segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Homilia do XXV Domingo do Tempo Comum - Ano A

Os meus caminhos não são os vossos caminhos e os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, escutávamos na leitura do Livro do Profeta Isaías; e quando nos confrontamos com a parábola dos trabalhadores da vinha, que escutámos na leitura do Evangelho de São Mateus, percebemos que é bem verdade, os nossos pensamentos não são os pensamentos de Deus, a nossa justiça não é a justiça de Deus.
Diante do pagamento de forma igual para trabalhadores que despenderam horas e esforços distintos, como escutámos na parábola, somos quase instintivamente levados a pensar que Deus é injusto, que maneja uma lógica que não nos parece nada certa, nada justa.
Esta não é contudo a única ocasião; estranhamente, ao percorrer a Sagrada Escritura, encontramos outros momentos e outras histórias que nos colocam diante de uma lógica pouco acertada, de opções divinas aparentemente injustas, como acontece por exemplo com o sacrifício de Abel e Caim.
Porque é que Deus aceita a oferta de Abel em detrimento da de Caim, quando afinal este último não cometeu nada de errado, apresenta apenas os produtos da terra? Pelo contrário é o seu irmão Abel que ao apresentar a oferta comete um crime até aí não registado na obra da criação, como é a morte de um animal.
A história de Jacob e Esaú é outro exemplo, pois a bênção patriarcal é obtida através de uma trapaça, de uma mentira. E a história de David, o grande rei, também não fica atrás nesta lógica que poderíamos dizer disfuncional, pois David quando é escolhido para ser ungido como rei é o mais novo dos irmãos, o que teria menos competências. E mais tarde, apesar de toda a tragédia e violência que envolve a história de David com a mulher de Urias, é o filho deste adultério que vai suceder a David e ser o rei da sabedoria.
Enganar-se-á Deus nas suas opções, andará equivocado? Ou tal como nos dizia o profeta Isaías os seus pensamentos e os seus caminhos são diferentes dos nossos?
As diversas histórias que encontramos de injustiça são contudo histórias de amor, histórias de justiça. Recordando São Paulo, estas histórias revelam-nos que Deus escolhe os fracos, os pecadores, para confundir os fortes, para consciencializar os bons da bondade que não lhes pertence mas é oferecida. Estas histórias recordam-nos que ninguém pode fazer valer os seus títulos para justificar os dons de Deus.
Afinal Deus dá-nos tudo o que nós somos, tudo o que aceitamos ser na nossa liberdade e face à sua oferta. Deus não nos ama porque somos bons, só Deus é bom diz Jesus ao jovem rico que se aproxima dele, mas somos bons porque Deus nos ama, porque o seu amor se projecta em nós e nos faz ser o que Deus é e não aquilo que somos. Deus torna justo em nós o que é injusto, a justiça divina é justificante, ao contrário da nossa que é retributiva.
Assim, se considerarmos que Deus é injusto, nunca o poderemos fazer pela sua falta de justiça, mas bem pelo contrário pelo seu excesso de amor, Deus não tem limites na sua generosidade, na sua bondade, no seu amor, e isso ultrapassa-nos completamente.
Por essa razão, acontece connosco o que encontramos nos trabalhadores que murmuram do salário recebido, vemos com maus olhos a bondade e generosidade do Senhor para com os outros. Esta murmuração e acusação de injustiça revelam a nossa incapacidade de aceitar o amor de Deus, a generosidade divina de querer fazer com todos de modo igual.
Ao aceitar o pagamento generoso do senhor da vinha tornamo-nos participantes do seu amor, somos não apenas beneficiários mas também agentes, podemos dizer que não nos desprestigiamos por ficar em último lugar, ou receber como os outros, pois aquele mesmo que nos retribui, que nos oferece, colocou-se em último lugar, fez-se servo de todos, para que todos pudessem gozar da sua graça, da sua filiação divina.
A generosidade do senhor da vinha para com todos os trabalhadores é uma manifestação da oferta que nos é feita, a oferta do próprio Deus. E por essa razão a saída ao longo do dia do senhor da vinha e o convite a todos os que encontra, quer prontos a trabalhar quer distraídos do trabalho, ou sem nada para fazer, para que se dirijam à sua vinha.
A vinha tal como nos revela a tradição dos profetas como Isaías, Jeremias, Ezequiel, o livro do Cântico dos Cânticos, é a própria aliança de Deus com o povo, é a relação de intimidade de uma vida comum com Deus. Aceitar ir trabalhar para a vinha é aceitar integrar essa aliança, essa intimidade e relação, e o pagamento é o próprio senhor da vinha, é entrar na sua intimidade como amigo e não como servo.
Que o nosso coração se abra à generosidade de Deus, que o saibamos escutar no apelo que nos faz em cada hora, em cada dia. E se nos acontecer como ao bom ladrão, que apenas na última hora se encontrou com Jesus, o Senhor da Vinha, que saibamos como ele dizer, “lembra-te de mim quando vieres no teu Reino”.

 
Ilustração:
1 – “Os trabalhadores da vinha”, de Christian Wilhelm Ernest Dietrich, Palace on the Water, Royal Baths Museum.
2 – “Parábola dos trabalhadores da vinha”, de Salomon Koninck, Hermitage Museum.

domingo, 17 de setembro de 2017

Homilia do XXIV Domingo do Tempo Comum - Ano A

O Evangelho de São Mateus que escutámos neste domingo apresenta-nos a magnanimidade do perdão, poderíamos dizer a sua dimensão de mistério; que humanamente nos ultrapassa, mas que na fé nos salva e nos edifica como homens e mulheres de verdade.
Nos nossos círculos de relações, nas nossas conversas, é frequente confrontarmo-nos com a acusação de que a Igreja não deixa de falar do pecado, que carregamos os outros com a culpabilização dos erros cometidos, dos pecados. Poderíamos dizer que somos acusados de um certo sadismo, de um gosto de ver os outros culpados.
Contudo, esses mesmos que acusam a Igreja da exploração do pecado são os primeiros a exigir uma nova lei de Talião, a expressar a exigência de olho por olho e dente por dente, a assumir o dogma da nossa sociedade ocidental e capitalista de que tudo tem que se pagar, tudo deve ser pago. Alguém que cometeu uma falta deve pagar por ela.
O Evangelho de Jesus Cristo opõe-se determinantemente a esta concepção, podemos dizer que inverte os polos, e assim o pecado passa para um segundo plano porque o verdadeiramente fundamental é o perdão, é a grandeza do perdão que Deus nos concede e somos convocados a viver uns com os outros.
A parábola do rei que vem ajustar contas, e que Jesus apresenta a Pedro para ilustrar a necessidade de não se ficar num perdão limitado, confinado a uma determinação, mostra-nos a mudança operada, a disparidade de realidades.
Quando o rei se apresenta para cobrar as suas dívidas estamos ao nível da justiça, estamos ainda sob o regime da lei, e portanto se há alguma dívida é justo, é de lei, que seja remida. E é perante esta lei, esta justiça, que é aceitável que o servo tenha que perder tudo para pagar a sua dívida, como a mulher e os filhos.
Esta violência, este exagero da usurpação do que é mais querido e fundamental como a família para ser vendido, tem na parábola o efeito de ajudar a tomar consciência da dimensão da dívida e das suas consequências. O pecado pode de facto levar-nos a perder tudo, até o que nos é mais querido e fundamental como a família.
O pedido aflito do servo, consciente da dimensão e gravidade da sua dívida, leva à mudança de atitude do senhor e rei, que se enche de compaixão e piedade, sentimentos que não são já da ordem da justiça, mas do amor e da dignidade do próprio senhor e rei. É a sua dignidade, a sua magnanimidade que lhe permitem esta mudança de registro. O direito da equivalência é substituído pela gratuidade, pela liberalidade.
A cena seguinte da parábola mostra-nos no entanto que o servo liberto e perdoado não percebeu nada do que lhe tinha sucedido, pois ao espancar e condenar à prisão o seu companheiro e igual ignora a sabedoria e grandeza daquele que lhe tinha dado tanto, ignora e esquece a compaixão de que tinha sido objecto. Ao exigir o pagamento do seu companheiro, o servo perdoado permaneceu no jugo da lei, permaneceu preso à sua dívida, não assumiu a liberdade alcançada.
Por esta razão se torna extremamente importante para nós a repreensão do rei quando o servo devedor volta à sua presença. Antes de mais pela chamada de atenção pela falta de sensibilidade para com o outro, e depois pela falta de semelhança da atitude do seu senhor. Aquele a quem tinha sido perdoada toda a dívida não tinha sido capaz de ser como o senhor, de o imitar nos seus gestos e magnanimidade.
Este “ser como” que o senhor refere é bastante significativo na parábola, pois exige uma semelhança, um acolhimento, um assumir de que o perdão só nos alcança na medida em que o realizamos com os outros, em que somos capazes de perdoar os outros. Como nos questionava a leitura do Livro de Ben-Sirá, como podemos pedir perdão a Deus se somos incapazes de perdoar os nossos semelhantes? Como podemos pedir a Deus a cura e guardamos rancor do nosso semelhante?
O perdão é uma realidade divina, Deus perdoou-nos antes de nós o merecermos, como nos diz São Paulo, e portanto mais não podemos fazer que perdoar os nossos irmãos. Poderíamos dizer que o perdão é como um rio, um fluxo que parte de Deus, mas só nos irriga e ilumina, na medida em que somos passagem, canalização, para outros.
Para nos ajudar e facilitar a viver o perdão, a assumi-lo na nossa vida, para além da consciência de que Deus nos perdoou primeiro, não podemos esquecer as palavras de São Paulo, de que não vivemos nem morremos para nós próprios.
Assim, quando ao procurarmos viver o perdão nos apareça a tentação de que será uma humilhação, uma inferiorização, um desprestígio, devemos antepor e confrontar essa tentação com a certeza de que não morremos, nem nos humilhamos, mas bem pelo contrário assumimos o papel e a função de ser como aquele que nos perdoou primeiro, que é um pai amoroso, um rei magnânimo, um servo que entrega a sua vida para a salvação do outro.

 
Ilustração:
1 – “A parábola do servo injusto”, Jan Sanders van Hemessen, University of Michigan Museum of Art, Ann Arbor.
2 – “A parábola do servo injusto”, Domenico Fetti, Gemaldegalerie Alte Meister, Dresden.    

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Homilia do XXII Domingo do Tempo Comum - Ano A

Estamos a regressar das férias de verão, aos poucos vamos retomando as nossas actividades, e sabiamente no plano de Deus as leituras deste domingo ajudam-nos a olhar para o trabalho que vamos retomar, para as actividades que constituem o nosso quotidiano e nas quais somos chamados a ser cristãos, a tomar a cruz tal como Jesus nos interpela no Evangelho de São Mateus que escutámos.
Muitas vezes, e até mesmo nos comentários a esta passagem do Evangelho encontramos, infelizmente, uma conotação muito negativa deste carregar a cruz; poderíamos dizer, uma carga brutal de convicção de que a cruz é sofrimento. Temo que sofrer, temos que sofrer, é a nossa cruz.
Esta convicção afasta-se contudo do plano de Deus e das próprias palavras de Jesus. Não foi Deus que desejou o sofrimento do homem, assim como a morte não é da sua vontade, uma e outra realidade são consequência do nosso pecado e da nossa condição finita. Por outro lado, o anúncio que Jesus faz aos discípulos não termina na cruz nem na morte, há a ressurreição, que Pedro não percebeu e portanto como amigo tentou desviar Jesus do fim trágico anunciado.
Pedro tinha em vista as coisas dos homens, podíamos dizer a nossa busca de felicidade sem qualquer entrave ou sofrimento. Contudo, o fim último que Jesus apresenta, a felicidade da eternidade expressa na ressurreição, e que nos deve orientar, passa para além do sofrimento e da morte, é superior, e é ele que nos deve iluminar e guiar.
Neste sentido, ao retomarmos os nossos ritmos, somos convidados a acolher a nossa cruz, não como um fim, uma fatalidade, mas como uma realidade intrínseca a opções que se fazem por um fim maior, que se fazem por amor. Alguém que ama, que está apaixonado, é capaz de acolher o sofrimento de não ter outrem ou não estar em outro lugar, porque está com a pessoa amada. A dor da renúncia, o sacrifício, são assim relativizados, pois o mais importante é o que amamos, o que consideramos importante, e pelo qual abdicamos de outras coisas.
Assumir a nossa cruz, carregar com ela, exige assim na medida em que priorizamos umas realidades e relativizamos outras, em que realizamos um discernimento dos valores intrínsecos a cada objecto, pessoa ou actividade, uma transformação interior, uma não conformação com este mundo, como nos diz São Paulo na Carta aos Romanos.  
Esta não conformação com o mundo passa pelas realidades exteriores que não dignificam o homem, não respeitam a vida e a natureza, mas passa sobretudo pela interioridade do homem e por esse culto espiritual que somos chamados a exercer. A nossa vida deve ser uma manifestação da beleza e do amor de Deus, da ternura da verdade de sermos filhos amados de Deus.
Como acontecia com o profeta Jeremias, da primeira leitura deste domingo, há em nós um ardor, uma vida divina que nos impele a ir mais além, a fazer o bem, a procurar a verdade, a tentar a perfeição, a buscar a ressurreição, e que muitas vezes é obrigado a desenvolver-se no meio da violência, do ódio e da perseguição.
A sedução de Deus, do divino que ansiamos, provoca-nos à busca infinita e não podemos abdicar dela, porque de contrário e como diz Deus ao profeta é dos homens que passaremos a ter medo, e a nossa vida será uma total perda ainda que tenhamos ganho o mundo, como diz São Paulo.
Como discípulos de Jesus, ao voltarmos ao nosso trabalho, aos ritmos da nossa vida familiar, às nossas relações sociais, que o amor presida a todas as nossas palavras e gestos, que não nos deixemos vencer pela tentação do mais fácil, como é proposto a Jesus por Pedro e nas tentações do deserto, mas que aspiremos sempre ao bem maior, à plena realização como homens filhos de Deus, conscientes de que a lógica do amor implica uma morte, uma cruz, mas que ela não tem a última palavra, essa chama-se ressurreição.

 
Ilustração:
“Opção – Toma a cruz e segue”, de Andrey N. Mironov.