domingo, 28 de fevereiro de 2016

Homilia do III Domingo da Quaresma

Celebramos o terceiro domingo da Quaresma e, quase sem nos darmos conta, estamos a meio do caminho de preparação que nos propusemos viver para a celebração da Páscoa deste ano de dois mil e dezasseis. Urge assim perguntar sobre o que mudámos, o que fizemos de diferente, aferir os nossos passos no sentido da conversão.
Este é o tempo propício, a nova oportunidade que o Senhor nos concede, à semelhança do que acontece no Evangelho de São Lucas que escutámos. Uma vez mais o Senhor, como bondoso vinhateiro oferece-nos uma nova oportunidade para darmos frutos, para procurarmos dar frutos, correspondendo ao seu cuidado expresso na adubação e no amanho da terra.
Esta correspondência, a resposta que nos compete dar, não pode esquecer esta bondade do Senhor, esta generosidade do seu amor cuidadoso, mas não pode deixar também de ter presente duas outras realidades fundamentais e estruturantes da nossa resposta possível, como são a tentação do orgulho e a relação pessoal e única de Deus com cada um de nós.
Esta tentação do orgulho aparece-nos expressa nas histórias dos acidentes que são apresentadas a Jesus no Evangelho, pois aqueles que se apresentam com as histórias da infelicidade dos outros não se consideram passiveis da mesma infelicidade, uma vez que eles se consideram bons, poderíamos dizer até muito bons. É uma mentalidade, uma cultura da lógica do castigo pelo mal realizado, e que ainda hoje trespassa algumas das perguntas que colocamos quando algo de mal acontece.
Contudo, Jesus liberta-nos desta lógica, pois responde àqueles homens que as vítimas do mal não eram piores que eles, que a sua morte não era uma satisfação por alguma ofensa a Deus, mas que todos nos encontramos na mesma situação de poder ser vítimas e por essa razão o verdadeiramente fundamental é a disposição para a mudança, a nossa atenção à necessidade de conversão.
Como diz São Paulo aos Coríntios, na leitura que escutámos, estes acidentes, estas catástrofes, são advertências para a nossa condição e para a nossa situação no mundo, precária e finita, sujeita a acidentes e transtornos, e portanto o verdadeiramente importante é o cuidado, é a atenção, como se diz em outras passagens dos Evangelhos é a vigilância, vigilância face a nós, ao mundo e a Deus.
Esta vigilância atenta às nossas fragilidades e limitações, às nossas falhas, liberta-nos do orgulho de pensarmos que somos melhores que os outros, de irmos pela vida como se ela fosse um conto de fadas e que tudo se resolve com a nossa força e capacidades. Esta vigilância coloca-nos face a Deus que nos acompanha e que sofre com o nosso sofrimento e se alegra com a nossa alegria, que nos convoca a sofrer e a alegrar-nos com o sofrimento e a alegria dos outros.
Por esta razão, por esta presença pessoal e única, Deus não se apresenta com um nome quando se revela a Moisés na sarça ardente, mas revela-se como Aquele que é, Aquele que está presente e se relaciona e por isso pode ser dito Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob.  
Este Deus adquire hoje mesmo o nome de cada um de nós, é o Deus do Manuel, o Deus da Maria ou o Deus do João, porque continua a ser quem é, sempre foi e será pela eternidade, e porque contínua presente na relação que se estabelece com ele, no acolhimento que se lhe presta na vida de cada um.
Na nossa caminhada quaresmal, neste terceiro domingo, somos assim convidados a olhar a nossa relação com Deus, a perceber a forma pessoal como Deus se relaciona com cada um de nós e nos solicita a mesma relação, como nos convida nas circunstâncias da nossa vida a uma mudança, a uma conversão para que essa relação possa ser cada vez mais intima e pessoal.
Neste domingo somos igualmente convidados a perceber os frutos que demos ou ainda não demos, como se encontra a nossa fertilidade de obras para a eternidade, e nelas a nossa capacidade de perdão, a nossa bondade e generosidade no sentido de conceder uma nova oportunidade aos outros que falharam connosco.
Se esperamos a misericórdia de Deus não podemos esquecer que Ele nos pede a capacidade de perdoar os outros, de fazer a experiência do perdão, da nova oportunidade, pois só nesse espirito e dessa forma farão sentido e serão vida as palavras da oração dominical que rezaremos, “perdoa-nos Senhor como nós perdoamos”.

 
Ilustração:
1 – “O vinhateiro e a figueira”, de James Tissot, Brooklyn Museum.   
2 – “Moisés e a sarça ardente”, de Giovanni Antonio Guardi, Dorotheum, Viena.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Homilia do II Domingo da Quaresma

Estamos a celebrar o segundo domingo da Quaresma e as leituras que escutámos, de modo particular a leitura do Livro do Génesis e o Evangelho de São Lucas, colocam diante de nós uma realidade profundamente humana, um desafio que nos toca a todos face aos projectos a que nos lançamos. É a realidade da impaciência e o desafio da esperança paciente.
Iniciámos o projecto da caminhada quaresmal, e como dizíamos no domingo passado, um processo de combate, um tempo de conversão em que nos dispomos a estar mais atentos quer à nossa relação com Deus quer à nossa relação com os irmãos.
Contudo, e tal como acontece com tantos outros projectos e desafios da nossa vida, desejamos ver rapidamente os resultados, como se os esforços aplicados fossem automaticamente reproduzidos em alterações, em novas realidades. Não temos tempo para esperar, não desejamos aguardar.
E no entanto a natureza, nos seus ciclos, recorda-nos todos os dias que há um tempo para semear e um tempo para colher, um tempo para o treino disciplinado e um tempo para o combate eficaz. Há necessidade de tempo, há necessidade de confiar e de esperar.
É esta confiança paciente que Deus pede a Abraão, quando este pergunta sobre o modo de realização da promessa feita. Como saber que vai de facto possuir a terra que Deus lhe prometeu, que a sua descendência será tão numerosa como as estrelas do céu?
Abraão está já envolvido na realização da promessa, ela desenrola-se aos seus olhos, mas deseja vê-la completa, cumprida na sua totalidade. Podemos dizer que Abraão está impaciente, que já está cansado das promessas e portanto exige um pouco mais de Deus, uma acção mais eficaz.  
Diante desta exigência e impaciência, Deus volta novamente a comprometer-se e a sua passagem como fogo pelos animais sacrificados é o selar desse novo compromisso, da aliança que estabelece, e de uma forma unilateral, pois Abraão não é comprometido no sacrifício.
Sabemos que no mundo semita antigo as alianças eram seladas pelo sacrifício de animais e que os dois intervenientes se responsabilizavam pela sua parte do compromisso com as metades dos animais sacrificados, assumindo desta forma que o outro lhe poderia dar a mesma sorte se faltasse ao prometido, se quebrasse a aliança.
Com Abraão apenas Deus se compromete na aliança; face à fé que Abraão já manifestou apenas se exige confiança e esperança no prometido, poderíamos dizer um pouco de paciência para deixar Deus fazer o que lhe compete.
E é esta fé, esta paciência confiante que também nos é pedida no nosso dia a dia e na nossa caminhada quaresmal. Deus está ao nosso lado e deseja viver connosco a realização dos nossos propósitos, mas para que tal aconteça temos que nos dispor, temos que nos dar tempo, porque a obra não é fácil e muitas vezes as circunstâncias e a rotina também não facilitam a acção do Espirito Santo.
Necessitamos acreditar e esperar, necessitamos confiar, manter um treino constante e disciplinado na paciência e na disponibilidade a que acção de Deus se desenvolva, necessitamos não cruzar os braços e desistir.
Mas, porque não é fácil, necessitamos igualmente um reforço vitamínico, uma degustação do que nos espera e está reservado, da realidade a que estamos destinados se soubermos aguentar, se não desanimarmos face ao tempo e às dificuldades. É esse reforço e degustação que experimentamos no momento da transfiguração de Jesus no monte Tabor.
Face aos perigos do anúncio da paixão e da morte, face ao perigo do desânimo e da impaciência, Jesus manifesta aos discípulos a glória que lhe é natural, a glória que eles poderão contemplar em plenitude se conseguirem ultrapassar todas as provas que se perspectivam no horizonte.
Também nós, como cidadãos do céu, como nos diz São Paulo na Carta aos Filipenses, poderemos não só contemplar esta glória, mas vivê-la plenamente se tivermos a paciência e a esperança para permanecer firmes face aos desafios e ao tempo que leva à realização da promessa.
A fé nas palavras de Jesus, a esperança na transformação do nosso corpo miserável em corpo glorioso, deve levar-nos a permanecer firmes e a lutar com paciência contra tudo aquilo que nos afasta e nos encerra à vontade de Deus, à sua promessa fiel, pois Deus não pode deixar ser fiel ao que promete. E espera que nós acreditemos na sua palavra para realizar a promessa!
A narração da transfiguração de Jesus, neste segundo domingo da Quaresma, serve assim para não desanimarmos face às dificuldades, aos embates que pudemos sentir ao iniciarmos uma caminhada nova, um novo tempo e propósito de conversão. Mas serve igualmente para não nos considerarmos satisfeitos com o que pudemos ter feito ou alcançado, com o que Deus pode ter realizado em nós.
A experiência da transfiguração é para nos levar mais longe, é para despertar em nós um desejo impaciente de mais e melhor, é para não nos deixar adormecer face ao que a graça de Deus pode já ter realizado em nós.
Tal como aconteceu com Abraão, o desenrolar e desenvolvimento da promessa da parte de Deus é para nos alavancar a novos desafios, a uma plenitude e radicalidade que passa pela disponibilidade de entregar o próprio filho, ou, como no caso dos discípulos, de saber perder o Mestre no qual depositámos as nossas expectativas humanas para o reencontrar como Filho de Deus glorioso pela vida resgatada à morte.
Que estes dias quaresmais sejam dias de esperança e confiança, de fé na Palavra que não se engana nem nos engana.

Ilustração:
1 – “Transfiguração”, de Meister des Universitats-Altars, Gemäldegalerie Alte Meister, Kassel.
2 – “Deus aparecendo a Abraão em Siquém”, de Paulus Potter, The-Athenaeum.org

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Homilia do I Domingo da Quaresma

Celebramos o primeiro domingo da Quaresma, e para muitos de nós aqui presentes é a primeira celebração em que participamos depois de se ter iniciado este novo tempo litúrgico.
A leitura do Evangelho de São Lucas, com as tentações de Jesus no deserto, insere-nos no espirito deste novo tempo, um tempo de penitência, um tempo de combate, um tempo de deserto, mas igualmente um tempo fortíssimo de esperança, de uma fé forte e exigente, de uma caridade apurada.
Entrar na Quaresma, assumir este novo tempo, é dispor-se a algo diferente, a procurar mudar alguma coisa na nossa vida, é dispor-se a um processo de conversão, que passa por nós mas também pela acção da graça de Deus, pela acção do Espirito Santo que acolhemos na nossa vida que desejamos transformar.
Por essa razão não podemos perder de vista uma das lições que o Evangelho de hoje nos apresenta na narração das tentações de Jesus, e que é a centralidade da Palavra de Deus na nossa vida e no combate às tentações. A cada tentação que se lhe apresenta Jesus responde com o que está escrito na Escritura, com o que é a Palavra de Deus. E esta centralidade adquire tal dimensão e poder que até o próprio diabo se vai servir das Palavras de Deus para seduzir Jesus na terceira tentação.
A Quaresma torna-se assim uma oportunidade para nos encontrarmos com a Palavra de Deus de uma forma mais intensa, mais profunda, para confrontarmos a nossa vida, gestos, palavras e sentimentos com a Palavra de Deus e para aferirmos de como ela fundamenta e alicerça a nossa vida. Aos vários desafios e tentações do nosso quotidiano sabemos responder com a Palavra de Deus, tal como Jesus respondeu?
Este encontro mais intenso e aprofundado com a Palavra de Deus na Quaresma, Palavra que está perto de nós como diz São Paulo na Carta aos Romanos, vai ajudar-nos também a desenvolver uma outra atitude, uma atitude que muitas vezes nos falta e que é a atitude da confiança, devemos dizer a virtude da fé, e que as tentações de Jesus nos colocam no horizonte.
Ao ser tentado no deserto Jesus mostra-nos que a tentação não é uma realidade da nossa condição pecadora, mas é uma possibilidade estrutural da obra criada, se assim se pode falar, e portanto tudo e todos estamos sujeitos à tentação, a essa possibilidade de inverter os termos da equação, de nos colocarmos no lado oposto do plano, de vivermos de acordo com a nossa vontade e esquecendo a vontade de Deus.
Esta possibilidade verifica-se de um modo mais frequente na expressão da primeira tentação que Jesus sofre, ou seja, na subjugação às nossas necessidades materiais, à satisfação dos nossos apetites. Quantas vezes não nos deixámos já vencer pela necessidade de ter mais isto ou aquilo, algumas vezes apenas em função da imagem social, e deixámos para trás o estar com o outro, o partilhar a nossa presença com aqueles que nos necessitam e necessitam da nossa palavra ou do nosso abraço?
O homem não vive só de pão, o homem não se realiza apenas com os bens materiais, por melhores que eles sejam, ou por maior gratificação que produzam; o homem necessita do outro, necessita da palavra do outro, porque é na palavra trocada que o homem verdadeiramente se realiza. Somos criaturas da palavra, feitos à imagem da Palavra do Pai e sem ela perdemos o sentido da nossa existência, a realização plena a que estamos destinados.
E porque somos homens da Palavra e feitos para o diálogo não nos prostramos diante de um outro qualquer, de uma qualquer realidade ou oferta de poder e glória, tal como se patenteia como possibilidade na segunda tentação que Jesus sofre no deserto. Essa subjugação idolátrica afecta-nos na nossa dignidade, na nossa condição de filhos de Deus, subtrai-nos as vias da plena realização.
Quando Jesus responde ao demónio que só a Deus é devida a adoração está a colocar-nos face ao espectro dos valores fundamentais, a desafiar-nos também a nós na reconfiguração dos nossos valores e prioridades, a não deixar de ter Deus presente, princípio e fim da nossa existência, fundamento da dignidade e valor de todas as realidades. O que vale cada coisa vale pelo que desenvolve a obra de Deus.
E é neste desenvolvimento da obra de Deus que se joga a terceira tentação de que Jesus é objecto. O demónio seduz Jesus no sentido da irresponsabilidade, poderíamos dizer da omissão da sua cota-parte na realização da missão que lhe foi confiada, a partir da fé da acção amorosa do Pai. Sabendo que o Pai o não deixaria sofrer poderia fazer tudo o que quisesse.
Esta é uma tentação que também nós muitas vezes sofremos, e acontece frequentemente em ambiente religioso, de vivência da fé, pois ficamos à espera que Deus realize a sua parte omitindo a realização da nossa parte. Quantas vezes em crianças prometemos a Deus que íamos ser melhores se nos ajudasse no exame da escola, mas para o qual não estudámos o que devíamos?
Como criaturas de Deus, seres inteligentes e livres, dignos e capazes de palavra e compromisso, foi-nos confiada a continuação da realização da obra de Deus, e por essa razão não podemos tentar a Deus querendo ou pedindo que faça o que nos compete.
Este princípio deve estar presente também nesta Quaresma, e por isso se queremos fazer algo de diferente, algo melhor, se queremos mudar alguma coisa na nossa vida, devemos assumir a nossa responsabilidade e cota-parte de trabalho e esforço.
Se o fizermos, Deus estará do nosso lado, e na Páscoa da Ressurreição poderemos apresentar as primícias da nossa terra, o leito e o mel da terra que é a nossa vida e o Senhor nos confiou para habitar e fazer produzir.

 
Ilustração:
1 – “Jesus no deserto”, de Briton Rivière, Guildhall Art Gallery, Londres.
2 – “A Tentação de Jesus”, de Jacopo Tintoretto, Scuola Grande di San Roco, Veneza.