sábado, 24 de julho de 2010

A parábola do trigo e do joio desafio de esperança


Saiu o Senhor a semear uma boa semente no seu campo, mas mais tarde encontrou-se no meio dessa boa semente também o joio que o inimigo tinha semeado de noite. Que fazer?
Esta parábola de Jesus, na sua simplicidade, deixa-nos vários aspectos a ter em conta, na medida em que somos campo em que se semeia, em que somos também trabalhadores desse campo e por fim o fruto da sementeira.
Na medida em que somos campo, para além da boa terra que devemos ser e cultivar, devemos ter em atenção a vigilância, não podemos deixar-nos dormir, porque nesse estado o inimigo pode em nós semear o joio. A Palavra de Deus que é semeada em nós exige um cuidado, uma atenção, uma vigilância, como a das sentinelas que esperam a aurora, que esperam o inimigo para o combater, ou neste caso impedir que lance a sua semente de mal no campo onde foi lançada a semente de Deus.
Como trabalhadores do campo da sementeira não podemos cair na arrogância de pensar que podemos arrancar as plantas de mal semeadas. Como diz Jesus podíamos arrancar também as boas plantas. Neste sentido o Senhor convida-nos a afastar-nos do juízo que exercemos sobre as obras dos outros, a cuidarmos o nosso papel e função, e a deixarmos para Deus o juízo que apenas a Ele compete.
Esta atitude implica também a esperança e a confiança que o Senhor deposita em nós, na nossa capacidade de combater o mal, de permitirmos que as plantas de bom fruto cresçam e na sua exuberância e fortaleza destruam as plantas do joio. É como na parábola da figueira em que o agricultor pede ao Senhor para não abater a figueira que não dá frutos, ele irá cavá-la, regá-la, adubá-la na esperança que futuramente dê algum fruto.
Também o Senhor espera de nós a mesma atitude, não só em relação aos outros, ao campos e sementeira alheia, mas sobretudo em relação à sementeira que foi feita em nós. Espera o fruto, e um fruto bom e abundante, segundo a capacidade de produção de cada um, a vigilância aplicada e os cuidados necessários à frutificação que cada um deve utilizar.
A parábola do trigo e do joio abre-nos assim à confiança em Deus e ao desafio da esperança de Deus em nós.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Andreï Tarkovski e os filmes para rezar

Foi numa dessas divagações pelas prateleiras de vídeos num momento de busca de um filme para um serão de sábado, que o encontrei, que me encontrei com ele, pela primeira vez. O amigo ucraniano que me acompanhava reticentemente apresentou-mo, expondo a complexidade do filme, a diferença cultural e religiosa, a idade do filme, a duração e o preto e o branco; um conjunto de razões que mais que fazer-me desistir do filme pelo contrário me provocava um desejo enorme de o ver. Para mais, a personagem em questão na história, e que dá o título ao filme, não me é indiferente, “Andreï Roubliov”.
Foi desta forma que conheci o realizador russo Andreï Tarkovski, nascido em 1932, formado na Instituto Superior de Cinema de Moscovo e autor de um conjunto de filmes que nos surpreendem pelo inesperado e pela beleza da imagem, bem como pela mensagem que subjaz em cada história, em cada personagem, em cada imagem captada pelo espectador.
São obras suas: “O rolo compressor e o violão”, filme de conclusão da formação académica e universitária em 1960; “A Infância de Ivan”, de 1962, a sua primeira longa-metragem e Leão de Ouro do Festival de Veneza; “Andreï Roubliov”, de 1966, que foi ameaçado de destruição pela censura se não sofresse alguns retoques; “Solaris”, de 1972; “O Espelho”, de 1974, e no qual integra vivências da sua infância; “Stalker”, de 1979; “Nostalgia”, de 1983, escrito e realizado no exílio, no qual integra os elementos da sua experiência de exilado e as suas origens russas, e que foi premiado em Cannes ; o “Sacrifício”, de 1986, realizado na Suécia a convite de Ingmar Bergman, pouco antes da sua morte.
Devido às dificuldades que encontrou junto das autoridades soviéticas, dos produtores dos filmes e do público em geral, Andreï Tarkovski viu-se obrigado a colocar por escrito as suas reflexões como cineasta, a explicar a sua obra. É nessa explicação “O Tempo Selado” que encontramos a razão da complexidade dos seus filmes e das suas personagens, que vemos como na base de toda a sua realização cineasta estava uma profunda fé e espiritualidade e como se sentia obrigado a transmiti-la e a fazer dela participantes os espectadores dos seus filmes.
A arte deve existir para lembrar ao homem que é um ser espiritual, que ele faz parte de um espírito infinitamente grande, ao qual no fim das contas se regressa. Se ele se interessa por estas questões, se as coloca, ele está já espiritualmente salvo”.
Vale a pena ver a obra de Andreï Tarkovski, pela beleza e pela mensagem, mas também por esse desafio que nos deixa de salvação pela beleza. Termino com palavras suas numa entrevista um ano antes da sua morte em Paris por cancro dos pulmões.
Os meus filmes não são uma expressão pessoal mas uma oração. Quando faço um filme é como um dia de festa. Como se eu colocasse diante de um ícone uma vela acesa ou um ramo de flores”.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Homilia Domingo XV do Tempo Comum

O Evangelho deste domingo apresenta-nos a conhecida parábola do Bom Samaritano, uma parábola que nos convida à compaixão, à semelhança do samaritano que acolhe e cuida aquele pobre viajante vítima de violência.
Contudo, antes da parábola apresentam-se duas questões que Jesus coloca ao seu intermediário e que por vezes nos passam despercebidas, tão centrados estamos na história do Bom Samaritano. Mas são questões fundamentais, se não mesmo centrais, pois é por causa delas e das respostas dadas e não dadas que surge a parábola onde nos reflectimos.
Perante a pergunta do doutor da lei sobre a forma de ganhar a vida eterna Jesus responde contrapondo duas outras questões, o que diz a lei e como lês tu. O doutor da lei responde à primeira pergunta, repetindo os mandamentos da lei de Moisés, mas não responde à segunda, ou seja, como lê ele esses mandamentos.
A pergunta de Jesus é de suma importância porque face a alguém que conhecia a lei, que a devia estudar, e portanto estar por dentro de todas as suas consequências, Jesus quer saber como ela é vivida, como é lida em actos de vida, como é tornada pessoal.
Há uma dinâmica extremamente interessante no questionamento de Jesus ao doutor da lei, porque o confronta com a exterioridade da lei e o seu cumprimento interior, a interioridade dos mandamentos do Senhor face às prescrições normativas exteriores. E neste sentido as perguntas mantêm-se actuais e centrais na nossa própria vida e fé, porque podemos viver a lei de Deus como um fardo, uma imposição exterior, ou assumi-la como uma realidade que nos garante a liberdade e a felicidade, algo que é intrinsecamente nosso porque a assumimos como nossa.
Esta dimensão libertadora da lei de Deus está bem patente, no Livro do Deuteronómio, no momento da celebração da Páscoa, pois aí é dito que quando o mais novo da família perguntar pela razão das celebrações especiais, o chefe da família deve contar a história da libertação do Egipto e da entrega dos mandamentos no monte Sinai para a verdadeira liberdade do povo e sua felicidade. Os mandamentos são uma libertação, a libertação.
Ainda relativamente a esta questão, é interessante notar a liberdade e capacidade que Jesus reconhece ao doutor da lei, e assim a cada um de nós, de ler a lei, de a fazer nossa. Deus não nos obriga a nada, nem nos coarcta na nossa capacidade e liberdade de fazer a lei como algo pessoal e próprio. Deus deixa-nos a capacidade de ler a lei e a fazermos vida em nós, o que é extremamente libertador e gratificante porque vivemos e praticamos uma lei que consideramos essencial e caminho de felicidade.
E foi porque o doutor da lei não deu a resposta de vida que Jesus queria que lhe contou a parábola do Bom Samaritano, para lhe mostrar como a lei devia ser vida e vida radical, fora dos limites e dos nossos parâmetros de normalidade. Por isso não estranha que os dois primeiros viajantes que se afastam, um levita e um sacerdote sejam apresentados como gente sem compaixão. Há uma crítica velada de Jesus, mas também um alargamento dos horizontes do doutor da lei que devia perceber que a salvação não estava na exterioridade da lei e no seu funcionalismo mas na radicalidade da sua vivência misericordiosa, na qual todos podiam incorporar-se.
E aqui coloca-se para nós uma outra questão também fundamental e até de certo modo urgente, ou seja, quanto estamos dispostos a gastar a mais do que nos é dado confiantes de que seremos compensados por isso que gastarmos a mais? Quanto nos dispomos a dar a mais de nós próprios, da nossa paciência, da nossa solidariedade, do nosso amor e atenção, da nossa disponibilidade, confiantes de que não será em vão, de que receberemos de facto o que tivermos disponibilizado e ofertado? E não o fazemos, ou faremos, em função de uma recompensa, de méritos futuros, mas apenas por total liberalidade do nosso amor, tal como foi liberal para connosco o amor de Deus que nos reconciliou com Ele quando ainda éramos pecadores.
Assim, se a parábola do Bom Samaritano nos convida à compaixão para com aqueles que sofrem e encontramos nos caminhos da nossa vida, não podemos ficar apenas aí, nessa compaixão, temos que ir além do que é necessário, temos que ser mais liberais na nossa entrega e oferta e perceber que por intermédio dessa liberalidade, dessa abundância generosa, estamos a fazer viva e interiormente nossa a lei que é Deus, estamos a inscrever em tábuas de carne a lei que um dia foi escrita em tábuas de pedra.
Peçamos ao Senhor a graça de sermos cada vez mais conformes à lei verdadeira que nos foi dada viva e vivificante no seu Filho Jesus Cristo.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

São João de Colónia - Mártir Dominicano

João Heer nasceu na Alemanha nos meados do século XVI. Filho da Província Dominicana da Teutónia, viveu os seus primeiros anos como religioso no convento de Colónia, do qual adquiriu o apelido, e onde se destacou pela sua virtude e formação.
Em 1572, num momento em que o movimento calvinista atingia grandes vitórias na zona da actual Holanda, frei João Heer foi viver para Hornaer com o objectivo de ajudar os católicos que ali sofriam dura perseguição por parte dos calvinistas. Aí exerceu a sua missão de dominicano e pregador como pároco.
Foi detido pelos calvinistas no momento em que celebrava o baptizado de uma criança recém nascida na cidade de Gorkum, e depois de várias vezes e secretamente ter prestado assistência espiritual e ministrado os sacramentos aos religiosos e sacerdotes locais que entretanto tinham sido presos.
No dia 8 de Julho o Príncipe de Orange, Guilherme o Silencioso, enviou uma carta ao Conde Lumey, comandante das chamadas Watergeuzen, guardas dos mares, que tinham conquistado a cidade de Gorkum, para que libertasse todos os religiosos e sacerdotes detidos.
Não satisfeito com a decisão e ordem do Príncipe, o comandante Lumey com as suas tropas recolheu todos os detidos e encaminhou-os para a cidade de Brielle do Mosa, no sul da Holanda, onde a 9 de Julho de 1572, fora dos muros da cidade, num velho moinho, enforcou frei João Heer juntamente com mais outros dezoito religiosos e presbíteros provenientes na sua maioria da cidade de Gorkum. Depois de enforcados os seus corpos foram esquartejados.
Todos eles foram mortos por causa das doutrinas católicas sobre a presença real na Eucaristia e o primado do Pontífice Romano, que se recusaram a abjurar como desejavam os seus algozes. Clemente X beatificou-os em 24 de Novembro de 1675 e Pio IX canonizou-os a 29 de Junho de 1867.
Iconograficamente São João de Colónia é habitualmente apresentado com o hábito dominicano, uma corda ao pescoço, instrumento do seu martírio, segurando uma píxide, simbolo da Eucaristia, ou a palma do martírio.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Apóstolos e nómadas

O cajado, as sandálias, o alforge e a ordem de ir e proclamar não podem deixar de nos remeter para uma situação de andança, de caminho a fazer. A proposta de Jesus para os seus Apóstolos é de alguma forma uma proposta de nomadismo, somos convidados a ser nómadas neste mundo.
E como todos os nómadas dirigimo-nos, ou devemos dirigir-nos, para os locais de alimento, de repouso e de paz, para os locais onde podemos saciar as nossas necessidades. Na fé a nossa fonte de satisfação é o próprio Deus, é para Ele que nos devemos dirigir, o Deus revelado em Jesus Cristo.
Na cruz, contemplando a cruz de Jesus, descobrimos o Deus que nos sacia, que nos ama, e descobrimos como tantas vezes idolatrámos as representações de deus, imagens falsas e projectadas de nós mesmos e que não nos saciam nem satisfazem porque são falsas e ocas de vida.
Na cruz e na vida de Jesus descobrimos o caminho, ele vai à nossa frente mostrando-nos os passos a dar, mas descobrimos também que o Pai nos sustenta, nos vai segurando nos seus braços para que possamos caminhar sem grandes quedas e fracturas. Na cruz de Jesus descobrimos ainda que estamos livres, que nos foi retirado um grande peso que carregávamos e por isso podemos caminhar mais ligeiros. Foi a enxerga do pecado que nos foi retirada e nos torna mais ágeis para caminhar.
Procuremos andar, ainda que por agora carregados com algum peso a mais, mas confiantes que o Senhor vai connosco e nos não deixará sozinhos nesta caminhada.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Os doze Apóstolos

Dizem-nos os Evangelhos que, do grupo de discípulos que o seguia, Jesus escolheu doze, que chamou a si e deu poder de expulsar os demónios e curar as doenças. Parece irrisório e até anedótico quando vemos que pouco antes o mesmo Jesus se tinha dado conta da grandeza do trabalho a fazer e de como eram poucos os trabalhadores para essa seara. Podia perfeitamente ter escolhido mais, porque havia mais gente que o seguia.
Mas Jesus escolheu doze, e deu-lhes poderes especiais para realizar a missão a que os enviava.
Podemos pensar neste número relacionando-o com as doze tribos do povo de Israel, mas podemos e devemos certamente pensar nele à luz do milagre da multiplicação dos pães, à luz da parábola do fermento na massa, porque de facto é isso que estes doze homens são chamados a ser, um fermento no meio da massa dos discípulos e do povo. E portanto não há necessidade de muitos, há apenas necessidade de algo ou alguém que tenha o poder e a capacidade da transformação, do crescimento.
É para nós hoje, e à luz das realidades humanas que compõem a Igreja, mormente na Europa, um desafio, porque sabendo-nos e sentindo-nos também chamados por Jesus, devemos viver essa realidade da dinâmica do fermento no meio da massa.
E se ao grupo dos doze Jesus estabelece uma hierarquia, na qual Pedro é o primeiro e Judas o último porque o traidor, não deixa também de manter as relações pessoais e familiares que há entre aqueles que compõem o grupo, as histórias pessoais de cada um. Assim, encontramos os irmãos lado a lado no seguimento de Jesus, outros que se identificam pela paternidade e outros até pela profissão que exercem ou exerciam antes de seguirem de Jesus.
O seguimento de Jesus, a participação no grupo dos doze, não se faz assim por meio da separação, da segregação ou exclusividade. O seguimento implica a naturalidade, as relações fraternas e familiares, sociais e até políticas. Somos discípulos de Jesus nas “nossas circunstâncias”, para utilizar uma expressão tão querida a Ortega y Gasset. Não há outra maneira de ser, porque de contrário negaríamos o próprio mistério da Encarnação de Jesus, do Filho de Deus. É aqui e agora que podemos e devemos ser discípulos de Jesus, testemunhas da sua Boa Nova, fermento na massa para que ela se transforme em Reino de Deus.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Pedir trabalhadores para a seara do Senhor

Pedi ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara”, é a recomendação que Jesus deixa aos seus discípulos depois de ver a imensa multidão que andava fatigada e abatida, como ovelhas sem pastor. Jesus expressa este pedido a partir das suas entranhas, dos seus sentimentos de misericórdia, assumindo que é Deus e portanto não é indiferente à situação das gentes e dos homens.
Hoje, e certamente desde há muito, quando lemos esta passagem evangélica pensamos nos sacerdotes e nos consagrados, naqueles que consideramos de uma forma especial como os trabalhadores da seara do Senhor. E rezamos por eles, pedimos ao Senhor da seara que mande trabalhadores. É urgente que o façamos.
Mas não podemos ficar apenas aqui, digamos que neste pedido urgente de trabalhadores especializados, temos que assumir que cada um de nós como membro vivo de uma comunidade, pedra da construção que é a Igreja está convidado a assumir a sua função, a desempenhar o seu labor, a ser trabalhador na seara do Senhor.
Assim temos que pedir ao Senhor pelos sacerdotes e consagrados, mas também pelos catequistas e animadores de jovens, pelos sacristães e zeladoras, pelos que dirigem os nossos coros e aqueles que emprestam as suas vozes para a beleza da liturgia, por aqueles que assistem aos mais pobres e os que visitam os que estão doentes.
E se já não eram poucos pelos que tínhamos que pedir, não podemos esquecer, hoje mais que nunca, aqueles que trabalham nas fronteiras da nossa cultura religiosa cristã, os escritores, os poetas, os realizadores e os artistas, os técnicos de informática e os desenhadores de páginas de Internet que num mundo novo e em construção necessitam da nossa oração.
E os “anónimos”, aqueles que no seu quotidiano, no seu mundo profissional tentam dar um toque cristão às diversas tarefas que realizam, muitas delas tão necessitadas de justiça e de verdade, de misericórdia e amor para poderem ser verdadeiramente humanas e construtoras de humanidade.
A seara é afinal muito grande e diversificada e nenhum de nós tem razão para desculpar-se que não pode fazer nada. Há um mundo de trabalho a realizar, basta querer.

domingo, 4 de julho de 2010

As lágrimas da alegria da festa

Ontem, uma grande amiga e fiel seguidora destas palavras cibernéticas disse-me pessoalmente que se tinha sentido “chocada” com aquilo que tinha escrito na sexta-feira passada, no dia do meu aniversário de ordenação. O choque derivava da exposição em que me tinha colocado, pela amizade que devota aos membros desta comunidade não gosta de nos ver assim expostos.
Sei que hoje esteve presente na Missa Nova do frei Vasyl, meu irmão, membro desta comunidade e grande amigo. Sei que se deu conta, como todos os presentes da emoção e comoção com que o frei Vasyl terminou a sua primeira celebração dominical.
Todos nos demos conta e todos nos surpreendemos porque não estamos habituados, diríamos que não faz o seu género, não é de se expor nem gosta de ser o centro das atenções. Como dizemos aqui em casa, algumas vezes entre nós, parece que o rigor do frio eslavo o moldou e o tornou insensível. Hoje, no entanto, vimos como não é assim, como o gelo eslavo também derrete, como as emoções nos quebram mesmo quando tudo fazemos para não nos deixarmos ir ao tapete, como nos expomos mesmo não querendo.
E foi um momento inesquecível, não por ver o Vasyl chorar, porque já de há muito sabíamos que era um homem de emoções como todos nós, mas por ter sido verdadeira e profundamente dominicano, um momento dominicano, razão pela qual deve ser recordado.
Antes de mais porque foi em comunidade, estávamos todos ali, entre irmãos, e afinal as suas lágrimas eram as nossas lágrimas de emoção, de tantos momentos e lutas partilhadas, de silêncios e palavras, de distanciamentos e abraços, de perdão e alegria partilhadas. Depois, porque mostrou como verdadeiramente somos, como por detrás da nossa carapaça e máscara de cerebrais e intelectuais, de homens fortes, de dominicanos, está um homem com tudo o que é de fragilidade e emoção, de profunda e intrínseca humanidade.
Somos homens, com tudo o que temos e não temos, com as nossas fraquezas e riquezas, e se por vezes parecemos anjos ou santos é porque o mendigamos ser, não fossemos mendicantes, e num laivo de graça o Senhor nos permite sê-lo, ou parecê-lo. Não há outro caminho para Deus senão o da nossa humanidade, o da nossa total humanidade, e como dominicanos sabemos isso desde que São Domingos nos fundou para servir a Igreja. Por essa razão, quando professamos na Ordem pedimos a misericórdia de Deus e dos irmãos, queremos ser santos, ser fiéis ao chamamento de Jesus, mas sabemos que sem a graça de Deus e a ajuda dos irmãos não o conseguiremos jamais.
E depois há a história de cada um de nós, a história pessoal, os caminhos que percorremos na terra e nos trouxeram até aqui e até hoje. Foi um cântico ucraniano, de acção de graças, magnificamente cantado, que soltou as fontes dos olhos do Vasyl. Só ele sabe o que aquelas palavras significam de vida, de dor e alegria, de entrega e amor, de história de Deus na sua vida. Todos nós somos uma história de Deus, contada e a contar. O cântico trouxe essa história indizível à nossa história comum e nas lágrimas partilhámo-la fraternamente.
Podemos dizer que hoje, e uma vez mais, todos estivemos expostos, que nos mostrámos como somos, ou uma faceta mais de como somos. Somos frágeis e somos fortes, rimos e choramos, aguentamos e caímos, procuramos ser santos como Jesus nos diz que procuremos ser, somos anjos porque balbuciamos uma oração e apresentamos sobre o altar as ofertas dos nossos irmãos, mas essencialmente somos homens porque o nosso Deus se fez um como nós para podermos ser um como Ele e com Ele.
Pierre Hugo, um dominicano francês escreveu que “a festa é a abundância da bondade, a partilha da amizade, a vida levada a um tal grau de intensidade que a morte parece esquecida” . Hoje foi para nós um dia de festa, um grande dia de festa. Louvemos a Deus pelo dom da vida e da vocação do Vasyl, nosso amigo e nosso irmão.


sábado, 3 de julho de 2010

Tomé ou a experiência da nossa fé


Tomé não está presente quando o Senhor ressuscitado aparece aos doze e quando lhe contam a novidade quer verificar por si próprio, quer afinal ser uma testemunha fidedigna, ainda que possa parecer desconfiado e incrédulo.
E o Senhor aparece num dia em que ele está presente, juntamente com os outros, reunidos dentro de casa por medo daqueles que os perseguem. A prova da fé acontece, as suas palavras de suspeitas são contrastadas e perante o amor e a oferta generosa do Mestre e amigo a declaração final “Meu Senhor e meu Deus”.
Tomé pode ser cada um de nós, nas suas dúvidas e interrogações, no seu vacilar de confiança. Mas podemos ser também o conjunto dos discípulos, reunidos dentro de casa, com as portas fechadas com medo.
Estamos fechados por medo do outro, do que o outro nos pode interrogar, das ameaças que pode apresentar com a sua inquietação de coerência. Estamos fechados dentro de casa, seja ela a Igreja ou a nossa própria privacidade, porque nos sentimos mais seguros, protegidos de uma realidade que nos parece ameaçante. Estamos fechados dentro de casa porque de alguma forma nos sentimos culpados, nos sentimos traidores e aí mais que fechados estamos prisioneiros, verdadeiramente prisioneiros que necessitam ser libertados.
E Jesus vem, faz-se presente no meio de nós, mesmo com barreiras e apesar das barreiras, das portas fechadas, dos nossos medos e culpabilidades doentias. Jesus faz-se presente e coloca-se no meio para que possa ser tocado, visto, proclamado na fé.
Jesus vem sempre, mesmo quando não o esperamos ou até desesperamos e coloca-se no centro para ser o centro da nossa vida, a rocha sobre a qual alicerçamos a nossa esperança e a nossa vida.
Necessitamos querer verificar por nós próprios como Tomé!

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Aniversário de Ordenação Presbiteral

Interrogo-me se devo ou não escrever este texto, se devo responder ao desafio que, ainda que indirectamente, me foi colocado pelo frei Filipe, meu Prior, irmão, amigo e companheiro fiel de tantos momentos, no seu blogue.
É verdade que celebro hoje o meu quarto aniversário de ordenação presbiteral. Há quatro anos atrás, mais ou menos por esta hora, estava a ser ordenado na igreja do antigo mosteiro dos Jerónimos de Lisboa pelo Patriarca D. José Policarpo. Foi um momento de muita alegria, um momento de chegada para uma partida, um momento de muita fraternidade e muito carinho por parte de quase todos os meus irmãos de religião que estiveram presentes e tantas outras pessoas que me conheciam e quiseram partilhar desse momento e alegria.
Passados quatro anos e olhando para a caminhada feita só posso dizer com as palavras do Livro da Sabedoria, “em tudo, Senhor, tu engrandecestes e glorificastes o teu servo, não deixastes de o assistir em todo o tempo e lugar” (Sb19,22), ainda que ele pouco o mereça pela sua infidelidade.
Passados quatro anos, que parece que voaram, tenho consciência das muitas coisas que o Senhor me deu, me concedeu para o servir e servir os irmãos. Tenho também consciência de que muitas vezes a minha vida é uma grande confusão, uma amálgama de desejos de fidelidade e coerência não vividas e infidelidades constantes e consentidas. O convite “Segue-me” está de certa forma ainda por realizar, porque mais ou menos conscientemente, ou inconscientemente, procuro subterfúgios para me desculpar. É o tempo que falta, a paciência que se esgota, as ideias contrárias dos outros, a sobrecarga de tantos ofícios, a falta de disciplina interna. E quase sempre o que de verdade falta é o amor. Tenho presente que fiz muitas coisas mal feitas, outras que deixei de fazer para não me aborrecer, algumas por preguiça ou orgulho. Tenho consciência que desperdicei algumas oportunidades e não sei se Deus não me vai chamar a atenção por isso, porque as oportunidades são isso mesmo, oportunidades para fazer mais e melhor, para poder ser mais fiel.
Contudo, não vivo esta minha infidelidade de uma forma doentia, ou desesperada, bem pelo contrário, ela faz-me ter consciência da fidelidade a que Deus me chama, de quanto estou ainda longe, e a procurar cada dia mais a sua misericórdia e o seu amor. Faz-me também ter consciência de como sou um instrumento, de como me devo considerar um instrumento nas mãos de Deus, de como Deus vai agindo através de mim e portanto devo estar disponível com o que sou e o que tenho.
E é na Eucaristia, que celebro cada dia, que vou descobrindo como o Senhor engrandece e glorifica este seu servo, que se apresenta de cada vez apenas com o pouco que tem e é. Cada vez que penso nisso, fico apreensivo, porque de facto não acabo de dignificar o mistério que celebro. Em cada Eucaristia é o corpo do Senhor que tenho em minhas mãos, o corpo que Maria acarinhou, que José contemplou no berço, que esteve pregado na cruz para minha salvação, o corpo que Maria Madalena quis tocar na manhã de Páscoa e não pôde, o corpo glorioso que Tomé foi convidado a tocar. Em cada Eucaristia, pela invocação e poder do Espírito Santo esse corpo faz-se presente nas minhas mãos, Deus torna-se alimento para todos os que o receberem. Haverá poder maior que fazer Deus presente? E mais ainda quando nos sabemos pecadores?
Às palavras “isto é o meu corpo entregue por vós”, estremece-me o coração, porque estão ainda bem longe da minha vida quotidiana, da minha fidelidade essas palavras de Jesus. E o sacerdócio cristão não é entregar o nosso corpo em alimento, ser pão de vida para os outros, encarnação do amor de Deus?
Aproxima-se a hora da Eucaristia comunitária, que presidirei e na qual darei graças ao Senhor por tudo o que me concedeu. Nela pedirei também que o Senhor grave no meu coração, como um selo, o seu amor, porque só o amor é forte como a morte, só o amor pode vencer a morte, qualquer que ela seja.
Respondi ao desafio do frei Filipe, mas ao fazê-lo é porque acredito que todos participamos da mesma vida e a nossa partilha e oração fraterna pode dar frutos insuspeitáveis nas nossas vidas. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

Tu segue-me! (Mt 9, 9)

Passa-se tudo demasiado rápido, num ápice. A passagem de Jesus diante da banca de cobrança de impostos, um olhar, e imediatamente uma ordem, “segue-me”. E Mateus seguiu-o deixando para trás tudo o que fazia e tinha.
Na pintura de Caravágio a velocidade do relato evangélico é como que suspensa, e vemos como em câmara lenta tudo o que se passou. Jesus não está de passagem, não é à beira do caminho que encontra Mateus, mas dentro da sua casa, do seu posto de cobrança, encerrado como numa fortaleza, onde a janela é a única fonte de luz. No entanto, e ainda aí, nessa profana fonte de luz a presença das traves que marcam a cruz. Não é o seguimento o carregar a cruz? Com fé ou sem fé a cruz está lá, presente, enquadrando as perspectivas que por vezes não se alcançam.
Sentado num canto, debruçado sobre a mesa e contando as moedas, está Mateus, envolto na escuridão que quase não permite ver-lhe as feições. Parece alheado de tudo, como se o dinheiro que tem diante dos olhos já não lhe preenchesse a existência. Olha, mas não vê, e para aquele que tem diante de si, que lhe invadiu a casa, não consegue olhar. Mateus está afundado, atolado numa realidade que o distancia de tudo e de todos, até mesmo daqueles que ao seu lado parecem intrometer-se no meio do chamamento. Nos rostos e nas mãos de todos a surpresa e a interrogação. Como é possível chamar aquele homem, como é possível convidá-lo a deixar o seu posto de lucros e rendas? A espada à cintura de um dos companheiros deixa suspeitar a violência, a extorsão e a exploração dos mais pobres e indefesos. Estão todos condenados à escuridão.
No lado oposto e entrando nessa escuridão como um raio de luz, uma nova vida banhada de luz, Jesus, aquele que tem a autoridade para lhe ordenar “segue-me” e para lhe esticar a mão, como um arpão que se lança para colher um grande peixe. Também o seu corpo parece escondido na escuridão e apenas o rosto jovem e cativante se destaca, um rosto que atrai pela força e pelo amor. O corpo é perecível e portanto pode ocultar-se, mas o rosto é eterno porque é relação e assim deve reconhecer-se.
Segue-me, deixa que te salve dessas trevas do erro e da violência, que te traga à luz que jorra daquele que me enviou a chamar-te, segue-me porque necessito de ti para que contes a minha história, a minha história de amor, por ti, por estes e por todos os homens. Segue-me porque há um banquete a celebrar em tua casa, um banquete em que uma vez mais será anunciado que Deus prefere a misericórdia aos sacrifícios, ainda que isso escandalize aqueles que se julgam puros e perfeitos.
Aos nossos postos de cobrança, às nossas secretárias e mesas de trabalho, tantas vezes envoltas também nas trevas da exploração e da violência, chega o chamamento de Jesus, “segue-me”. Necessitamos erguer-nos como Mateus, acolher o convite, celebrar o banquete e depois contar a nossa história de Jesus, ou da presença de Jesus na nossa história. Não será a nossa vocação a de evangelistas, de contadores da história de Jesus, de histórias com Jesus?

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A cura do paralítico (Mt 9,1-8)

Jesus regressa a Cafarnaúm e apresentam-lhe um paralítico para curar, espera-se mais um milagre, pois é gente com fé que traz e apresenta aquele que jaz na enxerga.
Contudo, a proposta de Jesus, o milagre que deseja realizar, vai mais fundo, toca na essência mesma da situação de paralisia, e por isso diz “filho os teus pecados estão perdoados”. É o pecado que paralisa, é o pecado que nos retêm cativos na enxerga da nossa condição, e Jesus quer-nos libertar daí, quer-nos curar dessa enfermidade.
Então, tudo se confunde na fé daqueles que apresentam o paralítico e no coração dos escribas que assistem. Não era um perdão dos pecados que buscavam aqueles que apresentam o paralítico e os escribas tão pouco era isso que esperavam, porque de facto e de acordo com a sua tradição só Deus podia perdoar os pecados, de Jesus esperava-se apenas a cura e o milagre.
Um equívoco, um confronto com as expectativas, e a revelação de que aquele homem que fazia milagres tinha também o poder de perdoar os pecados, de ir até à origem do mal pois era Deus presente entre os homens. Então a ordem, “levanta-te, toma a tua enxerga e vai para casa”.
A visibilidade da cura física para nela transparecer a cura espiritual, porque o perdão dos pecados não se vê mas é ele que permite carregar a enxerga da nossa condição e regressar à casa da vida quotidiana com saúde.