quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Santos Arcanjos Miguel, Gabriel, Rafael

Do silêncio de Deus surgiram na vida e na história dos homens. Foram enviados para cumprir uma missão e cumpriram-na, ou continuam a cumpri-la cada dia, em cada história e em cada homem. Foram, e são, enviados, eles que contemplam Deus face a face e portanto trazem aos homens um reflexo dessa contemplação.
A arte representa-os em beleza porque só podem ser belos os seres que contemplam a suprema beleza face a face. Povoam os quadros da Anunciação, da história de Tobias, do juízo final e da vitória sobre o maligno. Os seus vestidos e a armadura dançam ao ritmo do vento, leves como eles e as plumas das suas asas. São belos e graciosos, seres eternos, espirituais, mas também visualmente carnais. Um lírio na mão, um peixe, uma balança, marca o que cada um foi incumbido de realizar, a missão a que cada um foi destinado.
Hoje continuam as suas missões e junto de nós continuam a manifestar a presença de Deus. Gabriel recorda-nos o Deus que se fez homem como nós, a necessidade de uma resposta e de um coração puro como um lírio para que ainda hoje esse mesmo Deus se faça homem. Miguel recorda-nos como Deus está connosco, como com a sua força podemos vencer o mal que nos ataca. Rafael recorda-nos que em Deus se encontra o remédio para os nossos males, que mesmo quando caímos e nos ferimos Deus vem ao nosso encontro com o remédio para nos curar.
Que melhores companheiros de viagem poderíamos pedir ao Senhor que os três Arcanjos. Que eles sempre nos acompanhem e protejam.

A imagem é uma das raras representações, se não a única, que se encontra em Lisboa do Arcanjo São Rafael. Encontra-se na igreja paroquial de São João da Praça.

domingo, 26 de setembro de 2010

Homilia do XXVI Domingo do Tempo Comum

A parábola que Jesus conta no Evangelho que acabámos de escutar é uma parábola que toca profundamente as dimensões fundamentais da nossa fé, no que elas têm de cumprimento, de exercício, e de fundamento, raiz, desse mesmo exercício.
A parábola na sua constituição e narração, e tocando essas dimensões fundamentais, divide-se em duas partes; uma primeira centrada na morte dos personagens e lugar que ocupam após a vida vivida, e uma segunda parte centrada sobre a escuta, a atenção face ao anunciado e enunciado pela lei e pelos profetas.
Assim, encontramos um homem, rico e bem vivido, que após a morte se encontra sepultado na mansão dos mortos. Por outro lado um pobre, Lázaro, que jazia à porta do rico e ao qual nenhuma atenção tinha sido dada por parte do rico enquanto vivo, mas que agora, depois de morto, o encontra ao lado de Abraão, ou seja no paraíso, gozando das delicias que na terra lhe tinham faltado ou sido negadas. Na sua infelicidade, o homem rico pede a ajuda de Lázaro, mas tal é impossível, ainda que o pedido solicite um gesto tão simples e mínimo como refrescar a língua com água. A impossibilidade resulta do abismo que existe entre ambos, entre as duas realidades, um abismo inultrapassável.
Esta impossibilidade e abismo mostram a distância que o homem rico tinha criado enquanto vivia, porque foi ali que se gerou o abismo e a impossibilidade. Ao negar a ajuda ao pobre Lázaro, ao recusar uma relação com ele, mesmo que mínima, criou a situação em que agora se encontra, um situação eterna porque deriva de uma outra situação provisória e temporal.
Podemos pensar no mandamento da caridade, na solidariedade, na sua não vivência, na critica do profeta Amós da primeira leitura para enquadrar e justificar a situação em que se encontra o homem rico, na condenação de que é alvo. Contudo, a condenação assenta sobre uma dimensão mais profunda e intrínseca ao ser humano, a dimensão da relação. É na relação que se vive a solidariedade e a caridade, é na relação que se reconhece o outro como pobre e necessitado, é na relação que se pode partilhar os bens, e o homem rico desta parábola recusou esta relação, inviabilizou-a ao não reconhecer e ao não ajudar o pobre Lázaro que jazia à sua porta.
Neste sentido esta primeira parte da parábola deve fazer pensar-nos na forma como nos situamos em relação aos outros, como criamos abismos ou estabelecemos pontes, cientes de que qualquer uma das realidades históricas, momentâneas que vivamos ou possamos viver terá inevitavelmente repercussões na eternidade. Não está em causa o que damos mas o próprio acto de dar, da entrega, da nossa disponibilidade para o outro.
E é perante esta nossa dificuldade que o rico pede a intervenção de um ressuscitado para alterar o percurso possível da história de cada um dos seus irmãos, ou seja, dos homens. Se alguém do outro mundo vier anunciar o que espera os homens que não forem capazes do acolhimento do outro e da caridade as coisas poderão ser diferentes.
Entramos desta forma na segunda parte da parábola e numa critica quase mordaz ao não acolhimento do ressuscitado Jesus Cristo, pois ainda que as palavras sejam colocadas na boca de Jesus não podemos esquecer que o Evangelho é já escrito depois da sua ressurreição e da rejeição por parte dos judeus desse acontecimento.
Para nós é também um desafio porque nos faz confrontar com a fé na ressurreição de Jesus e com a dimensão da oralidade, da textualidade, da nossa fé. Neste sentido, e tendo em conta que ninguém testemunhou a ressurreição de Jesus, podemos perguntar-nos sobre o fundamento da nossa fé nessa mesma ressurreição e em toda a vida e mensagem de Jesus. Ninguém assistiu à ressurreição, e os encontros com o ressuscitado chegam-nos sempre através dos testemunhos pessoais ou comunitários, inevitavelmente sempre através de testemunhos, da palavra de outros nos quais fazemos fé e colocamos a nossa confiança. Assim, quando na parábola é dito ao rico que os irmãos têm Moisés e os profetas, é dito e é nos dito que há um código, uma palavra, que há uma base que nos precede e à qual devemos procurar ser fieis, na qual devemos colocar a nossa confiança.
A ressurreição é desta forma relativizada, como acontecimento capaz de alterar as nossas vidas, porque o que altera ou pode alterar é a atenção, é a relação que se estabelece com a própria palavra, com a lei de Moisés, com os profetas, como cristãos com o testemunho que nos é legado por aqueles que experimentaram a presença do ressuscitado, por aqueles que viveram com Jesus e fizeram a experiência de se encontrarem com o Filho de Deus, ou seja a relação com o Evangelho.
Esta parábola coloca-nos assim, e desta forma crua, talvez até ácida, perante o que fundamenta a nossa fé, em que acreditamos e em que nos fundamentamos para acreditar, e depois como na nossa vida explicitamos aquilo em que acreditamos, com o tornamos vida e vida transformadora. Afinal tudo se joga em relações, na relação que estabelecemos com a palavra do testemunho e na relação com o outro que testefica a encarnação actual e viva da palavra.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

E Herodes procurava ver Jesus (Lc 9,9)

Depois de ouvir tantas coisas, tantas histórias de milagres e actos considerados no mínimo provocadores, Herodes procurava ver Jesus, procurava ver aquele que tanto debate e discussão gerava entre os intelectuais e autoridades religiosas que frequentavam a sua corte. Queria vê-lo, como quem quer ver algo de bizarro, uma extravagância que é necessário conhecer por si para se acreditar que existe ou é verdade.
Mas não terá essa oportunidade porque o conhecimento de Jesus Cristo é um conhecimento de vida, é um processo em que os olhos não podem ver para que o coração veja, é um processo em que a imagem nos esconde a verdade da realidade e portanto é necessário acreditar, para ver, e saber a verdade que se vê. E o lugar mais propício para esse exercício é a cruz, o corpo entregue ao madeiro, como nos diz Paul Claudel:
Eis o Verbo bem aberto diante de nós. Eis o Verbo desdobrado diante de nós, no qual podemos ler como em livro aberto. Ei-lo consolidado diante de nós, para sempre, nessa atitude essencial na qual fez o céu e a terra.
Todos os heréticos podem atacar-lhe os membros, conseguirão deslocar-lhe o fémur, mas não conseguirão fazer vacilar a união hipostática, essa articulação fundamental, esse outro fémur sobre o qual, diz-nos o Apocalipse, “estão inscritas as palavras: Rei dos reis e Senhor dos senhores”. Eis o convite que nos é dirigido por esses dois braços que fizeram o mundo e que vão ficar estendidos todo o dia até que o tenham reintegrado. Eis essas grandes asas desdobradas que fazem de duas coisas uma só, eis Deus, eis o Amor, livre de todo o pudor, aberto e desvendado ante nós, eis essa profundeza de que fala Habacuc “que levantou as mãos”, eis Jesus crucificado sobre um triângulo e remate da sua própria pessoa, o homem da visão que estende por cima de Jerusalém o nível supremo.[1]

[1] Paul Claudel – O Poeta e a Cruz, Lisboa, Editorial Aster, 1958, 78.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

E disse-lhes: não leveis nada para o caminho. (Lc 9,3)

Depois de os ter chamado a cada um individualmente e de lhes ter dado poder sobre os demónios e de curar as doenças, Jesus envia os Apóstolos com esta recomendação, “não leveis nada para o caminho”.
Para nós, homens da sociedade urbana e de consumo, habituados a carregar-nos de sacos e malas esta é uma recomendação que nos deixa desalentados, desapontados, pois sentimos necessidade de levar a casa atrás de nós, temos até um certo prazer em nos carregarmos de coisas supérfluas.
Contudo, quando fazemos a experiência física e concreta do caminho, de caminhar, percebemos o quanto são verdadeiras as palavras de Jesus e o quanto as devemos procurar seguir fielmente. Para quem já fez a experiência de caminhar horas e horas, dias após dias com uma mochila carregada com aquilo que apenas consideramos necessário e que nos pode fazer falta, sabe o doloroso que se torna aguentar com tanto peso, com tanta carga tantas vezes dispensável.
É difícil, porque libertar-se do peso, desse peso das coisas a que nos prendemos por uma necessidade inconsciente, ou nem tanto, de segurança, não é fácil. Estamos sempre com medo que algo nos falte, que sejamos apanhados desprevenidos. E contudo o Senhor Jesus disse-nos que nem um só cabelo da nossa cabeça se perde sem conhecimento de Deus.
Como é difícil confiarmo-nos à vigilância de Deus, em depositarmos nele a nossa segurança; gostamos e queremos ter esse poder de saber que tudo está sob o nosso controlo, nada nos pode apanhar desprevenidos. E no entanto, quão frágeis somos e quantas vezes somos apanhados mesmo no meio das nossas maiores seguranças.
Ajuda-nos Senhor a libertar-nos de tudo o que nos prende, de tudo o que nos tolhe de te seguirmos livremente, ágeis e independentes como desejas que sejamos.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Jesus à mesa de Mateus (Mt 9,10)

Depois de convidar Mateus a segui-lo, e da pronta resposta do convidado, Jesus encontra-se na casa do mesmo, sentado à mesa com os amigos e companheiros daquele que era cobrador de impostos e funcionário do império romano.
Situação estranha para olhos fariseus, que em tudo viam mal, pecado, motivos para a exclusão e a rejeição. Situação de festa para Jesus e Mateus e todos os demais que aceitavam partilhar a mesma mesa e o mesmo pão sem preconceitos, sem segundas intenções, ainda que todos soubessem que o que partilhavam era certamente fruto do roubo, da exploração, da injustiça fiscal de um império opressor, à qual Mateus tinha dedicado a vida.
Jesus também o sabia, não lhe era estranha a profissão e a vida de Mateus e daqueles homens. Ele sabia perfeitamente o que havia no coração e cada um deles, onde tinham colocado os seus tesouros. Mas por essa mesma razão estava ali, para poder mostrar que há possibilidade de conversão, de mudança de vida, de recolocação do tesouro, de que a misericórdia pode funcionar mesmo naqueles que aparentemente parecem fechados a ela.
“Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes”, e um médico para poder curar verdadeiramente o seu doente tem que conhecer a doença, tem que fazer os diagnóstico, tem que tocar o tumor, não pode ter nojo da doença do seu paciente se a quiser curar. Jesus actua nesta casa e neste jantar com Mateus como o médico que vem oscultar o seu paciente.
Um outro dia, num outro lugar e com um outro chamado Zaqueu, procederá de forma semelhante e a partir dessa acção poderá ouvir a proposta de mudança de vida, poderá confirmar que a sua acção é salvadora de vidas. Vou dar aos pobres metade do meu dinheiro e se alguém prejudiquei restituirei quatro vezes mais. A misericórdia oferecida através do desejo de partilhar uma refeição, uma estadia em casa, reflecte-se em misericórdia para com os outros, em recolocação do tesouro da vida e do seu sentido.
Esta atitude de Jesus deve levar-nos também a olhar os outros e as suas situações de vida de forma diferente, a vê-los com olhos de conversão, de misericórdia, e a perceber que qualquer situação pode ser uma oportunidade para o testemunho, para o apelo à conversão, para a manifestação da misericórdia e do amor de Deus.

Cristo Partido


Há muitos cristãos que tranquilizam a sua consciência beijando um Cristo belo, obra de arte e de museu, enquanto ofendem, mutilam e roubam o pequeno Cristo de carne, que é o seu irmão… Esses beijos repugnam-me e causam-me asco. Tolero-os e aguento-os, forçado, nos meus pés de imagem talhada em madeira. Ferem-me porem o coração. Tendes demasiados Cristos belos, demasiadas obras de arte da minha imagem crucificada, demasiados Cristos completos, perfeitos, apolíneos… E estais em perigo de vos ficardes na obra de arte. Um Cristo belo pode ser um perigoso refúgio, para vos esconderdes da dor alheia, tranquilizando ao mesmo tempo a consciência com um mentido amor a Deus crucificado.
Por isso deveríeis ter mais Cristos partidos, mais Cristos mutilados. Um à entrada de cada igreja, um em cada procissão da semana santa, que vos gritasse sempre, com os seus membros partidos e a cara sem formas, a dor e a tragédia da minha segunda Paixão nos meus irmãos, os homens… Por isso te suplico: não me restaures. Deixa-me partido. Aguenta-me partido junto de ti, ainda que amargure um pouco a tua vida. Beija-me partido ![1]

[1] Ramon Cué – O Meu Cristo partido, Porto, Editorial Perpétuo Socorro, s.d., 32.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Vede pois como ouvis! (Lc 8,18)

Vede pois como ouvis! É assim que Jesus chama a atenção para os seus discípulos depois de lhes ter contado a parábola do semeador, de a ter explicado e de ter dito que não se acende uma candeia luminosa para se esconder debaixo da cama.
Vede como ouvis! Porque podeis ouvir de passagem, podeis ouvir como se não fosse para vós, podeis até fazer ouvidos moucos, ou ouvir apenas o que vos interessa. Mas podeis também ouvir com o coração, ouvir até o sussurro leve da voz de Deus na brisa fresca da tarde, ou o grito de socorro apelando à misericórdia e à caridade nas mãos estendidas daqueles que não têm pão nem trabalho. Podeis ouvir, embora seja necessária a atenção, a disposição, o tempo e o silêncio, e a prova exercida da palavra ouvida.
Maria de Nazaré é o exemplo puro da verdadeira escuta e por isso quando se apresenta para O buscar e levar de regresso a casa, Jesus diz à multidão que “sua mãe e seus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática”. A escuta anda associada à prática, esta revela e confirma a palavra escutada, transforma-a dando-lhe vida, presença e actualidade.
Vede pois como ouvis! Vejamos pois como ouvimos e praticamos a palavra ouvida!

domingo, 19 de setembro de 2010

Homilia do XXV Domingo do Tempo Comum

A história que Jesus conta aos seus discípulos neste trecho do Evangelho de São Lucas é no mínimo paradoxal, deixa-nos sem saber o que pensar, pois encontramo-nos diante do elogio de um comportamento que é injusto, enganador, que atenta contra aquilo que consideramos como um direito, o seu a seu dono. Neste nosso mundo profundamente marcado pela propriedade privada, pelo direito à propriedade integra e inviolável, esta história, e o elogio da falcatrua, deixa-nos mais perplexos.
E se tivermos ainda presente a parábola dos talentos, e a condenação de que é objecto aquele administrador que enterra o talento recebido com medo de o perder, ou seja, para não correr o risco de prejudicar o seu senhor, ficamos ainda mais abismados com a história que Jesus conta. Afinal onde está a justiça? O que Jesus nos quer ensinar com ela?
Para compreendermos a mensagem e o ensinamento de Jesus temos que olhar antes de mais para a recomendação com que termina a história: “ora, eu digo-vos, arranjai amigos com o vil dinheiro, para que quando este vos vier a faltar, eles vos recebam nas moradas eternas”.
Porque de facto, e olhando atentamente para a história que Jesus conta, o primeiro pensamento do administrador não é roubar ou enganar o seu senhor, é arranjar amigos que o recebam após o fim do seu mandato de administração. E porquê? Porque ainda que tenha administrado mal os bens do senhor, como parece num primeiro momento, ele não os administrou em seu favor, não roubou para si, e por isso mesmo assume que terá que trabalhar, ainda que não seja capaz de cavar e tenha vergonha de mendigar. Ele não tinha nada, não se tinha apossado de nada do que era do seu senhor, e mesmo quando chama os devedores para “roubar” o seu patrão não transfere o fruto da liquidação da divida para si, reduz apenas a divida no seu montante, possibilitando desta forma a amizade dos devedores.
Nesta história, na qual o servo segue à letra a recomendação de Jesus, arranjando amigos com o vil dinheiro, ainda que não seja seu, encontramo-nos nos antípodas de uma outra parábola que Jesus conta, da parábola em que o senhor perdoa a divida ao administrador mas o qual não é capaz de perdoar àqueles que lhe devem, obrigando-os a pagar. É a abertura ao outro, a possibilidade da fraternidade e da misericórdia, que se joga em toda a sua complexidade desafiante.
Mas a recomendação de Jesus não termina no objectivo de obter amigos, estes são apenas um meio para o verdadeiro fim que é a recepção nas moradas eternas. Por esta referência percebemos que o senhor da história é Deus e o elogio do roubo acontece porque mais importante que o dinheiro foi para aquele servo a amizade, a possibilidade de relação com outros que o acolhessem mesmo quando ele já não tivesse nada.
Esta é que é a mensagem de toda esta história e da desonestidade que lhe está subjacente. Somos administradores ou senhores de bens, dos bens que a vida e Deus nos concede, mas a sua administração deve ser orientada não para a acumulação, não para a exclusiva existência e satisfação pessoal, mas para o serviço, para a construção de um mundo e do próximo que um dia nos receberá pelo que partilhámos com ele.
E aí, nesse momento, nesse encontro último, apresentar-nos-emos realmente despidos, pobres, sem forças e envergonhados porque por mais que tenhamos tido nada se encontrará connosco, mas nas mãos de outros que poderemos não conhecer, ou pelo contrário até reconhecer na medida em que são aqueles com quem partilhámos, aqueles com que estabelecemos relação de entrega e doação.
Por esta razão Jesus conclui este discurso dizendo aos discípulos que não podemos servir a Deus e ao dinheiro, são incompatíveis, porque o dinheiro nos isola, nos dá a ilusão de satisfação, de realização, de plenitude, que de facto só existem na medida em que estabelecemos relação, em que actualizamos em cada momento a relação que é o próprio Deus, a amizade que é Deus e somos chamados a viver fraternamente.
E neste sentido Jesus não deixa de nos alertar para a necessidade de fidelidade administrativa, de perseverança, para a verdadeira prossecução dos fins, porque se formos fieis na administração do vil dinheiro, ou seja se formos construindo relações com ele, relações edificantes do outro, dignificantes dos nossos irmãos, ser-nos-á entregue e confiado o verdadeiro bem, o próprio Deus em toda a sua riqueza.
Peçamos assim ao Senhor que nos purifique o coração da idolatria do dinheiro, e com o pouco ou o muito que tenhamos saibamos antes de mais construir amizades verdadeiras e reveladoras do amor de Deus por cada um de nós.

sábado, 18 de setembro de 2010

São João Macias e o amigo secreto

A cidade de Lima, no Peru, conheceu no século XVII três santos dominicanos, uma mulher e dois homens, Rosa, Martinho e João, marcados profundamente pela circunstância histórica que lhes foi dado viver e pelas experiências espirituais que desenvolveram. São três santos pobres, vivem na pobreza e com a pobreza, realizam tarefas servis, vivem do trabalho das suas mãos, sem ouro nem prata numa cidade do Eldorado, mas são três santos ricos na experiência profunda que têm da humanidade e da presença de Deus nas suas vidas e na vida dos outros homens.
João Macias é cronologicamente o último desta trilogia e aquele que desde a sua infância, na terra natal da Extremadura espanhola, vive uma amizade secreta com alguém que foi também objecto de uma relação muito especial de intimidade e amizade. É um segredo bem guardado, revelado apenas nos momentos finais da vida quando é necessário confessar a fonte de onde se nutria para enfrentar tantas horas de trabalho na portaria do Convento da Madalena e tantas horas de oração solitária nos claustros e igreja do convento.
Foi um dia, quando ainda menino e guardava o rebanho nos campos extremanhos, que se encontrou com esse companheiro de toda a vida, São João Evangelista. Desde aquele dia acompanhou-o por todas as andanças, por todos os caminhos, nos momentos de maior solidão e privacidade mas também quando servia o pão aos pobres que batiam à porta do convento e não o deixavam descansar com o seu Senhor e o seu amigo.
Para compreendermos São João Macias, a sua experiência espiritual e a sua vida de serviço aos irmãos e aos pobres, temos que ter esta realidade presente, esta relação, que para ele era mais verdadeira, mais real que qualquer outra experiência. O Apóstolo São João forma parte da vida de São João Macias, ainda que para nós e para todos aqueles que se aventuram numa biografia deste santo seja um enigma, um mistério que nos provoca a olhar com outros olhos.
Podemos perguntar, porquê São João Evangelista? Afinal um santo que até nem é muito da devoção popular. Seria mais natural um São João Baptista, habitante de desertos como os campos onde o pequeno João Macias pastoreava os rebanhos. Podemos perguntar, porque razão São João Macias nunca falou a ninguém desta experiência até à hora da sua morte? Sendo uma experiência mística e uma relação tão profunda, porquê nunca revelada? E por fim, como não é possível encontrar traços dos escritos joânicos na sua vida? Ou será que os podemos encontrar de uma forma transfigurada e actualizada às circunstâncias do momento histórico?
O silêncio de João Macias sobre a sua experiência mística com o discípulo amado é um mistério, embora possamos aceitar que lhe era difícil falar dela pela sua ignorância das letras, João não sabia ler, e pelo temor dos inquisidores que por esses tempos vigiavam e controlavam este tipo de realidades. Por outro lado, podemos aceitar também que o silêncio deriva da própria experiência do amigo íntimo, que junto à cruz tudo vê e tudo acolhe em silêncio, e que um dia escreveu a uma das suas comunidades: “a Deus nunca ninguém o viu, se nos amarmos uns aos outros Deus permanece em nós e o seu amor chegou à perfeição em nós” (1Jo 4,12). As obras de São João Macias testemunham do amor e consequentemente da sua relação e amizade.
Diz o povo, “diz-me com quem anda e dir-te-ei quem és”, São João Macias é possível de dizer na medida em que conhecemos com quem andava, o discípulo amado de Jesus.

Foi para a liberdade que fostes chamados (Gl 5,13)

Foi para a liberdade que fostes chamados (Gl 5,13)
Foi esta frase da Carta de São Paulo aos Gálatas que deu o título à reflexão que o Professor Tolentino Mendonça apresentou no ciclo “Tardes de Setembro” no Convento de São Domingos. Frase sumamente provocadora quando nos confrontamos com ela e com pessoas que se desencontraram com a liberdade no interior da Igreja. Caso paradigmático, e apresentado pelo próprio Professor Tolentino Mendonça, o do escritor recém-falecido José Saramago, que saltou da cadeira quando numa discussão sobre a Igreja e Deus lhe foi apresentada esta frase. Onde está a liberdade na Igreja, perguntou ele, e como ele perguntam muitos outros homens e mulheres que são nossos irmãos na fé.
Fomos chamados para a liberdade, mas para que liberdade? Uma liberdade que como o próprio São Paulo nos responde não deve ser ocasião para satisfação dos nossos apetites carnais, mas para o serviço do amor. E mais, se tivermos em conta o que nos diz Jesus no Evangelho de São João, fomos chamados para uma liberdade que apenas se torna efectiva, real, na medida em que se funda no conhecimento e na aceitação da verdade que é o próprio Jesus: “se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres” (Jo 8,31-32).
Neste sentido, e buscando resposta para a pergunta sobre o sentido da liberdade cristã, temos que nos aproximar de Jesus, temos que o conhecer, como Homem e como Filho de Deus, na sua verdade, para a partir daí alicerçarmos a nossa liberdade. E Jesus foi um homem livre, livre de preconceitos, livre de medos, livre de concepções estreitas da humanidade, da sua e da dos outros.
Podemos ver isso na forma como se relacionava com aqueles que cruzaram a sua vida, a mãe, os discípulos, as multidões, os doentes e pecadores, os carrascos da sua própria morte. A sua relação com qualquer uma destas entidades é uma relação de confiança, de esperança de crescimento, uma relação que conhece os defeitos, o substrato lodoso que nos marca a todos, consciente do mal que nos atinge e fere, mas também uma relação aberta à capacidade de renovação, de transformação e superação. Jesus era livre na liberdade que reconhecia em cada homem.
Jesus foi também um homem livre na sua relação com o divino, com o Pai, relação que cuidava e cultivava, que convidava os outros a partilhar. Era livre na sua relação com o templo, que frequentava como bom judeu que era, mas que também criticava por saber das limitações que acarretava na vivência relacional com Deus e com um Deus que é Amor e é Pai. Era livre em relação à palavra da Lei pois sabia que ela era para o serviço e crescimento do homem e não para a sua escravatura, ainda que muitas vezes e pelas injunções mais perversas fosse motivo de sofrimento e de escravidão.
Jesus era livre também na relação com o seu próprio corpo, corpo tocado pelos leprosos, pelas mulheres de má vida, sobre o qual permitia o descanso e o repouso da cabeça daqueles que amava. Corpo livre e por isso passível de ser entregue para o sacrifício da cruz, de ser oferecido como alimento para cada homem e mulher, corpo transfigurado que assimila todos aqueles que se aventuram no mistério de se alimentarem dele.
É a verdade da sua pessoa, a aceitação de quem é e como é, Filho de Homem e Filho de Deus, expressão viva do amor entregue para resgate dos servos infiéis, que torna Jesus livre, capaz de oferecer a liberdade de Deus e de ver nos outros a liberdade potencial de irmãos e herdeiros com ele.
Aceitar isto, é aceitar que a liberdade que buscamos, que desejamos, assenta na liberdade do outro, na liberdade do seu mundo e da sua condição de filho de Deus, bem como na entrega e no serviço salvífico por amor do próximo, assenta na insatisfação dos nossos apetites carnais no que eles têm de desejo de poder, de glória, de prestigio, de controlo e de narcisismo. Fomos chamados à liberdade, mas para uma liberdade de controlo e disciplina, de conversão, sobre aquilo que nos desumaniza e desumaniza aqueles com quem partilhamos a vida. Quando reclamamos a liberdade, seja ela de que tipo seja, esquecemos frequentemente que lhe corresponde uma face de responsabilidade. Ser livre, ou querer ser livre, é ser e querer ser responsável.
Fomos chamados para a liberdade, na qual nos reconhecemos como necessitados e carentes de conversão, de melhoramento. Fomos chamados para a liberdade para libertar os outros, para os retirar dos seus poços de vergonha e os dignificar como homens e mulheres, como filhos de Deus. Fomos chamados para a liberdade do serviço, para em conjunto construirmos e nos encontrarmos com a verdade e a liberdade, porque ninguém é livre sozinho e ninguém se encontra com a verdade sem o espelho da face do outro.
Podemos ser livres na Igreja, e mais particularmente na Igreja Católica? Não só podemos, como devemos, porque de contrário estamos a negar o mistério da encarnação, a mensagem libertadora de Jesus, e a natureza da própria Igreja como Corpo de Cristo. Podemos sê-lo e devemos sê-lo na busca constante da fidelidade à liberdade de Jesus, à pessoa de Jesus e à sua Palavra, não nos deixando aprisionar e agrilhoar pelas estruturas que historicamente foram dando corpo e orgânica a um conjunto de homens e mulheres que partilham o mesmo caminho na busca do mesmo fim. Muitas vezes, e infelizmente mais do que devíamos, infantilmente deixamo-nos ficar…
No fim da vida seremos julgados pelo amor; mas pelo amor a estruturas temporais e circunstanciais, ou pelo amor à fonte do Amor e a tudo o que fizemos fielmente, ou tentámos fazer, por essa mesma fonte?
Sinceramente, não quero ser julgado pelo amor aos andaimes da obra, mas pela obra acabada com amor.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Permanecer vigilante

É bem pouco um resto de vela, mas ele ilumina esse homem morto diante do qual me disseram que nada mais tenho que fazer no mundo senão ficar indefinidamente de sentinela. Estou só com Cristo, e no mundo não há mais nada que lhe faça concorrência. Ah, estou bem tranquilo, tenho muito tempo ainda diante de mim, antes que a manhã venha empalidecer estas longas janelas. Só eu estou vivo no universo. Todos os ruídos da terra emudeceram e nada há que faça concorrência a esse murmúrio de Deus ao ouvido da minha alma. Que pobreza comparável à ausência total? Nem há necessidade de pensar. Basta perseverar com toda alma, arder pobre e fielmente como essa chama aguda e hesitante, aos pés do Senhor.[1]


[1] Paul Claudel – O Poeta e a Cruz, Lisboa, Editorial Aster, 1958, 178.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Cristãos do Contra

No editorial deste mês de Setembro da revista “Le Monde des Religions”, Frédéric Lenoir comenta um ensaio recentemente publicado em França, e da autoria de Jean-Pierre Denis, intitulado “Porque o cristianismo provoca escândalo”. Creio que é suficientemente interessante, e até provocador, para tomar algumas notas, enquanto esperamos que o livro nos chegue às mãos e possamos confirmar o que se ensaiou.
Assim, não podemos deixar de assumir que a contra cultura “libertinária” que nasceu do Maio de 68 é hoje a cultura que nos domina a todos, é a cultura dominante, enquanto que o cristianismo se transformou em algo verdadeiramente periférico, não sei se verdadeiramente uma contra cultura periférica, ou apenas algo periférico.
A contra cultura, que se desenhou no Maio de 68 de uma forma embrionária, evoluiu das margens e da periferia para o centro, tornou-se norma, ganhando aos poucos as consciências, as mentalidades e os consensos sociais, atingindo mesmo e ainda que imperceptivelmente um nível elevado de controlo social. Não temos, por acaso, algum pudor, para não dizer medo, em assumir algumas ideias e posições menos politicamente correctas?
Simetricamente a esta evolução e ocupação cultural o cristianismo foi sendo relegado para a esfera do privado, colocado à margem, gerando aquilo que todos nós sabemos e que habitualmente apelidamos de descristianização. A forma mais visível, todos temos isso claro, é o despovoamento das nossas assembleias dominicais e das nossas igrejas. Mas essa é apenas a ponta do iceberg, porque a questão é mais profunda e não só cultural mas creio que também ontológica.
E neste ponto temos que ter presente e também assumir, que de facto e apesar de dois mil anos de história e de uma época a que chamamos “cristandade”, o nosso mundo e a nossa história deixam muito a desejar em termos de cristianismo. É verdade que temos as catedrais e os mosteiros, a arte e a filosofia, os símbolos e as organizações, o respeito e os direitos do homem, um património cultural e social inquestionável; mas temos também a intolerância, as organizações rígidas e obsoletas, as perseguições e as guerras, uma moral bastantes vezes estreita e constrangedora, uma história e um presente nos quais se mesclam a beleza e o horror, a humanidade e a desumanidade.
Será que não abandonámos a liberdade e a bondade subversiva que marca a mensagem de Jesus, no que diz respeito à moral, à religião e ao poder? Será que a partir do século IV com a associação ao poder e ao governo imperial não se gerou uma confusão enorme entre o que é ser seguidor de Jesus Cristo, cristão na mais radical acepção da palavra, e cristão enquanto membro de um igreja, de uma confissão religiosa, de um grupo social cultural dominante?
Neste sentido, a descristianização em que todos nos inserimos e da qual todos temos consciência pode de facto ser uma bênção de Deus, pode ser uma nova oportunidade para um seguimento mais fiel e verdadeiro de Jesus Cristo, um renascimento da fé à luz dos Evangelhos, na qual o amor do próximo e o amor de Deus serão colunas angulares, na qual uma resistência ao consumismo materialista conduzirá a um novo humanismo e a uma conservação ecológica da casa natural em que vivemos. Necessitamos abandonar os esquemas estereotipados, os espartilhos que nos colocamos em nome e em defesa de uma fé, que a bem da verdade é mais uma consciência ou concepção colectiva, corporativista, que verdadeiramente a consequência de uma experiência pessoal e profunda do mistério amoroso de Deus vivida no seio da comunidade dos irmãos.
Para a prossecução deste renascimento, desta reconstrução cristã, para aproveitar a oportunidade, Jean-Pierre Denis propõe cinco pontos de desenvolvimento: reanimar a cultura, objectar de consciência, ligar o tempo, ultrapassar o visível, refundar o sentido. Projecta-se desta forma um cristão contra cultural, chamado do contra, que não se envergonha dos seus valores e princípios, nem reivindica qualquer poder ou autoridade, mas que se define essencialmente pelo seu poder de objecção face aos desafios e propostas do seu tempo.
O Cristianismo crítico é um cristianismo de objecção, objecção de consciência, objecção pelo testemunho, objecção pela experiência e objecção pela esperança.”
Aproximamo-nos assim de São Paulo e do escândalo que os primeiros cristãos provocavam aos seus contemporâneos, aproximamo-nos da fidelidade de que os mártires dos primeiros séculos são o exemplo mais puro.
Como disse ao início, estas são apenas notas, apontamentos que exigem uma leitura mais aprofundada do ensaio de Jean-Pierre Denis e uma reflexão mais madura das várias propostas aí apontadas. Contudo, e face ao interesse e desejo de todos nós por uma maior fidelidade à liberdade subversiva de Jesus, deixo estas notas para alimentar a partilha e a reflexão.

domingo, 12 de setembro de 2010

Homilia do XXIV Domingo do Tempo Comum

Uma vez mais a liturgia da Palavra traz-nos à reflexão a parábola do filho pródigo, parábola sumamente conhecida e profundamente meditada por tantos autores e pregadores. Contudo, e possivelmente por isso mesmo, convém que a olhemos uma vez mais, descobrindo ou redescobrindo a mensagem que Deus nos quer deixar, a provocação que pode despertar em nós o desejo mais intimo e forte de regressar à casa do Pai.
Assim, e para compreender o sentido primeiro das parábolas, porque são três, que Jesus conta, temos que ter presente o contexto em que são proferidas. Não podemos esquecer que o evangelista contrapõe dois grupos de ouvintes, os publicanos e pecadores que se dirigem a Jesus para o escutar, e os escribas e fariseus que também se dirigem a Jesus, mas para aferir da sua palavra, e por tal razão ao verem o grupo dos pecadores, começa a murmurar sobre a validade e qualidade dessas mesmas palavras.
Temos um grupo que está aberto à boa nova de Jesus, que se sente pecador, porque vive à margem da lei, do cumprimento fiel da lei. Há em cada um deles um vazio que necessita ser preenchido, uma lacuna que necessita ser colmatada pela misericórdia de Deus. E aquele homem que encontram diante de si é a promessa desse preenchimento, é a esperança de que algo pode ser diferente nas suas vidas, apesar da infidelidade e do não cumprimento da lei.
No lado oposto, o grupo dos fariseus e dos escribas está cheio de si mesmo, da sua vaidade e arrogância de cumpridores fiéis da lei de Moisés. Não necessitam de nada porque têm tudo, não necessitam da misericórdia de Deus porque têm as suas leis e o seu cumprimento, tantas vezes vazio de amor mas cheio de presunção do cumprimento exigido. A misericórdia de Deus passa-lhes ao lado porque nas suas forças se consideram justos e perfeitos, não têm necessidade de mais nada e muito menos das palavras de Jesus.
Na parábola do filho pródigo, o irmão mais velho incarna este grupo, é imagem dele, da auto-suficiência e por isso diz ao pai que sempre esteve com ele sem nada lhe exigir, nem mesmo aquilo a que tinha direito. O filho mais velho está encerrado nele e nos seus direitos, na fidelidade da permanência, ainda que vazia de amor e fraternidade. Por esta razão fecha-se não só ao acolhimento do irmão, mas também da bondade e do amor do pai, porque ao não permiti-lo para o irmão e filho pródigo também se exclui ele mesmo desse amor, ou da sua possibilidade na sua vida.
O irmão mais novo, o filho pródigo, pelo contrário é aquele que está aberto a tudo, a um reconhecimento da sua infidelidade e do seu amor, a um processo de regresso a casa já não para ser filho mas para poder ser empregado, a uma desvalorização da sua filiação para poder sobreviver, e finalmente ao perdão e ao acolhimento do pai que esperava por ele ansiosamente.
É um processo ontológico, podemos até dizer psicológico, que caracteriza esta parábola e as outras duas que a precedem, porque tanto na parábola da ovelha perdida, como na da dracma perdida, encontramos a mesma correlação entre a consciência de um bem perdido, um trabalho de busca e encontro e uma alegria final perante o encontro do bem perdido.
É um processo que nos marca, ou nos deve marcar, como também marcou São Paulo, que escutámos na leitura da Carta aos Coríntios. É a consciência da infidelidade que nos leva ao encontro da fidelidade e da misericórdia de Deus. É a consciência da nossa pequenez e egocentrismo que nos leva à grandeza da misericórdia de Deus e ao seu amor por todos os seus filhos.
Amor que o irmão mais velho não soube viver nem quis assumir, mas que a figura de Moisés, que encontrámos na primeira leitura, soube assumir e viveu na experiência teofânica do monte Sinai. É o nosso grande desafio, é a expressão mais radical daquilo que podemos assumir como a nossa fraternidade na sua limitação humana. Como Moisés podemos e devemos interceder pelo outro, devemos acolhê-lo cabalmente, ainda que na sua fraqueza e infidelidade, e apresentá-lo a Deus como uma obra que necessita da sua misericórdia mais que qualquer condenação, nossa ou de outrem.
A parábola do filho pródigo leva-nos assim a tomar consciência das nossas infidelidades, mas também da fraternidade que nos une nessa mesma condição, razão pela qual não podemos excluir ninguém mas bem pelo contrário devemos acolher e interceder por todos.
É um trabalho, uma tarefa que nos devemos propor, mas para a qual devemos solicitar a ajuda e a graça de Deus, porque fundados apenas nas nossas forças inevitavelmente fracassaremos nos limites do nosso egoísmo e egocentrismo. Só o amor de Deus em nós e a sua misericórdia nos pode converter.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Jesus escolhe os apóstolos (Lc 6,12-16)

Tarefa assaz difícil, ou nem tanto, a de Jesus, a de escolher entre os seus discípulos doze que partilhassem de modo mais intimo da sua vida e da sua missão. Tarefa difícil porque Jesus conhece-os já do caminho, das jornadas que partilharam, e nas quais pôde ver e ouvir das suas expectativas e ambições. Conhece-lhes os corações e os sentimentos que neles habita, os postos que desejam e o poder que ambicionam.
Contudo, e apesar do que sabe, arrisca, arrisca chamar cada um deles pelo seu nome, deixando-lhes a liberdade da escuta e do seguimento, deixando-lhes as circunstâncias das suas próprias condições de trabalhadores, de irmãos e amigos.
Jesus não chama ninguém desencarnado, isolado, abstractamente, chama histórica e concretamente cada um dos seus discípulos, e de uma forma tão aberta e livre que a possibilidade da traição está sempre presente e assumida. Judas é disso o exemplo.
Mas se Jesus se arrisca a tanto, se avança para uma tarefa tão difícil, é porque não está sozinho, não é uma escolha unicamente pessoal a que assume realizar. Durante a noite, toda a noite, esteve em diálogo com o Pai e a partir dessa realidade e experiência é que se arrisca e faz a escolha. É o amor existente entre ambos, a força do Espírito Santo, que lhe permite a escolha com tudo o que comporta de liberdade e de risco.
Jesus não actua sozinho, não escolhe os doze sem qualquer outro apoio, bem pelo contrário, como em tantas outras situações difíceis recorre ao Pai para iluminar a sua decisão e opções, assenta e reforça-se no amor do Espírito Santo para realizar a sua missão. Atitude de humildade, de submissão filial, atitude confiante que aceita que na sua história e para seus apóstolos entre um conjunto de homens que tem muito pouco de perfeitos, de capacitados, de recomendáveis.
Mas não é necessário um vazio, uma lacuna, para que se possa preencher, uma brecha por onde possa entrar a luz? Estes homens pescadores e pecadores, ainda centrados em si próprios e nas suas expectativas, irão um dia, face à perda total de tudo o ambicionado, ser capazes de se abrirem também eles ao dom do amor filial, ao Espírito Santo que os transfigurará. Será então Pentecostes!

domingo, 5 de setembro de 2010

Homilia do XXIII Domingo do Tempo Comum

Diz-nos Jesus no Evangelho de hoje que quem não tomar a sua cruz para o seguir não poderá ser seu discípulo. Para além da necessidade de abandonar tudo e todos, até a própria vida.
Jesus coloca a fasquia do seguimento muito alta, demasiado alta para as nossas forças, e por isso não nos podemos admirar, nem podemos culpar aqueles homens e mulheres que perante tal proposta se retiram, desistem, não querem aceitar o convite. É um convite e uma proposta dura, radical, demasiado radical para as nossas forças.
E esta dureza e radicalidade adquirem ainda maior ênfase se tivermos em conta as palavras que se seguem relativas ao exercício de cálculo que é necessário efectuar.
De facto, se é necessário fazer cálculos para saber se temos condições para terminar uma torre, da qual lançámos os alicerces, e não cairmos no ridículo, mais necessário é fazer cálculos das condições que possuímos para seguir Jesus. Não podemos deixar de olhar para nós e para o que temos e somos e aferir da nossa condição de seguimento radical.
Muitos homens e mulheres aferem destas condições, verificam se podem ou conseguem seguir o Senhor, que irremediavelmente segue à nossa frente e nos mostra um caminho doloroso. Jesus vai sempre adiante e se por vezes nos volta o rosto é para nos olhar nos olhos e exigir mais radicalidade, mais entrega no seguimento. É duro e por isso desistimos ou contemporizamos com situações ambíguas de um seguimento que nos deixam também elas exaustas e insatisfeitas.
E é perante esta realidade, estas realidades de insatisfação e desistência, que Jesus nos apresenta o caminho, o modo de as superarmos, quando nos fala dos senhores que se preparam para a guerra. De facto, se nos enfrentamos com um rei que possui muito mais poder que nós e nos pode vencer, é natural que procuremos a paz, que enviemos os nossos emissários para saber as condições de paz.
Na nossa situação de seguimento de Jesus estes emissários são a nossa confiança e esperança, essa confiança e esperança que colocamos no Senhor de que é capaz de fazer em nós e por nós muito mais do que podemos imaginar e desejar. As condições de paz negociadas são a aceitação de que pelas nossas forças o seguimento é muito duro, ou quase impossível, mas com a graça divina e a força do Espírito Santo é possível, é viável.
Para seguir Jesus necessitamos negociar, estabelecer as condições de paz, que não são para contemporizarmos ou aceitarmos um seguimento mais suave, menos doloroso, menos radical, mas que nos colocam na verdadeira dimensão do seguimento à luz do mistério da encarnação e da redenção.
Uma história da representação da ópera “Electra” do compositor Richard Strauss, conduzida pelo maestro Herbert von Karajan ilustra bem esta realidade das condições de paz e da negociação que é necessário estabelecer para o seguimento.
A ópera “Electra” é uma das obras mais difíceis do compositor e von Karajan, ainda jovem e ambicioso, dirigiu-a de olhos fechados e sem partitura. Strauss que assistiu à execução foi no final felicitar o jovem maestro e disse-lhe que tinha respeitado todas as passagens difíceis, tinha realizado tudo de uma forma tão métrica que até ele duvidava que fosse capaz de realizar. Contudo, tinha-lhe faltado uma coisa, em alguns momentos deixar fluir a música, deixá-la respirar por si mesma.
O seguimento de Jesus à luz da confiança e da graça compromete-se neste negócio de métrica, de fidelidade, de busca de coerência aos mandamentos e à palavra do Senhor, mas também de liberdade, de fluidez, de deixar e aceitar que Deus pode fazer e faz em nós aquilo que por nós mesmos e na nossa fidelidade não somos capazes de fazer.
O mistério da encarnação, o facto de o nosso Deus se ter feito homem como nós, excepto no pecado, e o mistério da redenção com a aceitação da vontade de Deus perante uma morte ignominiosa na cruz, mas à qual se seguiu a ressurreição, mostram-nos como o seguimento é difícil, exigente de fidelidade, mas como Deus está lá para superar as fraquezas e glorificar os que aceitam viver até ao limite da radicalidade e da entrega da vida.
Quem poderá conhecer os desígnios do Senhor, pergunta a Sabedoria, senão aqueles a quem é enviado o Espírito Santo? Quem poderá prosseguir no caminho do seguimento senão aqueles a quem é dada a força do Espírito Santo? Peçamos assim ao Senhor que nos envie o seu Espírito, pois por seu intermédio são corrigidos os procedimentos incorrectos, são fortalecidos os fracos, são levantados os que caiem, os homens aprendem o que agrada a Deus e pela sabedoria são salvos.