e como nos diz o texto lido, este apelo foi tido em consideração em pequeno espaço de tempo. Jonas não precisou atravessar a cidade para ser escutado, bem pelo contrário, os habitantes de Nínive perceberam a urgência da conversão, a escassez do tempo, a sua brevidade, como nos recorda também São Paulo na leitura da Carta aos Coríntios, e logo após o primeiro dia de anúncio proclamaram um jejum e vestiram-se de saco, do maior ao mais pequeno, do rei aos animais.
O Evangelho de São Marcos que acabámos de escutar apresenta-nos no entanto já outra realidade, um tempo que poderíamos dizer ultrapassado, pois Jesus sai a anunciar que o tempo se cumpriu e o Reino de Deus Está próximo. Já não se trata de termos mais ou menos tempo para mudar de vida, para a nossa conversão, mas de assumirmos a conversão que nos é oferecida, a oportunidade e possibilidade de mudar de vida, pela simples razão de que o Reino de Deus já está entre nós, no meio de nós.
É este o sentido do convite de Jesus a Pedro e André que se encontram a pescar, o convite a acompanhá-lo para serem pescadores de homens. A perspectiva é numa primeira abordagem completamente descabida, pois como é possível pescar homens em vez de peixes; mas quando olhamos o apelo como uma proposta a mudar de vida, a aceitar uma outra vida que já não é apenas sua, mas acção da graça de Deus, do Espirito de Deus, percebemos que Pedro e André podem ser pescadores de homens, assim como cada um de nós, por essa vida nova vivida divinamente.  
Olhando para o momento seguinte e a diferenciação que o evangelista São Marcos faz relativamente aos assalariados que ficaram com o pai de André e João, percebemos a novidade e extravagância do convite e da proposta. Trata-se de uma alteração de estatuto, de identidade, de relação, pois aqueles que seguem Jesus, os que aceitam ser pescadores de homens não são já assalariados, mas bem pelo contrário amigos e íntimos frequentadores do Senhor da messe. Trata-se daquilo que Jesus vai dizer mais tarde aos discípulos, que já não são servos, escravos, mas amigos, aqueles que conhecem a intimidade do seu amo e senhor, e portanto não podem deixar de ser como ele.
É claro que esta alteração não acontece de um momento para o outro, temos que dizer que é progressiva, pois todos nós estamos condicionados por aquilo de que nos apropriamos, das pescarias que consideramos produto do nosso esforço e trabalho. Os discípulos sofreram o mesmo, e por isso os vemos ainda depois da ressurreição a perguntar a Jesus se ia restaurar o reino de Israel.
De facto, para acedermos e vivermos a conversão que Jesus nos oferece temos que nos ultrapassar em muitas realidades e desejos, em muitas gratificações e satisfações que buscamos, temos que nos libertar do que nos ocupa e preocupa no quotidiano e que nos afasta de Deus, da sua intimidade, da vida divina que nos é oferecida.
São Paulo na Carta aos Coríntios apresenta-nos essa necessidade, essa mudança que temos que realizar na perspectiva da provisoriedade das coisas, da sua limitação e finitude, afinal como estão todas condenadas à morte, a desaparecer, e não podemos fixar aí nem o nosso coração nem a nossa vida. E neste sentido, o índice mais incisivo desta realidade é o nosso próprio corpo, que com a idade se vai centrando cada vez mais, que na perda de capacidades vai perdendo relação com o exterior e se vai fixando no interior, numa outra realidade que não dominamos.
O tempo que hoje nos é concedido a cada um de nós é assim o tempo de Deus, um tempo em que o objecto dos nossos desejos deve passar do exterior para o interior, em que Deus deve crescer e tornar-se o centro da nossa vida e das nossas palavras.
Assim, o cristão não se distingue, nem deve distinguir-se por práticas estranhas ou desumanas, por rituais bizarros, mas por essa consciência da sua integração em Deus, por essa atitude de fé e de esperança de que estamos chamados a ser bons, a ser melhores, que Deus nos oferece a graça para isso, e portanto procuramos adequar a nossa vida a essa possibilidade e oferta. Deus não é o extraordinário que nos altera a vida, mas o centro da vida que vivemos extraordinariamente.
Que esta semana que agora iniciamos fique marcada por esta alegria de Deus que habita em nós, por esse desejo de querer viver com intensidade e plenitude, que certamente marcará os nossos irmãos e os despertará para a mesma vida plena.

 
Ilustração:
1 – A Vocação de Pedro e André, de Federico Barocci, Museu do Rei Jan III, Palácio de Wilanow, Varsóvia.
2 – Santa Maria Madalena Penitente, de Guido Reni, Walters Art Museum, Baltimore.

domingo, 14 de janeiro de 2018

Homilia do II Domingo do Tempo Comum Ano B

Após as festas do Natal estamos a iniciar um novo tempo litúrgico, um tempo que nos vai permitir conhecer e acompanhar a vida pública de Jesus, e iniciamos esse novo tempo com o relato do encontro de Jesus com André e João junto do rio Jordão.
É um momento importante, bastante importante, e por essa razão João vai recordá-lo nesta dimensão tão especial e pormenorizada no seu Evangelho, esquecendo e deixando completamente perdidas na memória as razões porque estava ali, as razões porque João Baptista lhes indica, a ele e a André, que aquele Jesus é o Cordeiro de Deus.
Contudo, e ainda que o Evangelho não nos faça presente as razões porque aqueles dois se encontravam ali, podemos intui-las, pois aqueles que se tinham abeirado de João Baptista eram homens e mulheres insatisfeitos, homens e mulheres que buscavam um sentido para as suas vidas, um outro sentido, uma possibilidade de um encontro renovado com Deus.
Ao desejo de André e João, à sua busca, encaminha-se o desejo e a busca de Deus, num processo que se faz a meias. O homem caminha-se ao encontro de Deus que naturalmente vem ao encontro do homem. Nesta circunstância é Jesus que passa, que se aproxima, para que o encontro se dê. E como poderiam estar perdidos, sem saber muito bem onde se encontravam nesta busca, João Baptista aponta-lhes a resposta, a oportunidade. Está ali, é aquele.
Quantas vezes não nos deparámos, também nós, com esta explicitação, com este dedo apontado de João Baptista, agora na palavra, no gesto, no testemunho de alguém com quem nos cruzámos? Afinal Deus continua a vir ao nosso encontro, continua a querer responder aos nossos desejos e à nossa busca, continua a perguntar a cada um de nós, que procurais? Que procuramos?
E sem que tenhamos consciência disso, a nossa questão continua a ser a mesma, “onde vives”, onde podemos estar contigo, onde nos podemos encontrar contigo, onde podemos ser contigo? É uma questão primordial na nossa vida e para a qual Deus continua a responder-nos como Jesus respondeu a João e a André, “vinde ver”.
Sabemos que não viram muito, não podiam ter visto muito, pois naquele local deserto pouco mais haveria que umas pequenas tendas para aqueles que pernoitavam, antes ou depois do baptismo de João. Estando ali de passagem, Jesus não podia deixar de estar numa delas.
Se olharmos para o futuro, passados três anos sobre este primeiro encontro, para a manhã da ressurreição, este mesmo João vai ver apenas o lençol e as ligaduras no sepulcro vazio de Jesus; contudo, é-nos dito que depois de ter visto, e só ter visto isto, acreditou.
O convite de Jesus a vir e ver é assim algo que vai para além dos sentidos físicos, é um ver de coração, é um vir para ser com, é a oferta de poder repousar a cabeça sobre o seu peito, tal como João o fez na noite da última ceia, na noite do maior amor e da maior traição.
Ir e ver é acolher uma transformação, é fazer a experiência de Deus em nós, de sermos outros que não nós próprios, outros que são filhos de Deus, que são habitação sua, que são templo do Espirito Santo, e, tal como nos diz São Paulo na segunda leitura que escutámos, devem viver com dignidade a sua dimensão corpórea.
Esta transformação da nossa condição, da nossa identidade, poderíamos até dizer da nossa natureza, está explicita no encontro de Jesus com Simão que passa a ser Pedro, como nos relata o Evangelho. E se olharmos para a relação que existe entre Pedro e pedra percebemos que o novo nome dado ao irmão de André está fundamentado na rocha onde todos devemos construir a nossa casa, sobre a rocha que nenhum temporal pode derrubar.
A tradição bíblica judaica reconhece o templo como a rocha, mas é também no Senhor Deus como um rochedo que nos podemos refugiar, como canta o salmista. Jesus assume esta ideia, que poderíamos dizer metafórica, e assim aparece-nos como o novo rochedo de onde dimana a água viva, o rochedo novo da construção do templo que é Ele próprio. E todos aqueles que se encontram verdadeiramente com ele, que buscam a sua semelhança, são como uma rocha, uma casa bem alicerçada, um outro Pedro.
Todo este processo, esta possibilidade de encontro, comporta no entanto algo que hoje em dia nos exige algum esforço, como é a escuta. Necessitamos escutar, necessitamos ouvir, necessitamos estar atentos, e para tal necessitamos fazer silêncio, exterior e interior.
Se André e João não estivessem atentos, à escuta do que João Baptista dizia, não teriam visto Jesus, não se teriam apercebido da sua presença no meio da multidão. Se Samuel, que encontrámos na primeira leitura, não estivesse no silêncio da noite, não teria escutado a voz de Deus. Necessitamos escutar, porque como nos diz São Paulo a fé chega-nos pelo ouvido, pelo que escutamos.
O Papa Francisco ainda esta semana, numa das suas homilias, chamava a atenção para a necessidade de fazermos momentos de silêncio nas nossas celebrações litúrgicas. Na tradição dominicana diz-se que o silêncio é o pai dos pregadores. Necessitamos pois de silêncio.
Que nesta semana que agora iniciamos sejamos capazes de guardar silêncio, de nos dispormos a escutar o que o Senhor nos diz, a encontrar-nos com Ele para transformados e conscientes na sua habitação em cada um de nós nos encontrarmos dignamente com os nossos irmãos na busca comum do sentido da vida.

 
Ilustração:
1 – Ecce Agnus Dei, de Giovanni di Paolo, Art Institute of Chicago.
2 – Correndo para o sepulcro, de Eugène Burnand, Musée d’Orsay, Paris.