quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Eu farei de vós pescadores de homens! (Mt 4,19)

É nas margens do mar da Galileia que Jesus chama os primeiros discípulos, homens habituados à faina da pesca, pescadores de toda a vida.
Por isso não é estranho que Jesus os tenha convidado para ser pescadores, para que no seu seguimento continuassem com o exercício da actividade que antes exerciam sem qualquer problema. Afinal tratava-se de deixar uma rede por outra rede.
Contudo, o objecto da pesca deixa de ser o mesmo, os pescadores do mar da Galileia deixam de pescar peixes para se tornarem pescadores de homens. Proposta inusitada e até desconcertante, propensa a questionamentos.
Se o Evangelho de Mateus não nos faz eco desses questionamentos, não é no entanto displicente fazê-los aqui e agora. Como é possível ser pescador de homens? Como se pescam homens? E sobretudo, sabendo nós que a pesca representa a morte dos peixes, retirados do seu habitat natural, como pescar homens não acarreta o mesmo fim, ou seja, a morte dos homens pescados?
A bem da verdade, temos que assumir que ser pescado representa verdadeiramente uma morte, mas no caso dos homens uma morte para a vida, pois deixamos as águas do nosso pecado, da nossa condição mortal, e somos elevados a uma outra vida, a uma outra dignidade e qualidade de vida, à vida divina.
Pelo baptismo, fomos pescados das águas do abismo do pecado e elevados para a barca da vida da graça. Interessa saber de que modo e até que ponto continuamos a debater-nos para nos libertarmos da rede e voltar às águas turvas, ou pelo contrário nos sujeitamos com humildade e confiança a ser elevados pelo grande pescador que é Jesus e a permanecer fielmente na sua barca!

 
Ilustração:
“O Chamamento de Pedro e André”, de Lorenzo Veneziano, Staatliche Museum, Berlim.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Revelastes estas verdades aos pequeninos. (Lc 10,21)

Os discípulos regressam da missão a que Jesus os tinha enviado. Cheios de alegria relatam as obras maravilhosas que tinham realizado e sem mais demora Jesus exulta de alegria e ora ao Pai: “Senhor do céu e da terra, Pai, eu te bendigo, porque escondeste estas verdades aos sábios e inteligentes e as revelastes aos pequeninos”.
A oração de Jesus desconcerta-nos no nosso orgulho e faz-nos olhar para as nossas capacidades, as nossas forças e inteligência com outros olhos, com a humildade necessária, porque afinal não é pelo que consideramos grande e forte que nos é revelada a verdade, que nos encontramos com Deus.
É a pequenez que nos conduz à verdade, que nos propicia o encontro com Deus, pois ao ser pequenos não colocamos o centro em nós, não confiamos nas nossas forças nem nas nossas capacidades, somos capazes de ver o que vem ao nosso encontro, Aquele que vem ao nosso encontro.
Os pequeninos sabem da sua dependência de um outro, sabem como não podem fazer tudo, sabem como uma mão estendida, um coração aberto, um espirito de acolhimento os realiza verdadeiramente e os faz encontrar-se com a novidade.
Neste tempo de Advento, somos chamados a ser pequeninos para nos encontrarmos com a verdade, somos convidados a abrir o nosso coração, a dar até passos vacilantes como o bebe que aprende a andar para nos encontrarmos com Deus que vem ao nosso encontro.
Não é um menino em palhinhas deitado que nos é oferecido? Porque nos custa tanto procurarmos ser como ele? Deixemos a nossa grandeza, procuremos ser simples e humildes, carentes daquele que nos pode verdadeiramente engrandecer.

 
Ilustração:
“Jesus em oração”, vitral em Bukit Doa Getsemani Sanggam, Ambarita, Samosir, Indonésia.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Senhor, eu não sou digno que entres em minha casa! (Mt 8,8)

Estamos a iniciar o Advento e o Evangelho desta primeira segunda-feira relata-nos o encontro de Jesus com o centurião romano na cidade de Cafarnaum.
Encontro surpreendente, que nos coloca imediatamente no horizonte da vinda do Senhor, da sua habitação na nossa casa. O encontro de Jesus com o centurião romano é um Natal, antecipadamente coloca-nos diante do presépio com o Menino Deus que vem habitar entre os homens.
Diante da situação do servo que sofre horrivelmente, Jesus dispõe-se imediatamente a ir até casa do centurião. É a expressão do movimento da kenosis, de Deus que desce da glória para viver entre os homens e partilhar a sua condição sofredora.
Conscientemente, o centurião romano diz a Jesus que não é digno que entre em sua casa, pois é um estrangeiro, um pagão, um homem do império opressor, e a ida a sua casa seria uma ocasião para colocar aquele mesmo Mestre a quem se dirige em situação de impureza.
Contudo, há uma solução para ultrapassar este impasse, esta dificuldade de movimentação, é a palavra, o poder da palavra, porque ambos sabem a força que tem a palavra proferida com autoridade, o centurião enquanto chefe de soldados, Jesus enquanto a Palavra encarnada.
Também hoje, nos primeiros momentos deste Advento, temos que apresentar as nossas situações de paralisia e sofrimento, aquelas situações que nos impedem de caminhar como homens e mulheres. Também hoje temos que dizer ao nosso Mestre e Senhor que não estamos em condições de o receber em nossa casa, mas que pela sua Palavra Ele nos pode purificar e levantar, pela sua Palavra pode preparar uma condigna habitação no nosso coração.
Senhor, eu não sou digno que entres em minha casa, mas dignifica-a com a tua Palavra e o teu amor.

 
Ilustração:
“O Centurião romano e Jesus”, de Paolo Veronese, Museu do Prado, Madrid.

domingo, 27 de novembro de 2016

Homilia do I Domingo do Advento

Celebramos o primeiro domingo do Advento e com ele iniciamos o novo ano litúrgico e um novo tempo de preparação para celebrarmos o Natal. Todos os anos somos convidados a preparar esta grande festa, esta grande celebração, mas para isso necessitamos estar atentos e vigilantes.
A sociedade em que vivemos, o mundo em que nos situamos, prepara também esta festa, e as decorações feéricas das ruas e centros comerciais despertam-nos para ela, podíamos dizer que nos colocam no espirito do Natal. Contudo, e temos que o assumir, esse espirito de Natal é frequentemente um espirito superficial, um espirito que muitas vezes termina no papel de embrulho, nas fitas e luzes coloridas, que perdeu o coração que verdadeiramente constitui o Natal.
Com isto não quero dizer que sou contra as luzes e as fitas coloridas, as árvores bem enfeitadas, as músicas americanas de Natal. Gosto imenso do Natal cheio de luz e cor, mas por essa mesma razão creio que necessitamos todos de estar atentos e vigilantes para não nos perdermos no feérico, no acessório, que nos deve conduzir ao centro que é o Menino Deus e não distanciar-nos dele.
Quando olhamos para as decorações de Natal que vamos encontrando pelas nossas ruas, nas prateleiras das lojas e supermercados, já pouco vemos de referências ao Menino, ao grande anúncio dos anjos de que nos tinha nascido um Salvador naquela noite feliz. Celebramos como que o seu aniversário, e contudo, distraidamente ou nem por isso, não o temos presente, esquecemo-nos de o convidar!
As palavras de Jesus, no Evangelho de São Mateus que escutámos, colocam-nos na necessidade de estar atentos, vigilantes, não só porque não sabemos a hora a que o Filho do homem virá, mas sobretudo porque no meio das ocupações das nossas vidas podemos, tal como acontecia com os contemporâneos de Noé, não nos darmos conta do que está a acontecer, da vinda do Filho do homem a cada um de nós.
Se, pelo mistério da Encarnação, o Filho de Deus veio habitar a nossa carne há dois mil anos, a verdade é que pelo mistério da Ressurreição continua a vir todos os dias, continua a querer nascer nas nossas vidas, continua a querer fazer caminho connosco, continua a querer fazer-se carne da nossa carne. Porque elevado ao céu, pelo seu Espirito, continua presente no meio de nós e apela ao nosso acolhimento, apela à preparação do nosso coração para o receber, tal como o receberam Maria e José, os pastores e os magos, a noite fria e silenciosa do seu nascimento.
Esta atenção e vigilância conduzem-nos ao sonho, à utopia, mas simultaneamente ao despertar do sonho e à acção. Na expectativa do Senhor que vem ao nosso encontro sonhamos o seu projecto de um Reino de Paz, elaboramos tal como o profeta Isaías a utopia de um mundo em que os homens colocarão as armas ao serviço da construção, em que todos poderão viver lado a lado sem inveja e sem rivalidades. Pela mesma expectativa despertamos do sonho, deixamos as trevas de egoísmo e desejos de poder, e procuramos levar a cabo e realizar com as nossas capacidades e inteligência o Reino sonhado, a utopia idealizada, procuramos viver a solidariedade e a fraternidade, procuramos construir uma casa comum e uma única família a partir de Deus.
Tal como nos diz São Paulo na Carta aos Romanos, ao sabermos em que tempo estamos torna-se necessário que deixemos de estar distraídos, torna-se necessário que assumamos a nossa fé, a nossa esperança e a nossa caridade, a salvação em que estamos envolvidos e deve transfigurar a nossa vida.
Este é o tempo de despertar, de tomar a resolução de que alguma coisa pode e deve ser feita de diferente, de colocarmos o nosso esforço em acção para que tal aconteça. Este é o tempo de nos revestirmos de Cristo para que este seja novamente um tempo de glória para Deus nas alturas e de paz para os homens por ele amados.
Aproveitemos pois o tempo de Advento que agora iniciámos.

 
Ilustração:
“A profecia de Isaías”, de Jan Brueghel o Velho, Alte Pinakothek, Munique.   

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Homilia da Solenidade de Jesus Cristo Rei do Universo

Estamos a celebrar a Solenidade de Cristo Rei, o último domingo do Ano Litúrgico e também o encerramento do Ano Santo da Misericórdia. No próximo domingo iniciaremos o Advento e com ele um novo ano litúrgico.
As leituras que escutámos nesta celebração solene e de modo particular o Evangelho de São Lucas colocam diante de nós o significado da realeza de Jesus Cristo, e a forma de a vivermos também nós que desde o baptismo e por Jesus Cristo somos sacerdotes, profetas e reis.
Neste sentido é de todo conveniente olhar as palavras proferidas pelos chefes dos judeus, pelos soldados romanos e pelo ladrão que injuria Jesus. Cada um, e fazendo eco da sua concepção do poder real, reclama que Jesus se salve a si próprio, que desça da cruz e dessa forma mostre que é Messias, que é verdadeiramente rei ao estilo do imperador, que tal como um chefe de bando de salteadores ou rebeldes é capaz de se libertar pelas suas forças e artimanhas.
Contudo, a solicitação de cada um destes observadores e interpeladores de acção acarreta consigo uma impossibilidade, uma impossível resposta de Jesus, pois se Jesus realizasse o que cada um deles pedia estaria apenas a salvar-se a si próprio, e desenvolver o seu egoísmo e orgulho, estaria a negar toda a sua palavra e missão até ali realizadas. O salvar-se a si mesmo contradizia tudo o que até ali Jesus tinha realizado, não revelaria a sua realeza.
A sua realeza manifesta-se e realiza-se nas palavras do chamado bom ladrão, quando este lhe pede que Jesus se lembre dele quando vier na sua realeza, ou seja quando tiver realizado a sua missão de salvar os homens, de o salvar a ele pobre condenado justamente pelos seus crimes. A realeza de Jesus manifesta-se nessa salvação dos outros, nessa entrega da vida pelos outros.
A realeza de Jesus é assim a misericórdia, esse mistério de sair de si mesmo para ir ao encontro do outro, para o resgatar na sua condição de pecado e sofrimento e o levar a partilhar a glória divina. E é desta forma que podemos viver a nossa condição real adquirida no baptismo, é desta forma que podemos construir e colaborar na instauração do Reino de Deus, sendo tal como Jesus misericordiosos.
A realeza de Jesus Cristo e o seu reinado não se desenvolvem assim no mundo segundo as formulas a que estamos habituados, não se trata de poder ou força para ser maior, para ser capaz de fazer coisas extraordinárias, não se trata de dominar o outro, de construir um império para satisfação orgulhosa do ego. Quando os cristãos o tentaram displicentemente em contradição com o projecto de Jesus os resultados foram desastrosos.
Contudo, quando na humildade, na verdade, no amor e na justiça os cristãos procuraram colocar o outro em primeiro lugar, procuraram a salvação do outro, o Reino de Deus foi-se desenvolvendo, a realeza de Jesus foi-se tornando visível. Quando se colocaram as forças e capacidades ao serviço do outro, num espirito de confiança mútua, num espirito de aliança, quando os cristãos não tiveram medo de perder a sua vida por Aquele que é o Caminho, a Verdade e Vida, o reinado e a realeza de Jesus tornou-se actual, presente, poderíamos dizer palpável.
Assim, se queremos honrar Jesus Cristo como nosso Rei, se ao estilo medieval lhe queremos prestar a nossa vassalagem, não podemos deixar de nos colocar ao serviço do outro, não podemos deixar de procurar a salvação do outro, mais que a nossa, pois é salvando os outros que assumimos a salvação que nos foi alcançada em Jesus Cristo.
Que nos lembremos sempre dos outros e do Outro, que é Deus e habita em cada um deles, para podermos todos juntos partilhar a glória real e divina do Paraíso.

 
Ilustração:
“Jesus Salvador do Mundo”, de El Greco, Museu El Greco, Toledo.