segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Homilia da Solenidade da Imaculada Conceição

Celebramos a Solenidade da Imaculada Conceição, uma festa litúrgica que surge na consequência da proclamação do dogma da Imaculada Conceição em 1854, mas cujo sentido é já bastante antigo, é património da fé da Igreja desde que esta assume Maria como Mãe de Deus. O dogma e a fé na imaculada concepção de Maria está intimamente associada ao dogma e à fé de que Maria é Mãe de Deus.
Tal formulação não significa a constituição de um panteão divino, de uma geografia divina à semelhança do que acontecia com os mundos e religiões romana e gregas. Não se trata da confecção de uma deusa para uma família divina completamente dominada por figuras masculinas.
A Virgem Maria na sua maternidade divina e na sua imaculada concepção é a perfeita participação num mistério que se desenvolve num abaixamento, no aniquilamento, que conduz posteriormente à elevação e à glória. Deus desce até aos homens, incarna no seio de uma mulher, para que os homens possam ser elevados à sua dignidade divina.
Ao participar neste mistério, neste processo revolucionário, Maria assume a sua pequenez, a sua condição de colaboradora, para que o mistério se desenvolva, mas ao fazê-lo adquire a sua notoriedade, eleva-se pela acção de que é participante.
Há em nós uma tendência inata para opor estes dois movimentos, pois o que desce, o que se abaixa, não pode estar a elevar-se. Contudo, no mistério da revelação e da nossa redenção, na economia da salvação, um movimento não acontece sem o outro, eles estão intrinsecamente ligados, produzindo o abaixamento a elevação.
O Verbo ao fazer-se homem desce até à condição humana, aniquila-se na sua condição divina, mas é esta descida e aniquilamento que permitem o reconhecimento da sua natureza divina. É o Filho que se faz homem e perante tal movimento o Pai não pode deixar de exaltar o Filho.
A Virgem Maria participa deste movimento e deste aniquilamento, é a matéria mãe em que se gera a incarnação do Verbo, e portanto é também ela exaltada na exaltação do Filho, participa da sua glória, e de certa forma por antecipação na imaculada conceição, na preparação que Deus opera para que possa realizar a missão a que é convidada.
Com tal acção Deus não nos afasta Maria da nossa relação, nem da nossa condição humana, não a eleva a um patamar divino acima dos outros homens, mas bem pelo contrário, coloca-a bem próxima, o mais próximo possível de todos, porque ao estar preservada do pecado, que é a grande barreira que separa os homens, Maria está próxima de todos.  
Neste sentido a nossa fé e a nossa devoção a Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, não pode deixar de passar por um seguimento na sua atitude de humildade, nesse acolhimento da oferta de Deus, que não nos escraviza nem empequenece, mas pelo contrário nos eleva a uma proximidade insuspeita de Deus e dos irmãos.
Não é fácil acolher este movimento de humilde abaixamento, uma vez que frequentemente estamos centrados na nossa satisfação, nos nossos planos e na glória que esperamos das nossas acções. Vivemos centrados em nós e tal centralidade impede-nos de acolher a novidade descentralizante de Deus que nos exalta e glorifica.
A celebração da Solenidade da Imaculada Conceição oferece-nos a oportunidade de pelo menos uma vez por ano nos apercebermos como ser pequeno e humilde é a via para a exaltação, para a glória, de tomarmos consciência de como cada gesto de acolhimento da vontade de Deus revela a graça que habita em nós.
Diante da tua presença e do teu dom, Senhor, que humildemente se faça em nós a tua vontade.

 
Ilustração:
“Imaculada”, atribuída a Diego Velásquez, Sevilha, Centro de Investigações Diego Velásquez:

domingo, 23 de novembro de 2014

Homilia da Solenidade de Cristo Rei

Celebramos a Solenidade de Cristo Rei, último domingo do ano litúrgico, mas ao fazê-lo somos convidados a olhar o início, o acontecimento que dentro de uma semana começaremos a preparar com o Advento.
No final do ciclo litúrgico contemplamos o Rei da Glória, um Rei que nos foi apresentado no início do ciclo litúrgico deitado numa manjedoura, pobre e indefeso, exposto e oferecido a todos os homens capazes de baixar o olhar até ele.
Contudo, já nessa pobreza e simplicidade o anjo Gabriel nos anunciava a grandeza e realeza desse menino, a glória que hoje celebramos, pois no anúncio da concepção divina, é dito a Maria que este menino será grande e que o seu reinado não terá fim.
Ao longo do ano, nas diversas leituras e festas, esta realeza foi sendo iluminada, apresentada aos nossos olhos, ainda que não do modo grandioso como aspiramos na nossa condição humana, mas bem pelo contrário de uma forma completamente subversiva e revolucionária, pois se os senhores do mundo se servem e exploram os outros, no reino de Jesus tal não deve acontecer, entre os seus discípulos e filhos não deve ser assim.
Neste sentido, e como não podia deixar de ser após um ano de preparação, as leituras desta Solenidade colocam-nos face à extraordinária realeza que Jesus vive e que nos oferece a cada um de nós, pois pelo baptismo somos profetas, sacerdotes e reis com ele e nele.
A imagem do rei que é pastor, que nos apresentava o profeta Ezequiel, é assim desde logo uma imagem bastante sugestiva, uma vez que nos mostra a solicitude e a ternura deste rei. É uma imagem que se opõe à concepção e imagens que nos são dadas por aqueles que vivem nos centros de poder e nos palácios de governação.
O rei que é pastor é alguém que é próximo, que não só está no meio do povo, do seu rebanho, mas que se compromete com ele, que tem uma acção directa no sentido da sua protecção e desenvolvimento. É um rei que não foge quando o rebanho é atacado, que não é cobarde, mas que está presente e defende, e é capaz de dar a sua própria vida pela salvação e bem-estar do seu rebanho.  
Este rei pastor manifesta a sua realeza suprema nessa capacidade de dom, de entrega, de dar a sua vida pelo rebanho e pelo povo, manifesta a sua realeza suprema no amor que tem pelos seus, pois sabe que o amor não pode morrer, que nada vencerá o amor, tal como é cantado pela amada no Cântico dos Cânticos.
E Jesus encarnou este amor e manifestou a sua realeza gloriosa não só quando veio habitar entre os homens, quando se fez homem como os homens excepto no pecado, mas sobretudo quando se ofereceu ao Pai em sacrifício por todos os homens seus irmãos, para os poder resgatar do poder da morte. Por esta razão a Igreja desde sempre canta a cruz como o grande trono de glória de Jesus Cristo, como o lugar por excelência da manifestação da realeza de Jesus.
Mas se esta glória é manifestada, se Jesus assume algum poder executivo, usando linguagem do mundo, não é para exaltação pessoal, mas bem pelo contrário, e como nos diz a leitura da Carta de São Paulo aos Coríntios, para que depois de aniquilada toda a soberania, autoridade e poder, tudo seja entregue ao Pai.
O Filho que é Jesus está assim em missão e é na realização dessa missão que manifesta a sua realeza, pela fidelidade e pela entrega da sua vontade à plena realização do plano e da vontade do Pai. É no serviço ao Pai que Jesus se manifesta como rei e manifesta o seu poder real.
Neste sentido a nossa participação na sua realeza, a manifestação da nossa condição real e divina, passa pelo serviço, e tal como nos apresenta o Evangelho, por um serviço que não nos ultrapassa e do qual não nos podemos escusar nem desculpar, pois compõe-se de tarefas tão simples como dar um copo de água, ou visitar outra pessoa que necessita.
Pela leitura do Evangelho, e diante do julgamento a que todos seremos sujeitos no fim dos tempos como o Evangelho nos apresenta, percebemos que o critério utilizado para a participação na glória do Reino não é a proclamação da fé, o dizer “Senhor, Senhor”, mas o exercício dessa fé em obras de caridade, em obras que manifestam a habitação do divino em nós e entre nós.
E uma vez mais somos obrigados a olhar para o menino da manjedoura, imagem dos sem poder e sem voz, dos indefesos e necessitados, dos pequeninos de que nos fala o Evangelho e nos quais o Senhor se nos apresenta e desafia no acolhimento e no amor, no desenvolvimento da nossa realeza.
Ao terminarmos um ano litúrgico, ao contemplarmos como a realeza e a glória de Jesus acontece no serviço, na entrega aos mais frágeis, aos homens que somos pecadores, procuremos desenvolver gestos e palavras que nos coloquem verdadeiramente na senda do nosso Salvador, procuremos fazer-nos pequenos para acolher o dom que o Senhor nos faz e na alegria do dom recebido partilhá-lo com os nossos outros irmãos.

 
Ilustração:
1 – “O Filho de Deus”, de Viktor Vasnetsov, Catedral de São Vladimir, Kiev.
2 – “Jesus com uma família de camponeses”, de Fritz von Uhde.

domingo, 16 de novembro de 2014

Homilia do XXXIII Domingo do Tempo Comum

Estamos no penúltimo domingo do ano litúrgico, no próximo domingo celebraremos a Festa de Cristo Rei, e as leituras que a Liturgia da Palavra nos oferece estão marcadas por essa nota de final dos tempos, pela nota da vinda do Senhor, dada de modo particular pela leitura da Carta de São Paulo aos Tessalonicenses.
É uma carta na qual São Paulo tem que afrontar este tema porque a comunidade cristã de Tessalónica vivia na apreensão dessa vinda, desse tempo indefinido. Há uma preocupação que limita os comportamentos e a fidelidade e São Paulo vê-se obrigado a clarificar a situação.
Neste sentido São Paulo chama a atenção para a verdadeira questão que se coloca, pois o problema não é o quando, o momento exacto da vinda, poderíamos dizer a problemática temporal, mas o estado em que tal vinda nos encontrará, a problemática ontológica, o nosso estado de ser cristão.
E a parábola dos talentos que Jesus conta aos seus discípulos, e que escutámos no Evangelho, ajuda-nos a compreender como de facto o problema não se coloca no tempo mas no estado em que nos encontramos, pois o Senhor vem inevitavelmente para ajustar contas e necessitamos ter alguma coisa para lhe devolver.
E ter alguma coisa para devolver significa que se acolheu o dom, que se acolheu os talentos recebidos, fossem eles muitos ou poucos, e que se acolheram para nos fazer participantes da casa do senhor, herdeiros com ele.
Compromisso que o terceiro servo da parábola não percebeu e por isso nos aparece como o exemplo pela negativa, como aquele que não deve ser seguido, pois ao enterrar o talento estava a recusar o dom do seu senhor, estava a negar-se à participação na casa e património do senhor.
Para que não ficasse qualquer dúvida, e para que percebêssemos como podemos incorrer no mesmo erro, a parábola faz-nos um percurso pelos sentimentos do servo que recebeu apenas um talento, apresenta-nos uma fotografia psicológica, denunciando dessa forma a imagem e o conceito que o servo tinha do seu senhor.
É o medo, o juízo preconceituoso sobre a acção do seu senhor, que recolhe onde não semeia, que leva o servo ao desastre, que inviabiliza o acolhimento do dom que lhe é feito, contrariamente aos outros dois servos que não têm qualquer preocupação, dedicando-se por isso apenas a trabalhar para que o recebido frutifique.
Desta forma, e com este espirito de liberdade, quando o senhor chega para ajustar contas, nada é reclamado, nem o recebido nem o frutificado, mas tudo é deixado àquele que se apresenta para prestar contas, razão pela qual pode participar e partilhar da alegria do seu senhor. O senhor não recupera os seus talentos nem o rendimento alcançado, mas tudo é deixado àquele a quem foi confiado para que possa participar da alegria do senhor e usufruir do património, ser herdeiro com o seu senhor.
A vinda do senhor não é assim para julgar, para condenar, mas para constatar da fecundidade de cada um dos seus servos, fecundidade que é já por si participação na alegria e património do senhor. O que está em causa não é assim a eficácia mas a fidelidade, o acolhimento dos dons e talentos de forma responsável.
A parábola dos talentos abre-nos desta forma um horizonte de esperança, uma vez que cada talento e a sua rentabilização é um compromisso com o projecto de salvação, é ter a certeza que Deus salva, mas que nessa salvação não prescinde da nossa participação, do nosso compromisso com esse desejo.
E este compromisso é vivido, ou pode ser vivido, segundo a forma como a mulher do Livros dos Provérbios vive a sua condição de mulher virtuosa, ou seja através da confiança que gera nos outros, do trabalho alegre, da caridade para com os necessitados e do temor de Deus.
São pequenas realidades do nosso dia-a-dia que nos desafiam na fidelidade e na fecundidade, sobretudo a caridade que é o mais rentável de todos os dons e talentos, pois tal como diz São Gregório Magno, quem possui a caridade possui todos os outros dons, e àquele que a tem ainda mais lhe será dado.
Procuremos pois acolher os dons que o Senhor nos oferece, mas sobretudo o dom que é ele próprio e que nos fará apresentar um fruto e um rendimento que permanece para sempre.    

 
Ilustração:
1 – “A parábola dos talentos”, de Andrey Mironov.
2 – Gravura da Parábola dos Talentos, da Historiae Celebriores Veteris Testamenti Iconibus.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Fizemos o que devíamos fazer! (Lc 17,10)

É inquestionável que há dever e dever. Existe aquele dever a que estamos obrigados, que nos é imposto por outrem, muitas vezes até mesmo contra a nossa vontade, mas existe também o dever que é consequência do nosso amor, do sentimento de felicidade a que nos conduz.
Jesus, a quem os discípulos chamavam mestre, define-se frequentemente como o servo, como aquele que veio para servir, não por uma norma ou força exterior a si próprio, mas por amor, pela sua livre vontade de servir e entregar a vida pelos homens.
As palavras de Jesus relativamente ao servo que, mesmo depois de um dia de trabalho, é chamado a servir o seu senhor, mostra-nos que servir é dar, é cumprir as obrigações, mas é também dar-se, fazer-se dom e vida para os outros.
Frequentemente desejamos escolher a forma de servir os outros, os deveres que nos são impostos ou que nos impomos, desejamos fazer a nossa obediência, procuramos um serviço que nos prestigie ou nos dê alguma notoriedade.
E desta forma esquecemos que, à força de querer fazer as obras de Deus, de querer fazer o que achamos bem, de querer servir de acordo com os nossos critérios ou interesses, deixamos de fazer a obra de Deus, o que Deus verdadeiramente nos pede que façamos lá ou cá, onde nos encontramos.
Com a nossa vontade e os nossos critérios corremos igualmente o risco de servir a Deus com o que não somos e não temos, quando a verdadeira grandeza do serviço é servir com o que temos e somos, onde estamos.
Com humildade e amor aceitemos o serviço que o Senhor nos destinou, confiantes que é aí que somos chamados a fazer o que devemos fazer.

 
Ilustração:
“O servo de Isaac colocando a pulseira no braço de Rebeca”, de Benjamin West, Colecção Particular.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Perdoa-lhe! (Lc 17,4)

Se o teu irmão vier ter contigo, perdoa-lhe; perdoa-lhe todas as vezes que vier ter contigo arrependido.
Palavras difíceis as que nos deixa hoje o Senhor, palavras que provocam e nos desconcertam. Palavras de alguém que sabe e vive verdadeiramente o amor e por isso nos deixa este convite, para que possamos fazer a mesma experiência na nossa pobreza e finitude.
Conscientes da dificuldade e das nossas fragilidades, face à radicalidade do convite de Jesus, os discípulos pediram ao Senhor, “aumenta a nossa fé”.
Aumenta Senhor a nossa fé, para que possamos ver para além da ofensa ou do erro do outro, daquele que vem até nós, arrependido.
Aumenta Senhor a nossa fé, porque é a fé que nos faz capazes de perdão, que nos transforma em seres de perdão.
Aumenta Senhor a nossa fé, porque é ela que nos permitirá a capacidade de ser livres face ao mal.
Aumenta Senhor a nossa fé, porque só na fé te poderemos seguir no exemplo do perdão, poderemos dizer entre os tormentos da cruz, “perdoa-lhes Pai”.

 
Ilustração:
Reconciliação de Jacob e Esaú, de Peter Paul Rubens, Galeria Nacional da Escócia.

domingo, 9 de novembro de 2014

Homilia da Festa da Dedicação da Basílica de Latrão

Temos a oportunidade de celebrar neste domingo a Festa da Dedicação da Basílica de Latrão, aquela que é considerada a primeira das basílicas de Roma e a sede do Bispo de Roma.
Esta festa e os textos que a Liturgia da Palavra nos propõe dá-nos a oportunidade de olhar com um pouco mais de atenção para a nossa realidade divina, para a dimensão da habitabilidade de Deus em cada um de nós.
E não podemos deixar de ter como ponto de partida as palavras do Evangelho de São João que escutámos, nas quais o evangelista tem o cuidado de salientar que as palavras de Jesus diziam respeito ao seu corpo.
É depois de ter expulsado os vendedores do templo, manifestando desta forma um dos sinais apresentados pelo profeta Zacarias para a identificação da presença do Messias entre o povo, e questionado sobre a autoridade para tal gesto, que Jesus desafia os judeus presentes com a destruição do templo e a sua capacidade de o reconstruir em três dias.
Para uma melhor compreensão do que está verdadeiramente em causa temos que ter presente as palavras que Jesus utiliza, pois Jesus não utiliza o vocábulo “ieron”, que diz respeito a todo o conjunto edificado do templo, mas o vocábulo “naos” que diz respeito apenas ao santo dos santos, ao espaço mais secreto e sagrado do templo, no qual era apresentado o sacrifício de expiação pelos pecados do povo.
O desafio de Jesus não se coloca assim no âmbito do edificado, do material, mas no âmbito do relacional, do lugar onde a presença e o diálogo com Deus é possível, e esse lugar é o corpo do homem, é a pessoa na sua totalidade, tal como os apóstolos reconhecem depois da ressurreição e da confirmação das palavras de Jesus sobre a reconstrução do templo corpo em três dias.
Esta consciência é de tal modo assumida que São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios vai dizer que somos edifícios de Deus, templos de Deus nos quais habita o seu Espirito, dando assim ao corpo uma dimensão e uma dignidade que ainda hoje nos custa a aceitar e a viver, embora toda a nossa civilização e cultura assente no reconhecimento dessa dignidade.
Os direitos do homem, os cuidados paliativos que hoje encontramos nos hospitais, o próprio cuidado com o cadáver dos defuntos, as reivindicações pela qualidade do trabalho e pelo descanso, as convenções para os presos de guerra e tantas outras realidades, são consequência dessa atenção e dignidade que o cristianismo sempre deu ao corpo face a esta consciência da habitabilidade de Deus no homem.
Contudo, e apesar de toda a atenção e direitos, convenções e acordos, há ainda muito a consciencializar nesta questão, e sobretudo quando descemos ao dia a dia, ao nosso quotidiano, e nos deparamos com falta de atenção e violência sobre o outro nos nossos próprios ambientes, casas, escolas e trabalhos.
Quantas vezes uma resposta agressiva, uma falta de educação, um gesto violento, não denuncia esta falta de consciência de que diante de nós temos alguém no qual habita Deus, que é presença divina. Neste sentido necessitamos descobrir ou redescobrir o valor do outro, a sua dignidade natural, não só pelo facto de ser pessoa, mas pela presença do Espirito de Deus na sua humanidade.  
Por outro lado necessitamos também redescobrir ou descobrir como Deus nos oferece e faculta uma fonte de alimentação dessa divinidade, dessa dignidade divina que habita em nós, a qual pode ser alimentada pela água que corre do santuário tal como nos dizia o profeta Ezequiel.
Essa água que corre do santuário é a água e o sangue que corre do santuário que é o próprio corpo de Cristo, no qual foi aberta a nascente da vida pela lança do centurião romano no momento da morte. Essa água e esse sangue, sinais do Baptismo e da Eucaristia, transformam-nos e regeneram-nos nessa dignidade divina que nos habita, alimentam e fortalecem essa mesma dignidade.
Deste modo, ao alimentarmo-nos do corpo do Senhor, como fazemos nesta celebração, a responsabilidade de dignificarmos o nosso corpo e o corpo do outro torna-se mais urgente e necessária, pois em cada comunhão respondemos ao sacerdote que nos apresenta o Corpo de Cristo com o nosso assentimento e consentimento em sermos também nós corpo de Cristo e portanto templos vivos do Espirito de Deus.
Conscientes de que somos templos de Deus, procuremos tal como nos convida São Paulo ver como construímos o nosso templo, como somos fiéis ao alicerce sobre o qual fomos colocados, que é o próprio Cristo, e ao qual cada vez mais nos temos que configurar e assemelhar.

 
Ilustração:
1 – “Jesus expulsando os vendedores do templo”, de El Greco, National Gallery, Londres.
2 – “A Fonte da Vida”, de Colijn de Coter, Misericórdia do Porto.

sábado, 1 de novembro de 2014

Homilia da Solenidade de Todos os Santos

A Igreja celebra hoje Todos os Santos, uma solenidade para fazer memória de todos aqueles que viveram uma vida santa, mas não fazem parte do nosso calendário nem ocupam nenhum lugar nos nossos altares. É essa multidão inumerável de que nos falava a leitura do Livro do Apocalipse, a multidão que lavou as suas túnicas no sangue do cordeiro.
É uma celebração que nos convida à alegria e à esperança, uma vez que nos aponta e recorda homens e mulheres como nós, homens e mulheres que alcançaram a santidade na simplicidade do seu quotidiano, homens e mulheres que se deixaram transformar pelo amor redentor e por isso contemplam e exultam diante da face de Deus.
Neste sentido é uma celebração que nos convida a olhar para nós e a ter presente a nossa condição e o fim a que estamos destinados. Esta é a festa que nos atesta que a vida não é destruída pela morte, mas que na morte se transforma, permitindo o desenvolvimento daquilo que não é muito claro nem visível, porque é um mistério, que é a ressurreição.
E a primeira realidade que somos chamados a ter presente é a da nossa condição de filhos, tal como nos diz a Primeira Carta de São João. Somos filhos no Filho e pelo dom do Espirito Santo recebido no baptismo.
Se pelo nascimento biológico, pela lei da natureza, podemos chamar a Deus criador, fonte de vida, motor eterno, pelo baptismo temos a possibilidade de o chamar Pai, temos a possibilidade de fazer a experiência da filiação e do amor. Não somos apenas mais umas criaturas, uns seres vivos na longa cadeia da evolução que podem passar despercebidos, mas alguém querido e amado, uma pessoa criada à imagem e semelhança, desejada e amada na sua unicidade.
Por este dom da filiação no Filho amado somos também desde logo constituídos na santidade do Pai pelo dom do Espirito Santo. O baptismo faz de nós, de cada um de nós, um reflexo da santidade divina, faz-nos santos para a participação plena na santidade de Deus.
E também por esta razão a solenidade que hoje celebramos nos diz respeito a todos, uma vez que nela estamos já todos presentes na medida da fidelidade ao dom recebido, na medida da nossa santidade de vida. Hoje celebramos já a santidade que habita em nós e entre nós.
Contudo, e como todos os dons recebidos de Deus Pai, também a santidade exige um crescimento, um desenvolvimento para a plenitude. Se o baptismo é um novo nascimento, tal nascimento acontece para que a vida se vá transformando, para que a vida seja uma novidade, algo de diferente. O convite de Jesus a ser santos como o Pai é santo é assim uma invectiva a desenvolver o dom recebido, e a desenvolvê-lo de forma consciente e responsável.
Desenvolvimento que o Evangelho, através das Bem-Aventuranças, nos recorda que não se processa em experiências extraordinárias, em manifestações arrebatadas e ultraterrestres, em aspirações tresloucadas e paradisíacas.
Bem pelo contrário, e por isso hoje celebramos todos os santos, a santidade é uma realidade que se desenvolve e cresce na simplicidade do quotidiano, no coração da vida e dos seus elementos mais normais. É na humildade e na justiça, é na dor e no sofrimento, é na alegria e na paz, é na misericórdia e no perdão, é na amizade e na compreensão que a santidade se desenvolve e plenifica.
Celebrar todos os Santos é assim uma forma de a Igreja nos alertar e convidar para a nossa santidade e para a forma como ela está a crescer em nós, ou pelo contrário está a ficar atrofiada devido à nossa falta de abertura e acolhimento do dom recebido.
Ser santo é um dom de Deus, é uma oferta que nos é proporcionada, e por isso do nosso acolhimento e disposição para o fazer crescer depende a sua plena realização. Procuremos pois na vivência quotidiana das Bem-Aventuranças, na caridade para com os nossos irmãos, incarnar a santidade, fazê-la vida, confiantes e conscientes que aquele que se eleva na santidade eleva consigo todo o mundo à sua volta.

 
Ilustração: Detalhe com os Santos do “Juízo Final”, de Fra Angélico, Museu de São Marcos, Florença.

Deus é silêncio

 
Quando somos jovens não sabemos ainda que Deus escuta à porta do coração, que Ele não é nada mais que um silêncio, mas que silêncio!

Christian Bobin,
Ilustração: Espaço do Jardim de Serralves em fim de tarde de outono.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

É lícito ou não curar ao sábado? (Lc 14,3)

Ainda que convidado para a casa de um dos principais dos fariseus, Jesus não se intimida com aqueles que o rodeiam, com o estatuto social daqueles que são os seus anfitriões.
Acima de tudo está a verdade e o bem do homem, e por isso quando se depara com um hidrópico no meio dos presentes não se coíbe de colocar uma questão pertinente, antes de realizar a cura que nascera já no seu coração.
Não é que necessitasse de autorização, nunca a pedira, mas era para que o bem que ia realizar pudesse refulgir em todo o seu esplendor, pudesse chegar ao coração daqueles homens que o tinham convidado, mas que davam mais importância ao formalismo e ao rito que ao bem e ao outro.
A questão é directa, clara e sem qualquer subterfúgio, “é lícito ou não curar ao sábado”, como se o sábado pudesse ser um obstáculo à cura, à realização do bem, na medida em que interditava toda a actividade. Podia ser o sábado maior que o bem e o amor?
O silêncio dos convivas evidencia a hipocrisia, a mentira da subjugação à Lei apenas naquilo que era conveniente, porque no caso do salvamento de um filho ou de um boi já não se respeitava o preceito da inactividade. Os bens e propriedades ultrapassavam a prescrição da lei.
A cura do homem que estava doente revela assim uma vez mais o valor absoluto do homem, e o valor instrumental da Lei que está ao serviço do homem para o libertar e não para o escravizar. A lei era um instrumento de dignificação e tinha-se tornado num instrumento de tortura e sofrimento.
Tal como nos diz o Evangelho em outro momento, Jesus não veio abolir a Lei, não veio proclamar a anarquia, mas veio completar a lei, dar-lhe o sentido verdadeiro e profundo que tinha perdido no emaranhado dos preceitos e do tempo.
A Lei está feita para o homem, é um meio, um instrumento, para ajudar o homem a viver a sua condição e a sua dignidade. A lei no conjunto dos mandamentos e preceitos é uma manifestação da fundamental lei do amor e um meio para o desenvolvimento desse amor.
Deus é amor, e por isso amar antes de mais e agir segundo o amor é o princípio que deve presidir a toda a regulamentação e a toda a actividade.

 
Ilustração: “A crua do hidrópico”, fresco na Catedral de Tsalenjikha, Geórgia.      

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Jesus escolheu doze entre eles. (Lc 6,13)

Após uma noite passada em oração, Jesus chamou os discípulos e escolheu doze de entre eles. Missão difícil, uma vez que toda e qualquer escolha representa sempre um risco, uma aposta num desconhecido.
Jesus não sabe de antemão qual o futuro da sua escolha, os resultados da eleição que realiza entre os seus discípulos e seguidores. Cada um é um mundo, e um mundo no qual a liberdade pode alterar toda a expectativa e esperança.
Tal como nós, Jesus sabe que os discípulos esperam e desejam um Messias vencedor, alguém que provoque a alteração necessária à mudança de vida. Estas aspirações vão estar presentes no seguimento e vão marcar a relação mesmo depois da morte na cruz.
Contudo, o caminho e o processo de seguimento dos discípulos é igual ao nosso, uma vez que todos os caminhos devem passar pela cruz e pela aceitação do aniquilamento do Mestre, pois só dessa forma se poder aceder a uma outra compreensão da missão de Jesus, da nossa própria missão.
A escolha de Jesus passa pela cruz e portanto essa escolha é também o sinal de marca que determina todos aqueles que o seguem. Seguir com a cruz é o apelo e o convite deixado por Jesus a todos os que escolhe.
Demasiada loucura, ou extraordinário amor, porque tomar a cruz, qualquer cruz, e seguir em frente é colocar-se nas mãos de um outro, significa entregar-se à fragilidade e limitações próprias e confiar, confiar sempre que não se está só.
A experiência e a cruz de Jesus mostram-nos que nesta fraqueza e debilidade, quando caímos sob o peso da cruz, o Senhor da cruz nos levanta, pois estamos nas suas mãos, estamos guardados pelo seu amor e nesse amor Ele não abandona nenhum daqueles que chamou e em quem confiou.
Eleitos de Deus, objectos de um amor incondicional, procuremos levar a cruz, confiantes que ela é já carregada por alguém que nos precede, que a leva connosco e por nós quando nos faltam as forças.

 
Ilustração: “O Apóstolo Simão”, de Anthony van Dyck, J. Paul Getty Museum.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Mulher estás livre! (Lc 13,12)

 
Jesus encontra-se na sinagoga a ensinar e sem que nada o tenha previsto aparece por lá uma mulher curvada, uma mulher enferma havia já dezoito anos. É uma mera coincidência, a mulher vem apenas pela sua rotina, no cumprimento dos seus preceitos religiosos.
Colocando nela os olhos Jesus toma a iniciativa de a chamar e de a livrar da enfermidade, sem lhe perguntar da sua disposição ou vontade. É Jesus que toma a iniciativa, pois no seu amor não pode suportar o sofrimento do outro, não pode ver humilhada aquela mulher curvada sobre si mesma.
O milagre e a cura provocam a indignação do chefe da sinagoga, perturbado pela quebra do protocolo instituído, mas provocam na multidão uma grande alegria pela maravilha realizada. A multidão no seu anonimato e pobreza percebe a novidade, percebe a libertação e a nova vida que é possibilitada àquela mulher.
Sem que o saiba, a multidão partilha da alegria celeste, da alegria que brota do processo de libertação que ocorre com toda a humanidade e de que aquele milagre é apenas mais um testemunho, mais um sinal.
Naquela mulher Jesus manifesta a libertação da humanidade, manifesta a elevação de todos os homens e mulheres, que a partir do mistério da redenção pode já olhar Deus de olhos nos olhos, de frente, pois foi-lhe restituída a dignidade da semelhança.
A alegria da multidão deve ser assim a nossa alegria, pois sabemo-nos libertados; e sabemos também que nenhuma lei, nenhum preceito ou obrigação ainda que religiosa se pode interpor ou impedir a manifestação do amor de Deus por todos nós.

 
Ilustração: “Cura da mulher ao sábado”, iluminura de Matthias Gerung na Bíblia Ottheinrich.

domingo, 26 de outubro de 2014

Homilia do XXX Domingo do Tempo Comum

Após a leitura do Evangelho deste domingo, no qual nos confrontamos com uma armadilha que é tecida para experimentar Jesus e uma resposta que todos conhecemos de memória, creio que podemos perguntar-nos se, face a esta resposta e à forma como a assumimos e vivemos, não nos situamos na pele daquele doutor da Lei.
Pode parecer-nos estranho, e até de difícil compreensão, como um doutor da Lei coloca esta questão a Jesus, quando ele e nós conhecemos os mandamentos da Lei de Deus, ou seja o que é verdadeiramente importante, o que deve ser tido em conta.
Contudo, não podemos deixar de ter presente que para além dos mandamentos da Lei, dada por Deus a Moisés no monte Sinai, havia ainda mais 248 preceitos e 365 proibições que regulavam a vida religiosa e comunitária do povo judeu.
Tendo diante de si alguém que reconhecem como mestre, os fariseus, através do doutor da Lei, desejam saber qual é para Jesus o preceito que determina a sua doutrina, o preceito a partir do qual constrói todo o edifício da sua doutrina, pois todos os mestres tinham um preceito que consideravam mais importante.
Ao deixar de lado o Decálogo dos mandamentos e ao responder com um texto que era recitado quotidianamente, a oração diária do Shema “Escuta Israel”, Jesus está não só a manifestar a hipocrisia e falsidade daquele que tem diante de si, mas a retirar toda e qualquer força obrigatória à literalidade da Lei.
Os preceitos e proibições, os mandamentos, estão ao serviço e são instrumentos de uma realidade muito mais importante, muito mais fundamental, uma realidade que constitui o próprio homem enquanto pessoa. É o amor a Deus e o amor ao próximo que definem o homem e a partir dele determinam e fundamentam todos os preceitos, todas as obrigações e proibições, todos os mandamentos.
A resposta de Jesus reporta-se ao âmago da revelação de Deus e por isso numa síntese fundamental une um mandamento que estava prescrito no Livro do Deuteronómio com um outro que estava prescrito no Livro do Levítico. São os dois alicerces de todos os outros mandamentos e preceitos, as duas vias de acesso a Deus
Assim, quando, tal como os fariseus e o doutor da Lei, procuramos privilegiar um preceito, procuramos encontrar um elemento acessório, um meio instrumental, para alicerçar a nossa vida e fidelidade à Palavra de Deus, acabamos por desviar-nos do que é verdadeiramente fundamental e deve de facto alicerçar a nossa vida e a nossa fé. Colocamos os meios como fins, esquecendo que o nosso princípio e o nosso fim são verdadeiramente o amor, o amor a Deus e aos irmãos.
A resposta de Jesus nesta junção do mandamento do amor a Deus e aos irmãos coloca-nos face a uma exigência que poderemos considerar louca, impossível, demasiado elevada para nós, mas que não pode deixar de ser tentada todos os dias, de modo a não desesperarmos de nós próprios, a não perdermos o sentido da nossa vida e realização.
Esta exigência, este desafio, é expresso por Jesus no tempo verbal futuro em que coloca o verbo amar, o que não significa um adiamento para mais tarde, mas uma oportunidade e uma possibilidade constantes que não podemos deixar de apreciar e procurar aproveitar. Amar apresenta-se-nos assim como verdadeiramente estrutural à nossa existência. Existimos para amar e sem amor morremos.
Por esta razão é necessário recomeçar, voltar a tentar sempre que nos estatelamos no chão do nosso egoísmo, ou nos deixamos vencer pela nossa auto-suficiência, pois não só a felicidade depende deste recomeçar, como também a nossa realização como homens e mulheres filhos de Deus.
E porque esta é uma verdade fundamental, o Papa João Paulo II não se cansou de repetir que o mundo necessitava descobrir o amor e que os cristãos necessitavam manifestá-lo e testemunhá-lo em todas as circunstâncias, pois o cristianismo é a religião do amor.
É o exemplo de que nos fala São Paulo quando se dirige aos Tessalonicenses e de que falava também o Papa Paulo VI quando nos alertava que o mundo necessita mais de testemunhas que de mestres, pois as testemunhas pela sua vida revelam uma verdade que os mestres podem ocultar com as suas palavras.
Amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com todo o espírito e amar o próximo como a si mesmo é assim um processo, que apenas pode ser vivido em equilibro e profunda relação, uma vez que amar o outro é reconhecer nele a presença e a vida de Deus que somos convidados a amar com todas as nossas potências.
E como nos diz São João como poderemos dizer que amamos a Deus se somos incapazes de amar os irmãos?

 
Ilustração:
1 – “Jesus dialogando com Nicodemos”, de Jacob Jordaens.
2 – “As Sete Obras de Misericórdia Corporais”, de David Teniers, o Jovem, Dulwich Picture Gallery.

domingo, 19 de outubro de 2014

Visita da Rainha D Maria I à Batalha

Já aqui demos notícia da visita da Rainha D. Maria I ao Mosteiro da Batalha em Outubro de 1786.
Nessa data servimo-nos das referências que se encontram numa Carta que o Príncipe D. João, futuro Rei D. João VI, enviou à sua irmã a Infanta Mariana Vitória, no dia seguinte à visita ao Mosteiro.
Mas também nesse mesmo dia, 16 de Outubro, a rainha D. Maria I escreveu à filha, partilhando as novidades da jornada. Nessa carta, e numa outra enviada quatro dias depois, a Rainha deixa a sua apreciação do que viu aquando da visita ao Mosteiro.
São essas breves apreciações que partilhamos agora, pois se a Rainha se mostra encantada com a igreja e as capelas, fica de alguma forma insatisfeita com a parte conventual que pôde visitar.
Ontem fomos à Batalha, que achei magnífica, a igreja e a capela em que está enterrado el-Rei D. João o Primeiro e a mulher e filhos e também umas capelas, que estão por acabar. Mas tudo me faz muita tristeza, faltando-me teu pai.[1]
 
Na Carta de 20 de Outubro, a Rainha comenta:
Fomos à Batalha. Achei a igreja magnífica e a capela aonde está enterrado el-Rei D. João o Primeiro. O convento não é bom.[2]


[1] LÁZARO, Alice – Com o mais fino Amor. Cartas Íntimas da Rainha Dona Maria I para a Filha (1785-1787). Lisboa, Chiado Editora, 2014, página 283.
[2] LÁZARO, Alice – Com o mais fino Amor. Cartas Íntimas da Rainha Dona Maria I para a Filha (1785-1787). Lisboa, Chiado Editora, 2014, página 285.

Homilia do XXIX Domingo do Tempo Comum

A leitura do profeta Isaías que escutámos nesta celebração coloca-nos em sintonia com o Dia Mundial das Missões que hoje celebramos. Tal como nos diz o profeta, fomos escolhidos e cingidos para que se saiba do Oriente ao Ocidente que não há outro Deus senão o Senhor.
Durante muitos anos, e ainda para alguns dos nossos irmãos, este dia dedicado às missões reflectia as grandes acções missionárias da Igreja em outros continentes e povos. Podemos dizer que era um dia e uma reflexão dedicada à missão “ad gentes”, para o exterior da Igreja.
Hoje, contudo, esta ideia tem outra dimensão, e ainda que se tenham presentes os missionários e missionárias que anunciam a Boa Nova de Jesus aos povos que o desconhecem, temos presente a missão que cada um de nós está chamado a realizar no seu meio ambiente, nas diversas circunstâncias da vida.
E neste sentido, a leitura do profeta Isaías é extremamente importante, uma vez que nos revela que desde o princípio, ainda antes de conhecermos Deus, já Ele nos tinha chamado para que o pudéssemos conhecer e dar a conhecer. A missão anunciadora é assim inerente à nossa própria condição, à nossa própria natureza. Poderíamos dizer que nascemos para anunciar Deus.
E esta verdade é ainda mais profunda quando nos recordamos que fomos criados à imagem e semelhança de Deus. A nossa natureza na semelhança e imagem é portanto uma natureza enviada, missionária, e realiza-se na medida em que anuncia a beleza e o amor de Deus.
Nós próprios, pela nossa existência, já somos anúncio e na medida em que vivemos com dignidade a nossa condição humana esse anúncio torna-se mais evidente e verdadeiro.
Esta verdade e a sua consciência ajuda-nos a perceber o cabal alcance da discussão de Jesus com os fariseus e herodianos quando estes se lhe apresentaram para o procurar apanhar com uma questão sobre pagamento de impostos.
É diante da moeda do tributo que Jesus faz a destrinça entre o que é devido a Deus e o que é devido a César, ou seja, o que é devido ao mundo material, às circunstâncias sociais e políticas e o que é devido a Deus pela nossa própria condição de filhos de Deus.
Neste sentido é bom termos presente o verbo que na língua original do texto é utilizado, “apodídomi”, que significa devolver, e não apenas dar, como encontramos na tradução que foi utilizada para as leituras que escutámos.
De facto aquele que dá entrega alguma coisa sua, o que lhe é próprio, mas o que devolve entrega aquilo que lhe foi confiado, o que não é seu. E é isso que está em causa quando Jesus chama a atenção para a inscrição que estava na moeda do tributo que lhe apresentaram.
Ao dizer aos fariseus que se devolvesse a César o que era de César e a Deus o que era de Deus, Jesus estava a retirar o homem da sua condição de mercadoria e de moeda de troca. O homem é para ser devolvido a Deus, é para ser entregue a Deus, porque é o seu verdadeiro proprietário e senhor.
Este sentido da devolução, da entrega do homem a Deus, mostra-nos também como a dignidade do homem e da mulher se encontra nessa entrega, nessa devolução, porque Deus é não só o princípio mas também o fim do homem, a sua fonte de plena realização.
Esta distinção, que pode parecer dualista, coloca-nos no entanto no verdadeiro sentido de todas as realidades e na sua hierarquia interna. Não se trata de diabolizar ou condenar as realidades do mundo, as estruturas e formas que a humanidade desenvolveu para se organizar e viver, mas de as colocar na sua relação com a dignidade divina de cada homem e mulher, de as colocar ao serviço da realização da humanidade.
Por esta razão São Tomás defendia a desobediência às leis civis quando estas não serviam a humanidade, quando não estavam ao serviço da plena realização do homem e da mulher, da construção da resposta dignificante a dar a Deus. O que não serve o homem e a sua dignidade não pode ser acolhido nem aceite.
A resposta de Jesus face à moeda do tributo a César e a teologia de São Tomás colocam-nos assim grandes desafios no que diz respeito às nossas opções do quotidiano e à forma como assumimos nessas opções que a nossa existência deve ser anúncio de um Deus que nos ama e nos dignifica com o seu amor.
Em todos os momentos e circunstâncias estamos chamados a anunciar a todos os homens e mulheres que há um só Deus, o qual nos chamou pelo nome próprio a usufruir de um título glorioso, que é o de filhos de Deus. Procuremos pois dignificar este título e condição vivendo na verdade, na justiça e no amor.

 
Ilustração:
1 – “A Moeda do Tributo”, de Bernardo Strozzi, Museu de Belas Artes de Budapeste.
2 –  “Tributo a César”, de Jacek Malczewski, Polónia.

domingo, 12 de outubro de 2014

Homilia do XXVIII Domingo do Tempo Comum

Com a parábola que escutámos termina neste domingo o confronto que Jesus manteve com os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo em Jerusalém depois da sua entrada triunfal, da expulsão dos vendedores do templo e do seu gesto ousado de se ter colocado a ensinar no templo sem ter autoridade para isso.
Termina assim uma polémica e um conjunto de parábolas que visava mostrar aos seus interlocutores como se tinham desviado do projecto inicial de Deus, como se tinham recusado ao convite que lhes tinha sido dirigido para participarem num banquete em que seriam servidos delicioso pratos e bebidas.
Uma vez mais Jesus faz recurso do profeta Isaías para mostrar o projecto de Deus, a missão a que o povo eleito tinha sido destinado, mas que pelo seu egoísmo, pelo seu orgulho, se tinha perdido e inviabilizado. Uma vez mais Jesus serve-se dos textos que os seus interlocutores conheciam, lhes eram familiares, para se inserir numa linhagem que lhe garantia autoridade, até a autoridade para ensinar no templo que tinha sido questionada.
Contudo, o Evangelho de São Mateus não se fica pela questão polémica, por esse exercício de mostrar que o projecto de Deus era universal e portanto aberto a todos os povos desde o princípio. Consciente dos perigos que espreitavam já a sua comunidade, aqueles aos quais se dirigia no seu Evangelho, São Mateus apresenta justaposta à parábola do banquete que é recusado a parábola do convidado que se apresenta sem traje nupcial.
Parábola que inevitavelmente nos escandaliza, nos desconcerta, pois pouco antes é dito que o rei que servia o banquete tinha mandado trazer para a festa todos os que se encontrassem, e portanto a sala estava cheia de bons e maus. É assim descabido que ao entrar na sala se escandalize com um dos convidados sem traje. Estariam os outros de traje nupcial tendo sido recolhidos nas encruzilhadas dos caminhos?
A verdade é que temos neste convidado sem traje alguém mais que um simples convidado trazido de qualquer encruzilhada do caminho, temos alguém que o rei trata já por amigo, que de alguma forma tem já outro estatuto diante dos olhos do rei. Esta expressão denuncia uma outra realidade, uma outra relação.
Podemos dizer que ao aceitarem o convite para se apresentarem no banquete todos de certa forma mudavam de traje e colocavam uma roupa mais digna e festiva, e portanto aquele convidado sem traje nupcial seria um intruso, alguém desatento e descuidado face a essa necessidade de mudar de roupa, de se apresentar dignamente.
Contudo, parece que não se trata de uma questão moral expressa metaforicamente no traje nupcial, estavam lá bons e maus, mas trata-se de uma questão relacional, uma questão de amizade. Aquele amigo era já alguém especial aos olhos do rei e portanto deveria estar devidamente preparado para a festa que se dava e na qual se apresentava.
São Mateus ao falar deste amigo tem já em conta alguns dos membros da sua comunidade que viviam a sua fé de uma forma estereotipada, exteriorizada, e portanto ainda que bons ou maus nas suas atitudes se sentavam à mesa do banquete, se achavam convidados a participar no banquete da Eucaristia.
O Evangelista quer assim chamar a atenção para a necessidade de uma relação pessoal, de uma amizade que se traduz num traje, em obras coerentes e em fidelidade, para não se correr o risco de se cair na condenação e crítica que Jesus tinha feito aos príncipes dos sacerdotes e anciãos do povo.
Podemos relacionar este amigo sem traje com o filho da primeira parábola que diz que vai trabalhar para a vinha do pai mas depois e de facto não vai. O verdadeiro amigo e aquele que se apresenta com traje ao banquete nupcial é aquele que não só diz que vai trabalhar mas trabalha de facto na vinha do pai, aquele que é fiel nas palavras e nas obras.
Fidelidade que descobrimos possível, e até bastante acessível quando temos em conta as palavras de São Paulo aos Filipenses quando nos diz que aprendeu a viver na pobreza e na riqueza, na alegria e na dor, a viver em íntima união com Aquele que o conforta em todas as realidades.  
É a construção sobre a rocha, esta fidelidade e intimidade com Jesus que nos permite viver todas as realidades com uma grande liberdade, poderíamos dizer com bastante relatividade, pois sabemos que tudo é passageiro, tudo é efémero, menos o amor do amigo, a amizade de Jesus. Como nos diz São Paulo em outra passagem das suas cartas tudo podemos com Cristo.
Esta parábola do banquete e o convite que lhe é inerente tem também o mérito de nos mostrar que todos nós somos convidados, que todos podemos arranjar um traje digno para estar presente no banquete, mas sobretudo que em cada celebração da Eucaristia vamos já fazendo a experiência desta festa e da comunhão que nos é oferecida por Deus a todos.
Em cada Eucaristia somos convidados a sentar-nos à mesa do nosso rei, a descobrir-nos nas nossas fraquezas, mas também a experimentar a graça do Senhor que nos dignifica para podermos participar. O Senhor é o alimento, é a mesa, é a festa, mas é também o próprio traje. Na medida em que nos vamos configurando com Jesus e nos vamos transformando, alimentando a nossa vida da sua palavra e do seu corpo vamos costurando o traje nupcial que nos dignifica para participal plenamente.
Procuremos pois viver fielmente a fé que professamos, em palavras e em obras, com dignidade e dignificando a nossa condição de filhos e convidados, e a celebração da Eucaristia em que participamos, que é já um aperitivo do banquete que o Senhor nos tem preparado.

 
Ilustração:
1 – “Parábola do Banquete”, de Brunswick Monogrammist, Museu Nacional de Varsóvia.
2 – “Parábola do Filho Pródigo”, de Master of the Female Half-Lengths, Colecção Privada.