Queridos Amigos
A leitura que escutámos da Epístola
aos Hebreus diz-nos que Jesus durante a sua vida mortal dirigiu preces e
súplicas àquele que o podia livrar da morte. O momento que mais profundamente
recordamos esta vivência e petição de Jesus é certamente o do momento da agonia
de Jesus no jardim das oliveiras: Pai se for possível que se afaste de mim este
cálice. Mas houve outros e o Evangelho de São João que hoje escutámos apresenta-nos
outro.
Uma leitura e um momento que nos
colocam perante um facto inevitável, uma realidade profundamente e
intrinsecamente humana que todos nós vivemos e que Jesus não pôde também deixar
de viver como verdadeiro homem.
Vivemos um processo de desenraizamento,
usando uma imagem muito bíblica, vivemos em constante trabalho de parto. Desde que
nascemos, ou melhor, desde que fomos concebidos vivemos num constante
nascimento, num constante processo de partida, como se o lugar, o tempo e o
modo em que nos encontramos fosse uma terra de exílio, um Egipto que temos que deixar
para trás.
E paradoxalmente, vivemos este
processo de forma descontinuada, como momentos de pausa para respirar fundo, e
outros momentos para fazer força, muita força para que a vida nova veja a luz. As
mães que estão aqui presentes sabem muito bem do que estou a falar. E há a dor,
a angústia, o sofrimento, mas depois a alegria, a vida nova que se pode tomar
nos braços. E nós homens, muitas vezes estamos lá ao lado para cair para o
lado.
Jesus sabe como tudo isto funciona,
como funcionamos, como somos capazes de fazer força, outras vezes como
necessitamos de parar para respirar, de como estamos feitos para a vida e uma
vida nova nos espera; mas para além disso, para além desse saber, ele sabe
também que nenhuma dor lhe será poupada, que vai sofrer também as dores do
parto de uma nova vida, que vai dar à luz, não um homem ou uma mulher, mas uma
humanidade.
E por isso as suas palavras de que
tem a alma em sofrimento, perturbada, em angústia; é uma manifestação da
solidariedade para com as nossas dores, as nossas angústias e sofrimentos, mas
é igualmente a manifestação da nossa profunda humanidade animal, que como
bichos acossados, encerrados numa armadilha, procuram uma forma de escapar, um
meio de sobrevivência. Face ao horror da morte como podemos escapar dela?
E paradoxalmente, inexplicavelmente,
nós acreditamos num Deus que se deixou pregar numa cruz, que se deixou matar,
que suportou o sofrimento. Como é que podemos acreditar? Jesus não nos livra da
morte, da experiência da morte, coloca-a bem diante dos nossos olhos. Não é
mais fácil escolher outro Deus, um ídolo que é um bezerro de ouro, dizermo-nos
ateus?
E contudo, no meio desta trama da
nossa vida, em resposta ao pedido para que o Pai glorifique o seu nome, uma voz
que se faz ouvir do céu: já o glorifiquei e tornarei a glorificar. Na tua dor,
na tua angústia, nesta terra de exílio e escravidão, és o meu filho muito amado,
tens a garantia do meu amor de forma imutável, eterna, inquestionável.
Não são já os sacríficos antigos, os
holocaustos, uma lei exterior que te governa e coloca em relação comigo, é a
lei que inscrevi no teu coração, que gravei no mais íntimo do teu ser. Eu sou o
teu Deus e tu és o meu povo, o meu filho, sois meus filhos. Eu amo-vos e espero
apenas o vosso amor.
A assim, a vida perdida em amor,
convertida em desapego e desenraizamento, em constante processo de nascimento,
é uma vida válida, é uma vida para a vida eterna, como dizia o frei Bernardo
uma vida vivida com dignidade garante-nos a dignidade eterna.
Jesus não nos propõe uma escapatória
à morte, ele experimentou-a por cada um de nós e para cada um de nós, para nos
propor uma caminhada de vida, para converter o nosso desenraizamento, para que a
nossa partida deste exílio seja vivida sem amargura e azedume.
Não se trata de odiar a vida, mas amá-la
com tudo o que ela encerra, vivê-la como única, irrepetível, inseri-la na longuíssima
e eterna vida de Deus.
Como rezávamos no Salmo, Senhor, cria
em mim um coração puro, um espírito firme, sustenta-me com um espirito generoso,
para viver na tua presença, para viver o teu espirito de santidade, para ser luz
nos caminhos dos homens nossos irmãos.
Ilustração:
1 – Jesus ensinando a multidão, gravura
de Heinrich Hofmann.