domingo, 23 de novembro de 2014

Homilia da Solenidade de Cristo Rei

Celebramos a Solenidade de Cristo Rei, último domingo do ano litúrgico, mas ao fazê-lo somos convidados a olhar o início, o acontecimento que dentro de uma semana começaremos a preparar com o Advento.
No final do ciclo litúrgico contemplamos o Rei da Glória, um Rei que nos foi apresentado no início do ciclo litúrgico deitado numa manjedoura, pobre e indefeso, exposto e oferecido a todos os homens capazes de baixar o olhar até ele.
Contudo, já nessa pobreza e simplicidade o anjo Gabriel nos anunciava a grandeza e realeza desse menino, a glória que hoje celebramos, pois no anúncio da concepção divina, é dito a Maria que este menino será grande e que o seu reinado não terá fim.
Ao longo do ano, nas diversas leituras e festas, esta realeza foi sendo iluminada, apresentada aos nossos olhos, ainda que não do modo grandioso como aspiramos na nossa condição humana, mas bem pelo contrário de uma forma completamente subversiva e revolucionária, pois se os senhores do mundo se servem e exploram os outros, no reino de Jesus tal não deve acontecer, entre os seus discípulos e filhos não deve ser assim.
Neste sentido, e como não podia deixar de ser após um ano de preparação, as leituras desta Solenidade colocam-nos face à extraordinária realeza que Jesus vive e que nos oferece a cada um de nós, pois pelo baptismo somos profetas, sacerdotes e reis com ele e nele.
A imagem do rei que é pastor, que nos apresentava o profeta Ezequiel, é assim desde logo uma imagem bastante sugestiva, uma vez que nos mostra a solicitude e a ternura deste rei. É uma imagem que se opõe à concepção e imagens que nos são dadas por aqueles que vivem nos centros de poder e nos palácios de governação.
O rei que é pastor é alguém que é próximo, que não só está no meio do povo, do seu rebanho, mas que se compromete com ele, que tem uma acção directa no sentido da sua protecção e desenvolvimento. É um rei que não foge quando o rebanho é atacado, que não é cobarde, mas que está presente e defende, e é capaz de dar a sua própria vida pela salvação e bem-estar do seu rebanho.  
Este rei pastor manifesta a sua realeza suprema nessa capacidade de dom, de entrega, de dar a sua vida pelo rebanho e pelo povo, manifesta a sua realeza suprema no amor que tem pelos seus, pois sabe que o amor não pode morrer, que nada vencerá o amor, tal como é cantado pela amada no Cântico dos Cânticos.
E Jesus encarnou este amor e manifestou a sua realeza gloriosa não só quando veio habitar entre os homens, quando se fez homem como os homens excepto no pecado, mas sobretudo quando se ofereceu ao Pai em sacrifício por todos os homens seus irmãos, para os poder resgatar do poder da morte. Por esta razão a Igreja desde sempre canta a cruz como o grande trono de glória de Jesus Cristo, como o lugar por excelência da manifestação da realeza de Jesus.
Mas se esta glória é manifestada, se Jesus assume algum poder executivo, usando linguagem do mundo, não é para exaltação pessoal, mas bem pelo contrário, e como nos diz a leitura da Carta de São Paulo aos Coríntios, para que depois de aniquilada toda a soberania, autoridade e poder, tudo seja entregue ao Pai.
O Filho que é Jesus está assim em missão e é na realização dessa missão que manifesta a sua realeza, pela fidelidade e pela entrega da sua vontade à plena realização do plano e da vontade do Pai. É no serviço ao Pai que Jesus se manifesta como rei e manifesta o seu poder real.
Neste sentido a nossa participação na sua realeza, a manifestação da nossa condição real e divina, passa pelo serviço, e tal como nos apresenta o Evangelho, por um serviço que não nos ultrapassa e do qual não nos podemos escusar nem desculpar, pois compõe-se de tarefas tão simples como dar um copo de água, ou visitar outra pessoa que necessita.
Pela leitura do Evangelho, e diante do julgamento a que todos seremos sujeitos no fim dos tempos como o Evangelho nos apresenta, percebemos que o critério utilizado para a participação na glória do Reino não é a proclamação da fé, o dizer “Senhor, Senhor”, mas o exercício dessa fé em obras de caridade, em obras que manifestam a habitação do divino em nós e entre nós.
E uma vez mais somos obrigados a olhar para o menino da manjedoura, imagem dos sem poder e sem voz, dos indefesos e necessitados, dos pequeninos de que nos fala o Evangelho e nos quais o Senhor se nos apresenta e desafia no acolhimento e no amor, no desenvolvimento da nossa realeza.
Ao terminarmos um ano litúrgico, ao contemplarmos como a realeza e a glória de Jesus acontece no serviço, na entrega aos mais frágeis, aos homens que somos pecadores, procuremos desenvolver gestos e palavras que nos coloquem verdadeiramente na senda do nosso Salvador, procuremos fazer-nos pequenos para acolher o dom que o Senhor nos faz e na alegria do dom recebido partilhá-lo com os nossos outros irmãos.

 
Ilustração:
1 – “O Filho de Deus”, de Viktor Vasnetsov, Catedral de São Vladimir, Kiev.
2 – “Jesus com uma família de camponeses”, de Fritz von Uhde.

domingo, 16 de novembro de 2014

Homilia do XXXIII Domingo do Tempo Comum

Estamos no penúltimo domingo do ano litúrgico, no próximo domingo celebraremos a Festa de Cristo Rei, e as leituras que a Liturgia da Palavra nos oferece estão marcadas por essa nota de final dos tempos, pela nota da vinda do Senhor, dada de modo particular pela leitura da Carta de São Paulo aos Tessalonicenses.
É uma carta na qual São Paulo tem que afrontar este tema porque a comunidade cristã de Tessalónica vivia na apreensão dessa vinda, desse tempo indefinido. Há uma preocupação que limita os comportamentos e a fidelidade e São Paulo vê-se obrigado a clarificar a situação.
Neste sentido São Paulo chama a atenção para a verdadeira questão que se coloca, pois o problema não é o quando, o momento exacto da vinda, poderíamos dizer a problemática temporal, mas o estado em que tal vinda nos encontrará, a problemática ontológica, o nosso estado de ser cristão.
E a parábola dos talentos que Jesus conta aos seus discípulos, e que escutámos no Evangelho, ajuda-nos a compreender como de facto o problema não se coloca no tempo mas no estado em que nos encontramos, pois o Senhor vem inevitavelmente para ajustar contas e necessitamos ter alguma coisa para lhe devolver.
E ter alguma coisa para devolver significa que se acolheu o dom, que se acolheu os talentos recebidos, fossem eles muitos ou poucos, e que se acolheram para nos fazer participantes da casa do senhor, herdeiros com ele.
Compromisso que o terceiro servo da parábola não percebeu e por isso nos aparece como o exemplo pela negativa, como aquele que não deve ser seguido, pois ao enterrar o talento estava a recusar o dom do seu senhor, estava a negar-se à participação na casa e património do senhor.
Para que não ficasse qualquer dúvida, e para que percebêssemos como podemos incorrer no mesmo erro, a parábola faz-nos um percurso pelos sentimentos do servo que recebeu apenas um talento, apresenta-nos uma fotografia psicológica, denunciando dessa forma a imagem e o conceito que o servo tinha do seu senhor.
É o medo, o juízo preconceituoso sobre a acção do seu senhor, que recolhe onde não semeia, que leva o servo ao desastre, que inviabiliza o acolhimento do dom que lhe é feito, contrariamente aos outros dois servos que não têm qualquer preocupação, dedicando-se por isso apenas a trabalhar para que o recebido frutifique.
Desta forma, e com este espirito de liberdade, quando o senhor chega para ajustar contas, nada é reclamado, nem o recebido nem o frutificado, mas tudo é deixado àquele que se apresenta para prestar contas, razão pela qual pode participar e partilhar da alegria do seu senhor. O senhor não recupera os seus talentos nem o rendimento alcançado, mas tudo é deixado àquele a quem foi confiado para que possa participar da alegria do senhor e usufruir do património, ser herdeiro com o seu senhor.
A vinda do senhor não é assim para julgar, para condenar, mas para constatar da fecundidade de cada um dos seus servos, fecundidade que é já por si participação na alegria e património do senhor. O que está em causa não é assim a eficácia mas a fidelidade, o acolhimento dos dons e talentos de forma responsável.
A parábola dos talentos abre-nos desta forma um horizonte de esperança, uma vez que cada talento e a sua rentabilização é um compromisso com o projecto de salvação, é ter a certeza que Deus salva, mas que nessa salvação não prescinde da nossa participação, do nosso compromisso com esse desejo.
E este compromisso é vivido, ou pode ser vivido, segundo a forma como a mulher do Livros dos Provérbios vive a sua condição de mulher virtuosa, ou seja através da confiança que gera nos outros, do trabalho alegre, da caridade para com os necessitados e do temor de Deus.
São pequenas realidades do nosso dia-a-dia que nos desafiam na fidelidade e na fecundidade, sobretudo a caridade que é o mais rentável de todos os dons e talentos, pois tal como diz São Gregório Magno, quem possui a caridade possui todos os outros dons, e àquele que a tem ainda mais lhe será dado.
Procuremos pois acolher os dons que o Senhor nos oferece, mas sobretudo o dom que é ele próprio e que nos fará apresentar um fruto e um rendimento que permanece para sempre.    

 
Ilustração:
1 – “A parábola dos talentos”, de Andrey Mironov.
2 – Gravura da Parábola dos Talentos, da Historiae Celebriores Veteris Testamenti Iconibus.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Fizemos o que devíamos fazer! (Lc 17,10)

É inquestionável que há dever e dever. Existe aquele dever a que estamos obrigados, que nos é imposto por outrem, muitas vezes até mesmo contra a nossa vontade, mas existe também o dever que é consequência do nosso amor, do sentimento de felicidade a que nos conduz.
Jesus, a quem os discípulos chamavam mestre, define-se frequentemente como o servo, como aquele que veio para servir, não por uma norma ou força exterior a si próprio, mas por amor, pela sua livre vontade de servir e entregar a vida pelos homens.
As palavras de Jesus relativamente ao servo que, mesmo depois de um dia de trabalho, é chamado a servir o seu senhor, mostra-nos que servir é dar, é cumprir as obrigações, mas é também dar-se, fazer-se dom e vida para os outros.
Frequentemente desejamos escolher a forma de servir os outros, os deveres que nos são impostos ou que nos impomos, desejamos fazer a nossa obediência, procuramos um serviço que nos prestigie ou nos dê alguma notoriedade.
E desta forma esquecemos que, à força de querer fazer as obras de Deus, de querer fazer o que achamos bem, de querer servir de acordo com os nossos critérios ou interesses, deixamos de fazer a obra de Deus, o que Deus verdadeiramente nos pede que façamos lá ou cá, onde nos encontramos.
Com a nossa vontade e os nossos critérios corremos igualmente o risco de servir a Deus com o que não somos e não temos, quando a verdadeira grandeza do serviço é servir com o que temos e somos, onde estamos.
Com humildade e amor aceitemos o serviço que o Senhor nos destinou, confiantes que é aí que somos chamados a fazer o que devemos fazer.

 
Ilustração:
“O servo de Isaac colocando a pulseira no braço de Rebeca”, de Benjamin West, Colecção Particular.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Perdoa-lhe! (Lc 17,4)

Se o teu irmão vier ter contigo, perdoa-lhe; perdoa-lhe todas as vezes que vier ter contigo arrependido.
Palavras difíceis as que nos deixa hoje o Senhor, palavras que provocam e nos desconcertam. Palavras de alguém que sabe e vive verdadeiramente o amor e por isso nos deixa este convite, para que possamos fazer a mesma experiência na nossa pobreza e finitude.
Conscientes da dificuldade e das nossas fragilidades, face à radicalidade do convite de Jesus, os discípulos pediram ao Senhor, “aumenta a nossa fé”.
Aumenta Senhor a nossa fé, para que possamos ver para além da ofensa ou do erro do outro, daquele que vem até nós, arrependido.
Aumenta Senhor a nossa fé, porque é a fé que nos faz capazes de perdão, que nos transforma em seres de perdão.
Aumenta Senhor a nossa fé, porque é ela que nos permitirá a capacidade de ser livres face ao mal.
Aumenta Senhor a nossa fé, porque só na fé te poderemos seguir no exemplo do perdão, poderemos dizer entre os tormentos da cruz, “perdoa-lhes Pai”.

 
Ilustração:
Reconciliação de Jacob e Esaú, de Peter Paul Rubens, Galeria Nacional da Escócia.

domingo, 9 de novembro de 2014

Homilia da Festa da Dedicação da Basílica de Latrão

Temos a oportunidade de celebrar neste domingo a Festa da Dedicação da Basílica de Latrão, aquela que é considerada a primeira das basílicas de Roma e a sede do Bispo de Roma.
Esta festa e os textos que a Liturgia da Palavra nos propõe dá-nos a oportunidade de olhar com um pouco mais de atenção para a nossa realidade divina, para a dimensão da habitabilidade de Deus em cada um de nós.
E não podemos deixar de ter como ponto de partida as palavras do Evangelho de São João que escutámos, nas quais o evangelista tem o cuidado de salientar que as palavras de Jesus diziam respeito ao seu corpo.
É depois de ter expulsado os vendedores do templo, manifestando desta forma um dos sinais apresentados pelo profeta Zacarias para a identificação da presença do Messias entre o povo, e questionado sobre a autoridade para tal gesto, que Jesus desafia os judeus presentes com a destruição do templo e a sua capacidade de o reconstruir em três dias.
Para uma melhor compreensão do que está verdadeiramente em causa temos que ter presente as palavras que Jesus utiliza, pois Jesus não utiliza o vocábulo “ieron”, que diz respeito a todo o conjunto edificado do templo, mas o vocábulo “naos” que diz respeito apenas ao santo dos santos, ao espaço mais secreto e sagrado do templo, no qual era apresentado o sacrifício de expiação pelos pecados do povo.
O desafio de Jesus não se coloca assim no âmbito do edificado, do material, mas no âmbito do relacional, do lugar onde a presença e o diálogo com Deus é possível, e esse lugar é o corpo do homem, é a pessoa na sua totalidade, tal como os apóstolos reconhecem depois da ressurreição e da confirmação das palavras de Jesus sobre a reconstrução do templo corpo em três dias.
Esta consciência é de tal modo assumida que São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios vai dizer que somos edifícios de Deus, templos de Deus nos quais habita o seu Espirito, dando assim ao corpo uma dimensão e uma dignidade que ainda hoje nos custa a aceitar e a viver, embora toda a nossa civilização e cultura assente no reconhecimento dessa dignidade.
Os direitos do homem, os cuidados paliativos que hoje encontramos nos hospitais, o próprio cuidado com o cadáver dos defuntos, as reivindicações pela qualidade do trabalho e pelo descanso, as convenções para os presos de guerra e tantas outras realidades, são consequência dessa atenção e dignidade que o cristianismo sempre deu ao corpo face a esta consciência da habitabilidade de Deus no homem.
Contudo, e apesar de toda a atenção e direitos, convenções e acordos, há ainda muito a consciencializar nesta questão, e sobretudo quando descemos ao dia a dia, ao nosso quotidiano, e nos deparamos com falta de atenção e violência sobre o outro nos nossos próprios ambientes, casas, escolas e trabalhos.
Quantas vezes uma resposta agressiva, uma falta de educação, um gesto violento, não denuncia esta falta de consciência de que diante de nós temos alguém no qual habita Deus, que é presença divina. Neste sentido necessitamos descobrir ou redescobrir o valor do outro, a sua dignidade natural, não só pelo facto de ser pessoa, mas pela presença do Espirito de Deus na sua humanidade.  
Por outro lado necessitamos também redescobrir ou descobrir como Deus nos oferece e faculta uma fonte de alimentação dessa divinidade, dessa dignidade divina que habita em nós, a qual pode ser alimentada pela água que corre do santuário tal como nos dizia o profeta Ezequiel.
Essa água que corre do santuário é a água e o sangue que corre do santuário que é o próprio corpo de Cristo, no qual foi aberta a nascente da vida pela lança do centurião romano no momento da morte. Essa água e esse sangue, sinais do Baptismo e da Eucaristia, transformam-nos e regeneram-nos nessa dignidade divina que nos habita, alimentam e fortalecem essa mesma dignidade.
Deste modo, ao alimentarmo-nos do corpo do Senhor, como fazemos nesta celebração, a responsabilidade de dignificarmos o nosso corpo e o corpo do outro torna-se mais urgente e necessária, pois em cada comunhão respondemos ao sacerdote que nos apresenta o Corpo de Cristo com o nosso assentimento e consentimento em sermos também nós corpo de Cristo e portanto templos vivos do Espirito de Deus.
Conscientes de que somos templos de Deus, procuremos tal como nos convida São Paulo ver como construímos o nosso templo, como somos fiéis ao alicerce sobre o qual fomos colocados, que é o próprio Cristo, e ao qual cada vez mais nos temos que configurar e assemelhar.

 
Ilustração:
1 – “Jesus expulsando os vendedores do templo”, de El Greco, National Gallery, Londres.
2 – “A Fonte da Vida”, de Colijn de Coter, Misericórdia do Porto.

sábado, 1 de novembro de 2014

Homilia da Solenidade de Todos os Santos

A Igreja celebra hoje Todos os Santos, uma solenidade para fazer memória de todos aqueles que viveram uma vida santa, mas não fazem parte do nosso calendário nem ocupam nenhum lugar nos nossos altares. É essa multidão inumerável de que nos falava a leitura do Livro do Apocalipse, a multidão que lavou as suas túnicas no sangue do cordeiro.
É uma celebração que nos convida à alegria e à esperança, uma vez que nos aponta e recorda homens e mulheres como nós, homens e mulheres que alcançaram a santidade na simplicidade do seu quotidiano, homens e mulheres que se deixaram transformar pelo amor redentor e por isso contemplam e exultam diante da face de Deus.
Neste sentido é uma celebração que nos convida a olhar para nós e a ter presente a nossa condição e o fim a que estamos destinados. Esta é a festa que nos atesta que a vida não é destruída pela morte, mas que na morte se transforma, permitindo o desenvolvimento daquilo que não é muito claro nem visível, porque é um mistério, que é a ressurreição.
E a primeira realidade que somos chamados a ter presente é a da nossa condição de filhos, tal como nos diz a Primeira Carta de São João. Somos filhos no Filho e pelo dom do Espirito Santo recebido no baptismo.
Se pelo nascimento biológico, pela lei da natureza, podemos chamar a Deus criador, fonte de vida, motor eterno, pelo baptismo temos a possibilidade de o chamar Pai, temos a possibilidade de fazer a experiência da filiação e do amor. Não somos apenas mais umas criaturas, uns seres vivos na longa cadeia da evolução que podem passar despercebidos, mas alguém querido e amado, uma pessoa criada à imagem e semelhança, desejada e amada na sua unicidade.
Por este dom da filiação no Filho amado somos também desde logo constituídos na santidade do Pai pelo dom do Espirito Santo. O baptismo faz de nós, de cada um de nós, um reflexo da santidade divina, faz-nos santos para a participação plena na santidade de Deus.
E também por esta razão a solenidade que hoje celebramos nos diz respeito a todos, uma vez que nela estamos já todos presentes na medida da fidelidade ao dom recebido, na medida da nossa santidade de vida. Hoje celebramos já a santidade que habita em nós e entre nós.
Contudo, e como todos os dons recebidos de Deus Pai, também a santidade exige um crescimento, um desenvolvimento para a plenitude. Se o baptismo é um novo nascimento, tal nascimento acontece para que a vida se vá transformando, para que a vida seja uma novidade, algo de diferente. O convite de Jesus a ser santos como o Pai é santo é assim uma invectiva a desenvolver o dom recebido, e a desenvolvê-lo de forma consciente e responsável.
Desenvolvimento que o Evangelho, através das Bem-Aventuranças, nos recorda que não se processa em experiências extraordinárias, em manifestações arrebatadas e ultraterrestres, em aspirações tresloucadas e paradisíacas.
Bem pelo contrário, e por isso hoje celebramos todos os santos, a santidade é uma realidade que se desenvolve e cresce na simplicidade do quotidiano, no coração da vida e dos seus elementos mais normais. É na humildade e na justiça, é na dor e no sofrimento, é na alegria e na paz, é na misericórdia e no perdão, é na amizade e na compreensão que a santidade se desenvolve e plenifica.
Celebrar todos os Santos é assim uma forma de a Igreja nos alertar e convidar para a nossa santidade e para a forma como ela está a crescer em nós, ou pelo contrário está a ficar atrofiada devido à nossa falta de abertura e acolhimento do dom recebido.
Ser santo é um dom de Deus, é uma oferta que nos é proporcionada, e por isso do nosso acolhimento e disposição para o fazer crescer depende a sua plena realização. Procuremos pois na vivência quotidiana das Bem-Aventuranças, na caridade para com os nossos irmãos, incarnar a santidade, fazê-la vida, confiantes e conscientes que aquele que se eleva na santidade eleva consigo todo o mundo à sua volta.

 
Ilustração: Detalhe com os Santos do “Juízo Final”, de Fra Angélico, Museu de São Marcos, Florença.

Deus é silêncio

 
Quando somos jovens não sabemos ainda que Deus escuta à porta do coração, que Ele não é nada mais que um silêncio, mas que silêncio!

Christian Bobin,
Ilustração: Espaço do Jardim de Serralves em fim de tarde de outono.