sexta-feira, 30 de abril de 2010

Aguardando a partida de Pamplona para Roncesvalles

Estou em Pamplona, aguardo que chegue o autocarro para nos levar até Roncesvalles, de onde amanhã de manhã iniciarei a peregrinação.
Na estação rodoviária vários peregrinos aguardam como eu o momento de partida e ao ver tanta gente interrogo-me se conseguirei ter o silêncio e a tranquilidade que vinha à procura.
Espero que sim, que Deus o permita, porque desejo muito este tempo para me encontrar com Ele através desta caminhada.
O tempo está ameno pois estamos perto dos Pirinéus e ainda faz fresco, mas ao almoço quando me cruzei com os peregrinos que chegavam à cidade alguns deles vinham mesmo cansados pelo calor que no momento se fazia sentir.
Entre o almoço e a hora de estar aqui aproveitei para visitar a catedral de Pamplona e os seus claustros. Acabei por tirar algumas fotografias, nomeadamente uma de São Domingos e outra de São Tomás que estão num altar da catedral. Os nossos maiores não deixam de me atrair.
A hora de partida aproxima-se e tenho que me ir aproximando para colocar a minha mochila na bagageira. Há vàrias bicicletas para carregar e isso leva sempre algum tempo.
Não sei se amanhã terei oportunidade de escrever alguma coisa, porque vou pernoitar numa pequena aldeia e não sei se por ali há internet livre como há aqui. Logo verei.
Que o Senhor venha em nosso auxílio e nos ajude e ilumine como fez com Santiago.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Caminho de Santiago - Partida

Estamos de partida para fazer o Caminho francês de Santiago. Um mês ou quase a andar desde Roncesvalles até Compostela. A ansiedade de colocar os pés no caminho é grande.
Aqui ficam os irmãos, os amigos, a familia, todos pedem que reze por eles nesta peregrinação.
Que o Senhor Jesus nos proteja e nos ajude a vencer os metros de cada passo. E nos ilumine nesta nossa busca de matar a sede que trazemos em nós.
Por Santiago aqui vamos!
Ultreya!!!

Benção dos Peregrinos a Compostela


Benção dos Peregrinos

Oh Senhor, por cuja palavra todas as coisas ficam santificadas, nós te pedimos que abençoes esta mochila e este bordão de peregrinação, para que este peregrino que os vai levar, possa chegar incólume ao sepulcro do Apóstolo Santiago, ao qual se dirige, por Jesus Cristo nosso Senhor.

Recebe esta mochila em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo: carrega com ela e que a fadiga corporal de levá-la te sirva de expiação pelas tuas faltas, para que arrependido delas, possas chegar animado ao sepulcro do Apóstolo e, terminada a peregrinação, regresses feliz a tua casa. Por Jesus Cristo, nosso Senhor.

Recebe este bordão, para que te sirva de apoio no caminho e te alivie das dificuldades da caminhada; ao mesmo tempo que o possas usar como defesa nos perigos, para que um dia, são e salvo, chegues ao sepulcro do Apóstolo e, terminada a marcha, voltes incólume à tua morada. Por Jesus Cristo, nosso Senhor.

Oremos:
Senhor Jesus Cristo, que nos ensinas por intermédio de São Paulo, que não temos aqui morada permanente, mas que devemos procurar a morada futura, atende as súplicas que te fazemos humildemente em favor de este teu servo, que acabamos de investir como peregrino.

Que o Espírito Santo infunda em seu coração a graça para que, penetrando no seu interior, se avive a sua fé, se fortaleça a sua esperança e se acenda a sua caridade, a fim de que faça a peregrinação com verdadeiro espírito de penitência, sacrifício e expiação. Que purifique a sua mente de todo o pensamento supérfluo, defenda o seu coração e o assista com continua consolação, para que por tua bondade e do Pai possa chegar incólume ao fim da viagem, e pela peregrinação que hoje começa mereça alcançar um dia a eterna Jerusalém. Tu que vives e reinas pelos séculos dos séculos.

Oh Deus, que tirastes o teu servo Abraão da cidade de Ur dos Caldeus, guardando-o em todas as suas peregrinações, que foste o guia do povo hebreu através do deserto: nós te pedimos que te dignes guardar este peregrino que por amor do teu nome vai a Compostela. Sê para ele companheiro na marcha, guia nas encruzilhadas, alento no cansaço, defesa nos perigos, albergue no caminho, sombra no calor, luz na escuridão, consolo no desalento e firmeza nos seus propósitos. Que por tua orientação chegue incólume ao fim do seu caminho, e enriquecido de graça e virtudes, volte de regresso a sua casa, que agora sente a sua ausência, cheio de perene alegria. Por Jesus Cristo, nosso Senhor.

Que o Senhor dirija os teus passos com o seu beneplácito e seja teu companheiro inseparável ao longo de todo o caminho.
Que a Virgem Maria te dispense a sua maternal protecção, te defenda nos perigos da alma e do corpo, e debaixo do seu manto mereças chegar incólume ao final da tua peregrinação.
Que o Arcanjo Rafael te acompanhe ao longo do caminho como acompanhou Tobias e afaste de ti todo o incómodo e toda a contrariedade.
E que a bênção de Deus Todo-poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo desça sobre ti e te acompanhe sempre.
Em nome do Senhor, Ultreya!

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Mandamentos do Peregrino a Santiago de Compostela

Mandamentos do Peregrino
Inscritos num mural no Albergue “Gaucelmo”, em Rabanal del Camino, Astorga

1 – O Caminho de Santiago não é uma maratona nem uma pista onde se coloca à prova a resistência física. É sim um banco de ensaios para a tua humildade e uma lição realista das tuas possibilidades humanas e espirituais.

2 – O autêntico Caminho é aquele que cada um vai fazendo por dentro. Esse pode fazer com que te encontres a ti mesmo e transformes toda a tua vida.

3 – É necessário entender que o tempo é um dom de Deus. É-nos dado para saber medir os minutos por uma velocidade de 5 km hora.

4 – Optimismo e alegria, sinceridade e simplicidade, capacidade de sacrifício e de contemplação, abertura aos outros e delicadeza, solidariedade e limpeza são qualidades de um autêntico peregrino jacobeu.

5 – O equipamento mais importante é a tua atitude de busca…

6 – Inicia o Caminho sem nenhum tipo de preconceitos. Nem sobre os teus irmãos de outras nações, nem sobre as simples gentes dos povoados, nem sobre as raízes religiosas de cada um. Sobretudo sê humilde e livre. Não esqueças que em qualquer ponto do Caminho te podes encontrar com Deus. Em realidade, Ele é o teu companheiro de caminho.

7 – Um peregrino que não tem a capacidade de admirar e ler os acontecimentos mais simples não pode perceber o fundo surpreendente e belo das coisas.

8 – Abre bem os olhos à beleza da paisagem, e da arte, a quem te oferece hospitalidade, à gratuidade e gratidão. A contemplação das estrelas com um são humanismo faz gente do caminho e almas de Deus.

9 – Durante a peregrinação não te feches em ti mesmo. Faz do teu caminhar um encontro constante. Sai de ti e comunica-te. Exprime a tua experiência, defende com fidelidade e respeito as tuas certezas e vivências, superada que foi toda a fronteira.

10 – Respeita a natureza, pode ensinar-te muito. Tu formas parte dela e estás chamado a ser o porta-voz que canta a sublimidade da criação e do seu Criador.

11 – Às vezes, uma canção no Caminho dará fortaleza aos teus pés cansados. Em outras ocasiões o silêncio será o melhor canto para repensar a tua vida em profundidade. Que “ no silêncio o coração respira”…

12 – Fala com letrados e camponeses com humildade e respeito. Respeita a história dos velhos tempos. Aprende com todos.

13 – Se alguém te faz mal ou não te acolhe, sorri em silêncio. Sentir-se excluído ou abandonado dói, mas em algumas ocasiões pode oferecer-te uma cura benéfica de humildade. Assim terás experimentado na tua carne o que muitas vezes fazemos com os pobres.

14 – Ao chegar a Compostela abraça no Apóstolo a fé de Santiago, o intimo do Senhor. Reza-lhe suplicando e dando-lhe graças. Algum gozoso compromisso se terá que forjar. A tua consciência te dirá o quê.
Ultreya! Ou seja, há que continuar mais além…

terça-feira, 27 de abril de 2010

Homilia Domingo IV da Páscoa


A imagem do pastor, e do bom pastor, é nos apresentada pelo Evangelho deste quarto domingo do tempo pascal, uma imagem que para muitos, sobretudo para os mais novos, se pode tornar estranha, desconhecida, pois a nossa vida urbana e a cada vez maior industrialização da agropecuária tem levado ao desaparecimento desta profissão. Não surpreende por isso que, quando um jovem de dezasseis anos numa aldeia do norte diz que quer ser pastor, seja objecto de uma reportagem de um qualquer telejornal, como aconteceu ainda há pouco tempo.
No tempo de Jesus era uma tarefa comum, porque não só havia os pastores, aqueles que profissionalmente guardavam os rebanhos dos grandes senhores e proprietários, como também cada um, no seu ambiente familiar, fazia essa experiência, pois cada família tinha a sua ovelha ou a sua cabra e era necessário levá-la a pastar. Até há poucas décadas atrás em muitas famílias e meios rurais portugueses passava-se o mesmo.
Assim, quando Jesus fala do pastor e do bom pastor os seus ouvintes sabem do que está a falar, têm os mesmos referenciais, para além dos referenciais espirituais e religiosos que também lhes eram comuns. As pastagens verdes e as fontes cristalinas dos Salmos são apenas dois exemplos do muito que podiam ter como referência.
Mas na leitura deste quarto domingo, um trecho do extenso capítulo décimo no qual São João desenvolve esta imagem do pastor, importa salientar o ênfase que Jesus dá à voz, como ela é importante nesta relação do pastor com as ovelhas e do seguimento das mesmas atrás do pastor.
Em outras passagens do Evangelho de São João, Jesus assume-se como a Palavra do Pai, a Palavra que habitava junto do Pai e pela qual tudo tinha sido criado no princípio do mundo. Na criação essa Palavra fez-se voz, uma voz que ainda hoje ressoa aos nossos sentidos, mas que de alguma forma nos distrai da mensagem que veicula, tal é a sua diferença e diversidade. A imagem da expulsão do jardim do paraíso pode muito bem significar essa nossa perda de sintonia com toda a obra criadora e a Palavra que lhe está subjacente.
Por esta razão e para que não nos perdêssemos, desgarrássemos na noite escura dos nossos sentidos, a Palavra fez-se carne e veio habitar entre nós, uma vez mais fez-se voz para que a pudéssemos ouvir. A voz fez-se como nós, assumiu a nossa natureza para que não houvesse interferências nem perturbações na comunicação nem na mensagem que nos transmite, para que a escutássemos em verdadeira qualidade.
Por essa razão Jesus diz que conhece as suas ovelhas e conhece-as pelo seu nome. Conhece-as na medida em que se fez homem como nós, portanto conhece-nos nas nossas limitações e infidelidades, mas também nas nossas virtudes e aspirações de fidelidade; e conhece-nos pelo nosso nome, porque somos seus irmãos e obras da sua mão criadora, e também na medida em que escutando a sua voz nos colocamos em situação de uma relação pessoal e de intimidade com ele.
Escutando a sua voz e seguindo-o entramos num processo que conduz à vida eterna, um processo de salvaguarda, pois Jesus diz que ninguém poderá arrebatar da sua mão aqueles que o escutam, que escutam a sua voz, e o seguem, pois foi o Pai que lhos entregou.
Estas palavras de Jesus, esta garantia, devia deixar-nos uma liberdade de espírito que não é comum em nós, que não é frequente, bem pelo contrário até parece bem rara. Continuamos a infligir-nos sofrimentos, a carregar com pesos de culpas e pecados, esquecidos de que escutando a voz do pastor e seguindo-o já não somos nós que carregamos com essas culpas e esses pecados, pelo contrário, somos carregados aos ombros para que não fiquemos para trás, para que não nos sintamos abandonados nem sem forças para continuar. E quando nos desgarramos nas nossas infidelidades, cheios do pasto que encontramos pela frente, confiantes na protecção da nossa camada de lã, o pastor não desiste de nós e vem ao nosso encontro, vem em nossa busca. Não porque nos queira encerrar no aprisco, nos queira presos, mas porque quer que o sigamos e que nenhum de nós se perca. Ele segue à frente para nos mostrar o caminho, para espantar os lobos e nos defender de qualquer ataque.
No Cântico dos Cânticos a amiga do pastor amado pede que lhe indique o local onde leva a apascentar o rebanho e onde se recolhe ao meio-dia, para não andar errante atrás dos outros. O pastor recomenda-lhe que saia no encalço do rebanho e apascente as suas cabrinhas junto às cabanas dos pastores. É uma recomendação que também nos serve a nós, porque só nos podemos encontrar e seguir o verdadeiro pastor no encalço do conjunto do rebanho, ou seja, no corpo que é a Igreja, e apascentando as nossas cabrinhas, ou seja aquelas que são ainda as nossas dimensões menos purificadas, junto das lições e exemplos, dos textos e palavras, que nos são dados pelos pastores, por aqueles que de alguma fizeram já a experiência de passar pela porta que é o Pastor, o Caminho, a Verdade e a Vida.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Homilia Domingo III da Páscoa

O Evangelho deste terceiro domingo do tempo pascal apresenta-nos aquela que segundo o Evangelho de São João foi a terceira e última aparição de Jesus aos discípulos depois da ressurreição. É um relato demorado, cheio de pormenores que convém apontar e iluminar para se perceber a totalidade da mensagem que lhe está subjacente.
Assim, e antes de mais, temos que ter presente que este relato compõe o capítulo vinte e um do Evangelho, um capítulo que aparece como um acrescento, um post-scriptum ao Evangelho, pois nos versículos anteriores o autor tinha já dado por concluída a narração dizendo que muitos outros sinais havia mas que não estavam escritos neste livro.
Este capítulo e aparição inserem-se assim numa conjuntura diferente e por isso a centralidade de Pedro em todo o relato. A questão e a base que sustentam a primeira parte do relato desta última aparição de Jesus são a vida da Igreja, os primeiros esforços de evangelização e consequentes frutos.
Numa linguagem simbólica é-nos apresentada a vida da Igreja, uma vida cheia de esforços, mas que aparece como uma noite, e uma noite sem frutos, sem resultados apesar de tantos esforços dispendidos. Por isso saíram a pescar e regressaram sem nada. Só à palavra do Senhor, à ordem de lançar a rede encontraram algum peixe, ou todos os peixes que era possível encontrar, cento e cinquenta e três grandes peixes que significam os povos que à data eram conhecidos e reconhecidos como povos.
Perante esta pesca milagrosa o discípulo predilecto reconhece Jesus caminhando nas margens do lago, ou seja à margem do que era o esforço que estavam a despender. De alguma forma eles tinham-se distanciado dele, tinham-no deixado na margem esquecido. E a referência de que tinham voltado às suas casas e à sua vida do dia a dia era disso significado. Eles continuavam aferrados e fechados nos seus esquemas mentais e culturais, tinham regressado ao ponto de partida, àquele momento em que tinham conhecido Jesus e naquelas mesmas margens tinham deixado os barcos para o seguirem e verem onde morava. Era necessário de novo seguir Jesus.
Ao saber que era o Senhor que estava nas margens do lago Pedro veste a túnica que tinha tirado e lança-se às águas. Inevitavelmente temos que associar este lançar-se às águas ao convite de Jesus a caminhar sobre as águas, um convite feito algum tempo atrás e no qual Pedro tinha falhado por ter duvidado. Agora tal não acontece, ele veste a túnica da fé em Jesus que tinha tirado confiando apenas em si e nas suas forças e lança-se às águas sabendo que pode caminhar sobre elas. Agora a fé permite-lhe chegar ao Senhor sem temor e sem duvidar.
E o Senhor tem preparado para eles o fogo e a comida, o Espírito Santo e a Eucaristia, fontes da força para a missão a que estavam destinados e tinham sido chamados. São estes dois elementos aqueles que alicerçam a faina e podem dar bons resultados finais.
Terminada a refeição encontramo-nos com aquele que é o mais sublime dos diálogos de Jesus, um diálogo em que Jesus faz uma pergunta a Pedro que antes nunca tinha feito a ninguém. Antes da paixão e da sua morte tinha perguntado se acreditavam nele, quem diziam os homens que ele era, quem dizeis vós que eu sou, mas jamais tinha perguntado se alguém o amava, se eles o amavam. Tal pergunta não podia ser feita porque era necessário provar primeiro o seu amor para poder perguntar por ele. Era necessário que Jesus padecesse por amor, morresse e ressuscitasse, que desse a conhecer a totalidade do seu amor, para poder perguntar pelo amor dos outros.
E para compreender o sentido último das perguntas de Jesus e do diálogo temos que ter presente que o verbo (agapau) que no original grego Jesus utiliza para perguntar é diferente daquele que Pedro usa (filéu) para responder. Assim, quando Jesus pergunta pela primeira vez se Pedro o ama mais que os outros a resposta de Pedro na forma mais original é: Senhor tu sabes que eu gosto muito de ti.
Quando Jesus volta à carga e lhe pergunta pela segunda vez se o ama, Pedro responde novamente que gosta muito dele. E perante isto Jesus volta novamente a perguntar, mas só que nesta terceira vez Jesus já não pergunta se Pedro o ama, pergunta-lhe usando o mesmo verbo se ele gosta muito dele.
E perante esta condescendência de Jesus, perante mais este abaixamento, Pedro responde-lhe inevitavelmente que sim, que gosta muito de Jesus, que ele bem o sabe.
É sublime este descer de Jesus à capacidade de amar de Pedro, capacidade que é como a nossa, pois não sabemos amar como Jesus nos amou, sabemos apenas amar na nossa forma mais humana e tantas vezes infectada de desejos menos puros, de aspirações menos livres. E Deus vem até aí, desce até aí para nos mostrar que nesse amor ele está presente, se quer fazer presente para o transformar num amor parecido com o seu, um amor total.
Mas porque este amor pode tender e cair numa ilusão, pode ser uma forma alienante, a cada resposta de Pedro é-lhe dada a incumbência de cuidar das ovelhas e dos cordeiros. O amor a Deus realiza-se e traduz-se no amor e nos cuidados dos irmãos, porque não há amor divino sem caridade pelos outros, não há fé sem obras.
Face a estas perguntas de Jesus, perguntas que se dirigem a cada um de nós, resta-nos a tentativa de viver as palavras da jaculatória “Doce coração de Jesus que tanto me amais fazei que eu vos ame sempre e cada vez mais”.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Carta de Santa Catarina ao Arcebispo de Otranto - Fim

Coragem portanto, não adormeçais, levantai a bandeira da santíssima Cruz. Contemplemos o Cordeiro imolado por nós e cujo corpo sangra por todas as partes. Ó doce Jesus, quem te obrigou a derramar com tal abundância? O amor que tu nos tens e a aversão ao pecado, me respondes tu. Ele deu-nos o seu sangue misturado com o fogo da caridade. Apoiemo-nos nesta árvore, e sigamos com ele o caminho direito. Alegremo-nos porque todos os nossos inimigos se tornaram fracos e doentes, graças ao doce filho de Maria, o Filho único de Deus. O demónio está enfraquecido, ele não pode mais exercer o seu império sobre o homem. A nossa carne, que o Filho de Deus nos tomou emprestada, foi flagelada pelos opróbrios, o suplício, as injúrias, pelo que desde que a alma contempla esta carne, ela deve imediatamente renunciar a revoltar-se.
Os louvores ou as injúrias dos homens não a atingirão se tomar por modelo o doce Jesus, que apesar de todas as injúrias, da nossa ingratidão, das nossas adulações, não renunciou à obediência para glória do Pai e para nossa salvação; a glória do mundo será portanto destruída pelo desejo e o amor da glória de Deus.
Lançai-vos portanto neste caminho. Alimentai-vos e deleitai-vos de almas, a exemplo da primeira e doce Verdade e do bom Pastor que deu a sua vida pelas suas ovelhas. Sim, trabalhai prontamente pela honra e a exaltação da santa Igreja; não temais nada do que surgiu ou que possa surgir, são outras tantas armadilhas que vos tende o demónio a fim de travar as vossas santas e boas resoluções e para vos impedir de terminar o que foi começado. Acreditai que ele pressente a sua desgraça!
Fortalecei-vos e fortalecei o nosso Santo Padre, não temais nada e agi virilmente, sem descanso. Fazei de maneira que eu sinta e veja que vós sois uma coluna inabalável e que nenhum vento jamais poderá sacudir-vos. Falai livremente e sem medo e dizei a verdade sobretudo naquilo que vos parece concorrer para a glória de Deus e a reforma da santa Igreja. Não temos nós mais que esta vida? Então, sacrifiquemo-la mil vezes, e mais se for necessário, e suportemos as penas e as flagelações por amor de Cristo que arde de amor, ao ponto de se aniquilar para glória do Pai e para nossa salvação.
Não direi mais nada, meu Pai; se ele não tivesse mais ninguém, então não pararia jamais. Experimentei uma alegria imensa ao dar-me conta, pelos vossos cuidados, da chegada do Cristo da terra e o começo da santa Passagem. Que o que chegou não abrande o vosso ardor, não vos deixeis vencer pela desordem, vós e o Santo Padre, é na adversidade que todas as coisas se farão.
Soube que o Mestre[1] da nossa Ordem deverá ser nomeado cardeal. Eu vos peço, pelo amor de Jesus crucificado, defendei os interesses da Ordem e pedi ao Cristo da terra que nos dê um bom vigário. Gostava que falásseis do mestre Estêvão de la Combe, que foi Procurador da Ordem da Província de Toulouse. Se ele for escolhido, creio que será uma grande honra feita a Deus e a nossa Ordem poderá finalmente ser reformada, pois parece-me que é um homem viril, virtuoso e sem temor. Actualmente nós temos necessidade de um médico que não tenha medo, e que use da lâmina da santa e direita justiça; até ao presente temos usado tanto de unguentos que os nossos membros estão quase todos apodrecidos.
Escrevi uma carta sobre este assunto ao Santo Padre, sem no entanto lhe sugerir nomes, simplesmente lhe pedi que nos desse um bom vigário, e que falasse consigo e com o monsenhor Nicolau d’Osimo. Se acreditais que o frei Raimundo vos pode ser útil neste assunto, ou por qualquer outra razão, escrevei-lhe e ele rapidamente se colocará ao vosso serviço. Não direi mais nada. Permanecei na santa e doce dilecção de Deus. Gerardo Bonconti, que se julga vosso indigno servidor, recomenda-se aos vossos bons pensamentos, bem como a minha mãe que vos quer como um pai. Doce Jesus, Jesus amor.

[1] O Mestre da Ordem era então frei Elias de Toulouse. Não foi nomeado cardeal como temia Santa Catarina e continuou a governar a Ordem até 1380, quando foi deposto do ofício por ter seguido o partido de Clemente VII. Morreu em 1390. Depois da deposição foi frei Raimundo de Cápua, a quem também Santa Catarina se refere nesta carta, que governou a Ordem e procedeu à reforma que ela tanto desejava.

Ponte das Febres de São Telmo em Tuy

Situa-se mais ou menos a quatro quilómetros da cidade de Tuy e é conhecida por “Ponte das Febres”. Para aqueles que já fizeram o Caminho Português a Santiago é conhecida, pois por aqui se tem que passar no percurso entre Tuy e Porriño.
Hoje é uma pequena passagem de madeira sobreposta sobre o que resta do arco de pedra da antiga ponte que ligava as duas margens. No inverno e na primavera ainda corre alguma água por debaixo da ponte, mas no verão encontramos apenas um leito seco e triste.
Junto à ponte e assinalando o lugar onde o Beato Pedro Gonçalves, São Telmo, se sentiu doente e incapaz para continuar o caminho de regresso a Santiago, encontramos um cruzeiro e uma coluna em granito fazendo memória do acontecimento. São monumentos singelos, inseridos numa paisagem marcada pelo verde fresco do vale.
Em 2004, por altura da Semana Santa, encontrava-se ao nascer do dia como a imagem ilustra. Como peregrino a Santiago e dominicano foi obrigatório fazer uma fotografia.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

São Telmo, Beato Pedro Gonçalves

Foi em Fromista, uma pequena cidade da Terra de Campos, Palência, Espanha, que nasceu Pedro Gonçalves. Educado por um tio na cidade de Palência, aí fez os estudos gerais na mesma universidade que anos antes São Domingos de Guzman tinha frequentado.
Ordenado presbítero pelo tio bispo rapidamente se viu instituído do título de Deão da catedral da cidade, ainda que a idade não garantisse a maturidade necessária para tal ofício. Razão pela qual no dia da tomada de posse, depois de todas as diligências junto de Roma para garantir benefícios e rendimentos, passeou pela cidade com a maior pompa e vaidade.
Foi neste passeio pomposo que a graça divina fez a sua intervenção, pois uma queda do cavalo num charco de lama, e a humilhação consequente, levou-o a abandonar todas as dignidades de que tinha sido instituído e a procurar o pobre convento dos dominicanos que há poucos anos se tinha fundado na cidade.
Foi a surpresa geral para todos os que o conheciam ver a sua austeridade de vida, a sua pobreza, a oração constante e o estudo da Sagrada Escritura a que de novo se dedicava com afinco. Rapidamente se dedicou à pregação colhendo nas regiões de Castela, Galiza e norte de Portugal os frutos desse trabalho.
Devido à sua virtude e fama de pregador foi escolhido por Fernando III de Castela para acompanhar os exércitos reais numa campanha militar a Sevilha e Córdova. Terminada a campanha regressou à Galiza onde continuou a desenvolver a sua missão de pregador. Residindo no Convento de Santiago de Compostela percorria toda a região pregando e administrando os sacramentos. Foi em Tuy que terminou os seus dias.
Conta a tradição que “passado o dia de Páscoa caiu enfermo, e conhecendo ser esta a última doença, quis retirar-se ao Convento de Compostela, porque ainda o não tinhamos em Tuy. Principiou a jornada, mas tendo andado pouco caminho lhe faltaram de todo as forças, e vendo que não podia passar adiante, disse ao companheiro: ‘Filho já conheço ser vontade de Deus, que os meus trabalhos tenham fim nesta cidade, donde saímos, convém voltarmos a ela’. Voltaram para Tuy e agravando-se o mal pediu os sacramentos que recebeu com grande devoção. Chamou depois o hóspede, que o tinha em casa e disse-lhe: ‘Irmão, o piedoso Senhor, que nos dá sempre mais do que nós merecemos, quer pagar-me com prémio eterno estas pequenas fadigas. É vontade sua que eu morra nesta cidade porque me quer fazer protector dela. Quisera também pagar-vos a caridade que tendes usado comigo. Mas que pode dar-vos um pobre religioso? Tomai este meu cingidoiro e guardai-o que um dia vos servirá’. Feita esta diligência pôs os olhos em uma imagem de Cristo que tinha nos braços e entre afectuosos colóquios lhe entregou a alma no oitavo dia da Páscoa de 1246. Foi o seu corpo sepultado na igreja Catedral onde até ao presente está em sumptuoso sepulcro que o famoso historiador e bispo da mesma Sé D. Lucas lhe mandou fabricar, pela grande devoção que lhe tinha.”[1] Bonita capela que ainda hoje se encontra na catedral.
[1] LIMA, Frei Manuel de – Agiológio Dominico, Tomo II, Lisboa, Oficina de António Pedrozo Galrram, 1710, 71.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Carta de Santa Catarina de Sena ao Arcebispo de Otranto - Continuação

Tal é a verdadeira luz e o conhecimento de que a minha alma vos deseja ver colmado, vós, meu pastor e meu pai, afim de que ardendo dum imenso fogo de amor, os prazeres, as delicias, o poder ou as honras do mundo não possam escurecer esta luz, e que as penas, as tribulações, os ladrões não vos impeçam em nenhum caso de seguir esta doce via.
Nós não devemos jamais deixar de nos contemplar no Verbo incarnado, o Filho único de Deus, que por nós foi a via e a regra, de que a observação nos dá para sempre a vida. Ó meu pai, desejo que não sejais aprisionado pelas tentações e as armadilhas do demónio; estão tantos espinhos semeados sobre o vosso caminho para vos impedir de ir mais além. Nem mais pelo aguilhão da nossa carne, que combate e se revolta sem cessar contra o espírito, tal como um inimigo perverso, o qual não se deixa nunca distanciar e caminha sempre ao nosso lado. Nem mesmo por esses ladrões e esses demónios incarnados nas criaturas que procuram constantemente roubar-nos a honra e a paciência por meio das injúrias e as perseguições que nos infligem. De facto, eles comportam-se como demónios opondo-se às santas e boas resoluções dos homens que querem agir para a honra de Deus. Não contentes com o mal que se fazem a si próprios, fazem-no aos outros. Perseveremos portanto com coragem no nosso caminho e fortaleçamo-nos: nós podemos tudo por Cristo crucificado.
Eu me alegro e exulto, considerando as armas poderosas que Deus nos deu e a fraqueza dos nossos inimigos; vós sabeis bem que nem o demónio nem as criaturas podem obrigar a vontade a cometer o menor pecado. A vontade é uma mão tão poderosa, que quando está armada da espada de dois gumes da aversão e do amor, nenhum inimigo é capaz de se defender de uma tal arma. Por mais forte que seja, será quebrado ou deitado por terra.
Ó inestimável e ardentíssima caridade, para que os cavaleiros que colocastes no campo de batalha pudessem combater virilmente, e nomeadamente os teus pastores que em razão dos cargos de que estão incumbidos são mais expostos que os outros, tu lhes destes a couraça da vontade, tão resistente que nenhum golpe a pode atingir, porque ela protege cada um e permite que cada um se defenda. Que aquele a quem Deus deu a espada da aversão e do amor se guarde de a colocar nas mãos do inimigo, porque então pouco importa a armadura, ele será ferido apesar da couraça.
Eu vejo, com efeito, que não há demónio nem criatura que me possa matar se não for com a minha própria espada; com esta mesma arma que me serve para o matar, me matará se lha ofereço. O que aniquila o vicio e o pecado? Somente a aversão e o amor o podem fazer, a aversão que concebo no pecado e o amor que concebo na virtude, por Deus.
Se o demónio e a sensualidade querem desviar esta aversão e este amor, ou seja fazer-vos odiar as coisas que são de Deus e amar a vossa sensualidade que, sem descanso, se revolta contra ele, mesmo que o demónio o deseje, ele não o poderá desde que a mão poderosa da vontade não lhe estenda a sua espada. Mas se a vontade lha estende, então o demónio a matará com a sua própria arma.
Pensemos em que medida Deus se sentirá afligido e que desgraça será para nós. Vós o sabeis, meu pai, vós sois pastor, e será portanto uma desgraça não somente para vós, mas para todos os que vos estão sujeitos; também cada uma das acções que vós empreendais, por vós e pela doce Esposa de Cristo, a santa Igreja, será entravada.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Carta de Santa Catarina de Sena ao Arcebispo de Otranto

Carta 183 de Santa Catarina de Sena
Ao Arcebispo de Otranto, Jacomo d’Itri

Em nome de Jesus Cristo crucificado e da doce Maria.
Meu querido e reverendo pai em Cristo Jesus, eu, vossa indigna filha Catarina, serva e escrava dos servidores de Jesus Cristo, escrevo-vos no seu precioso sangue, desejosa de vos ver um bom pastor, fiel a Cristo Jesus, na luz e no conhecimento da sua bondade.
Vós sabeis que aquele que caminha na noite com uma lanterna não tropeça; da mesma forma a alma que é iluminada por Deus não pode tropeçar, porque ela abre os olhos da inteligência e da razão, considerando o caminho que segue o seu doce Mestre.
De tal forma que, desde que ela descobre este caminho, pelo desejo e pela vontade que tem de seguir o Mestre, se lança nele rapidamente com zelo e sem negligência. Ela não pára para virar a cabeça, ou seja, para se olhar a si mesma. Pelo conhecimento que tem dos seus pecados e dos seus vícios ela vê-se perfeitamente, ela reconhece-se como não-ser, e conhece em si a infinita bondade de Deus que lhe deu todo o ser que ela possui. Tal é o conhecimento para o qual se deve voltar e onde sempre deve permanecer.
Eu digo que ela não deve voltar-se para se olhar a si mesma por amor-próprio, por complacência ou pelo prazer de qualquer criatura. Eu digo que a alma, iluminada pela verdadeira luz, não se volta por acaso; desde que ela se viu e encontrou a bondade de Deus empenha-se no caminho e percorre todas as vias que tomou o doce Jesus e os santos que o seguiram. Ela toma Jesus por modelo, ela deseja e ama tanto seguir a via directa para alcançar o seu objectivo, o seu doce fim, que ela não se importa nem dos espinhos, nem das tribulações, nem dos ladroes que a querem despojar; ela não se preocupa nem tem medo de nada; o que quer que seja que encontra no caminho não segue atrás. O amor retirou-lhe todo temor servil.
A alma caminha então nos passos daqueles que seguiram Cristo, ela vê bem e conhece que eles eram criaturas como ela, que eles foram saciados e alimentados da mesma maneira, porque a bondade e as liberalidades que ela encontra em Deus hoje são as mesmas das quais ele fez prova no passado.

Nicodemos veio de noite

Era um homem importante, pertencia ao Sinédrio, e não se sabe se por essa razão ou por outra qualquer mais obscura veio de noite ter com Jesus.
Trazia uma certeza, como também a tinham aqueles que compunham o grupo ao qual pertencia, estava diante e vinha falar com alguém singular, com alguém a quem reconhecia uma autoridade, um poder que só podia ser dado por Deus.
No entanto, e apesar dessa certeza e das provas milagrosas que lhe eram inerentes, queria mais alguma coisa, algo que a noite não deixa vislumbrar.
Também nós no meio das nossas certezas, na noite da nossa fé, buscamos uma resposta, uma comprovação ou confirmação e inevitavelmente chocamos com a mesma resposta que Jesus deu a Nicodemos, “quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus”.
E ficamos perplexos, como ficou aquele homem, porque sabemos como ele sabia que não podemos nascer de novo, não podemos voltar ao seio materno.
E novamente a resposta de Jesus nos abre a porta, nos dá a solução, “de facto ao homem é impossível mas a Deus não é”.
Necessitamos de facto de nascer de novo, em cada dia, em cada minuto, nascer de novo para a beleza de Deus, para o amor que faz girar o mundo, para a paz que nos possibilita o estender a mão ao outro e acolhê-lo na sua diferença e fragilidade. Necessitamos, mas só por nós não chegamos lá, é necessária a força e a graça do Espírito de Deus.
Na nossa noite, nessa busca de nascimento, enquanto caminhamos para a aurora, peçamos ao Senhor que venha ao nosso encontro, como Nicodemos foi ao seu, e na sua Palavra e no seu Corpo e Sangue nos ilumine os olhos e nos fortaleça na esperança da meta que nos espera.

domingo, 11 de abril de 2010

Homilia Domingo II de Páscoa

Oito dias passados sobre a ressurreição de Jesus, e depois de uma semana de relatos e leituras dos Evangelhos sobre as diversas aparições de Jesus aos discípulos, eis que nos encontramos hoje com o relato da aparição a Tomé e aos doze. É um relato que é uma prova, uma prova de fé, onde nos encontramos todos representados, simbolizados na figura e nos desafios de Tomé.
Nesta representação e simbólica são importantes as referências ao dedo e à mão, a essas partes do corpo humano que nos possibilitam o contacto e o conhecimento, que nos possibilitam o domínio da materialidade e o conhecimento sensível.
Assim, o dedo serve-nos para apontar, para indicar, para nomear, para acompanhar a leitura permitindo que não nos desviemos nem nos percamos nas linhas conjuntas das letras. Para as crianças e para muitos de nós é também o instrumento da prova, o dedo que metemos no molho para provar se está no ponto e com o tempero certo. Muitas vezes o dedo estendido serve também para acusar, para implicar o outro numa trama na qual não queremos estar sós e desprotegidos.
Ao convidar Tomé a colocar o seu dedo no lugar dos cravos que o tinham prendido à cruz Jesus convida a um conhecimento material, a um conhecimento sensível que já não era possível e por isso tinha proibido e impossibilitado a Maria Madalena na manhã de Páscoa quando diz que não lhe toque. Aqui, e apesar da diferença do convite, não deixamos de estar no mesmo contexto, não deixamos de estar na mesma proibição e por isso o convite é inviável, apesar de expresso e formulado por Jesus, é impossível de cumprir, pois a realidade de Jesus ultrapassa já a materialidade e portanto qualquer conhecimento da ressurreição e do ressuscitado não podem ser realizadas nem obtidas por essa via.
Por essa razão é que o evangelista narrador omite o pormenor do toque de Tomé do corpo de Jesus, ainda que pintores como Carravagio o representem. O desafio e a provocação de Jesus ainda que canalizados à materialidade dirigem-se à fé e por isso Tomé faz a sua afirmação “meu Senhor e meu Deus”. É como que um paradoxo, para que pela evidência da impossibilidade da materialidade possamos chegar à verdade do conhecimento da fé.
Porque o toque era inviável Jesus convida Tomé a colocar a sua mão no lado aberto, a fazer a experiência da verdadeira realidade que ele podia tocar e da qual podia usufruir e beneficiar, das graças obtidas pela sua paixão e morte. Daquele lado aberto tinha corrido sangue e água, nele tinham sido abertas as vias do verdadeiro conhecimento e do verdadeiro contacto e era aí que Tomé devia buscar o conhecimento e as provas que queria.
E por isso a mão colocada no lado aberto, a mão que acolhe o dom, a mão que dispensa os dons, a mão que acolhe o outro, que nos identifica porque não há duas mãos iguais. A mão que significa o poder, a força, que não podem deixar de estar embebidos do verdadeiro poder demonstrado na entrega do corpo para o sacrifício, nesse lado aberto por vontade própria para usufruto de todos. Mão que expressa a misericórdia alcançada de Deus por esse lado aberto e que deve estar desperta para exercer também a misericórdia. Mão que acaricia e que alenta.
E neste sentido e face a este convite cabe-nos olhar para as nossas mãos e verificar ao que as nossas mãos se agarram, o que acolhem e certamente até querem prender, reter apenas para si, para nosso proveito próprio. O dinheiro, o poder, os objectos, os outros que queremos e dizemos amar.
O convite de Jesus a Tomé é também um convite que nos é dirigido, um convite a que estendamos as mãos para as colocar no lado aberto, para que acolhamos os dons e as graças que nos advêm dessa água e desse sangue corrido do lado aberto, dessa fonte de vida onde todos podemos saciar a nossa sede. Não podemos por isso deixar de estender as nossas mãos e ainda mais quando sabemos que é por essa via, por essas realidades que podemos ter acesso ao conhecimento verdadeiro do Jesus ressuscitado, ao corpo glorioso de Jesus que nenhum sentido físico pode captar na sua natureza e substância.
Se o fizermos, absorvidos e integrados como membros vivos nessa realidade que é o Corpo Místico de Cristo, poderemos dizer com toda a certeza dos sentidos da alma “meu Senhor e meu Deus”.





quarta-feira, 7 de abril de 2010

Discípulos de Emaús

Foi ao partir do pão que o reconheceram, que reconheceram que aquele que tinha caminhado com eles ao longo do caminho, que lhes tinha explicado as Escrituras, era Jesus, o mesmo Jesus que eles conheciam e com quem tinham compartilhado outros caminhos, de quem tinham escutado tantas vezes explicações das Escrituras.
Foi ao partir do pão que o reconheceram, porque o partir do pão era uma realidade nova, única, especial. É verdade que o tinham visto multiplicar o pão para mais de cinco mil homens, que o tinham visto transformar a água em vinho numas bodas, mas o partir do pão daquela maneira só tinha acontecido uma vez, na última vez que tinham comido juntos e Jesus lhes tinha entregue o pão e o vinho como seu corpo e seu sangue.
Ao partir do pão tudo se clarifica, porque uma vez mais e feito pela mesma pessoa, pelo mesmo Jesus, esta partilha é um acto de amor e portanto reconhecível e identificável porque único.
Quando o reconheceram Jesus desapareceu, ficou o vazio da sua presença física mas o sinal da sua presença eterna, o sinal e a presença do seu amor e da sua vida entregue por todos homens. E como não é possível alegrar-se com tal presença, constante, eterna, acessível a todos?
Tal presença permite o regresso ao lugar do crime e da tragédia, a Jerusalém, porque há uma força e uma vida que explicam todo o sucedido, uma força que permite enfrentar todos os desafios e todas as dores, até a da perda daquele em que se acreditava.
Hoje a presença mantém-se, essa presença de amor e de vida que permite tantas viagens, tantos regressos e tantas forças para enfrentar os desafios. Contudo, como aqueles dois discípulos continuamos ainda presos à tragédia e à dor da ausência física, incapazes de ver o verdadeiro partir do pão e o milagre de amor que nos é oferecido.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Maria Madalena

Maria Madalena, a grande apóstola da ressurreição de Jesus, a que fez a maior e a mais intensa das experiências da ressurreição.
Num primeiro momento Maria Madalena está cega pela dor, pela perda de Jesus e busca no sepulcro o cadáver que não existe. As lágrimas que derrama pela perda do corpo amado não a deixam perceber a presença dos anjos que lhe anunciam a grande verdade da ressurreição. A dor e o sentimento de perda é demasiado grande e nada a pode consolar de nem sequer um corpo ter para o luto.
E eis que aparece um jardineiro, uma pessoa irreconhecível por causa da mesma dor da perda. A mesma cegueira da busca de um cadáver, de uma prova da morte, que não tem prova porque perdeu a batalha.
Um diálogo, duas perguntas e um desencontro pois Maria procura uma realidade material enquanto que o jardineiro busca uma relação, uma relação pessoal e íntima. O nome de Maria justapõe-se à questão de quem procuras, não do que procuras, porque o jardineiro sabe que não há nada para procurar, não há um quê, mas há alguém, alguém que pode dizer um nome, que pode dizer Maria. O nome é sempre uma relação, uma história pessoal e fraterna.
E Maria perdida em tudo isto, voltando-se e voltando-se e voltando-se na busca de uma resposta. Volta-se primeiro para dentro do túmulo onde encontra os anjos, volta-se para o jardineiro que aparece por detrás de si, e no fim volta-se novamente, e objectivamente não pode ser para mais nada senão para o sepulcro vazio, e aí, nele, descobre o Senhor ressuscitado, o seu Mestre e amigo ressuscitado. Há um processo de descoberta neste voltar-se e um encontro uma vez mais com uma relação que trespassa o nome pronunciado.
Em cada manhã de Páscoa também para nós somente um nome nos permite a percepção da ressurreição, só uma relação pessoal com aquele que se chama Jesus e nos chama pelo nosso nome próprio nos permite a certeza da fé na ressurreição. Não podemos por isso deixar de cuidar esta relação pessoal.

domingo, 4 de abril de 2010

Homilia do Domingo da Ressurreição do Senhor

Se olharmos para os muitos quadros que foram pintados sobre a ressurreição de Jesus, como o de El Greco ou o de Matthias Grünewald entre outros, encontramos nessas representações a figura de Jesus vitoriosa, luminosa, com o seu estandarte de vitória a erguer-se sobre a fuga apavorada dos guardas romanos, afinal uma revolução espacial e temporal que não deixa de nos impressionar.
Mais perto de nós o filme “A Paixão” de Mel Gibson termina a sua narração visual com a imagem de Jesus levantando-se do lugar onde tinha sido colocado no túmulo, deixando para trás as ligaduras e o sudário, que são os únicos elementos que nos aparecem nas narrações evangélicas.
Tudo o mais, tanto do filme como das pinturas não nos é apresentado pelos Evangelhos que mantêm em relação a este momento um silêncio sepulcral. Mas não podia deixar de ser de outra forma, porque de facto ninguém assistiu à ressurreição de Jesus, ninguém testemunhou este acontecimento único na sua vida e na vida da humanidade.
E era inevitável que assim fosse, porque a ressurreição de Jesus é a manifestação mais gloriosa de Deus e, como em tantas passagens do Antigo Testamento é dito, ninguém pode ver a glória de Deus e continuar vivo. Ninguém podia ver a ressurreição, porque ao vê-la perderia a vida e não poderia testemunhá-la.
E a ressurreição é também o acto mais supremo de amor, do amor de Deus, que restitui ao seu Filho a glória que lhe era devida, depois de ter suportado na carne da sua encarnação o peso da miséria humana e da sua infidelidade. A ressurreição é a transfiguração da nossa humanidade na divindade, uma nova criação à qual também ninguém podia assistir porque era um momento divino.
Por isso o que Maria Madalena, as outras Marias, João e Pedro encontram no sepulcro, onde tinha sido colocado o corpo de Jesus, é o vazio de uma outra realidade, são os sinais materiais de que algo de especial se tinha passado ali. Eles não viram a ressurreição de Jesus, e nem sequer o ressuscitado, viram apenas os sinais de que ele já não estava ali, que já não era, ainda que sendo, aquele que eles tinham conhecido.
Sinais que os deixaram confusos, perdidos sem saber muito bem o que pensar. Apesar do que viam eram incapazes de ver pois ainda não tinham compreendido, como nos diz o Evangelho de São João. Por isso quando Maria Madalena se cruza com Jesus apenas vê nele o jardineiro, é incapaz de o reconhecer, e mesmo Pedro quando vê os sinais regressa a casa meditativo, pensativo, fechado consigo próprio e com a incerteza da sua fé ainda por confirmar no Espírito.
É João, o discípulo mais jovem, aquele que chega primeiro ao sepulcro, aquele que tinha descansado sobre o peito do Senhor na última ceia, que vê e acredita, vê os sinais das ligaduras e do sudário e acredita. Tal é-lhe possível porque sabe o que é amor, sabe o que o amor pode fazer, como pode transfigurar as realidades, e aquela ausência e aqueles sinais eram provas de um acto sublime de amor. Mais tarde, já regressados à sua vida habitual, na faina da pesca, ao ver alguém caminhar na margem do lago será esse mesmo amor que lhe permitirá dizer a Pedro e aos outros, é o Senhor, é o Mestre.
Perante a ressurreição de Jesus todos nós somos um pouco como Pedro, como João e como Maria Madalena, buscamos os sinais que nos permitam ver a presença de Jesus, o mistério da sua presença gloriosa. Contudo, e como com eles, tais sinais apenas se tornarão confirmativos, afirmativos dessa realidade, na medida em que procederem da fé. Jesus não quer que o vejamos, quer que acreditemos nele, aliás foi sempre essa a sua grande questão e luta com aqueles que o acompanhavam e o buscavam para obter milagres. O importante é acreditar, acreditar que aquele homem de Nazaré é o Filho de Deus, é o nosso Deus.
E se Jesus ressuscitado mais tarde se faz visível para os seus discípulos, quando estão fechados em casa, para o incrédulo Tomé, junto ao lago, a caminho de Emaús é para que por essa visibilidade eles apreendam e conheçam a invisibilidade, saibam em quem estão a colocar a sua confiança, a sua fé e a sua esperança.
Este é o desafio da ressurreição, para todos os homens e para cada um de nós, que dos sinais de um acontecimento sem testemunhas ultrapassemos a realidade desses mesmos sinais e acreditemos no que eles nos revelam daquele homem que é filho de Deus e que caminhou connosco para nos elevar à condição de filhos de Deus.

sábado, 3 de abril de 2010

Silêncio e Paz

Silêncio e paz!
É como se tudo tivesse parado, até o tempo.
Não há palavras para este silêncio, para esta paz.
Quebrarão as palavras o silêncio?
Deitarão por terra esta paz?
Neste silêncio e nesta paz, apenas permanecer.
Permanecer…
Junto ao túmulo, no túmulo, túmulo.
O nosso corpo está no túmulo, foi sepultado no corpo de Jesus.
O nosso corpo é um túmulo, onde se sepulta em cada comunhão,
O Corpo de Cristo.
E junto ao túmulo permanecemos, esperando, adorando,
O corpo que nos resgata da nossa finitude e corporeidade mortal
Que nos ressuscita em cada Eucaristia.
Silêncio e paz!
Uma cruz, um livro, uma disciplina, uma luz,
Trémula na noite escura, frágil.
É tudo tão frágil!
Mas a luz brilha e silencia e pacifica,
Atravessa a noite escura,
Permanece até que desponte a aurora.
Luz, silêncio, paz!

Noite de contemplação

Tudo está consumado, o sofrimento terminou e o espectáculo também. Aos poucos retiram-se os espectadores de lugar reservado e todos os que tinham vindo arrastados pela confusão e pelo desejo mórbido de ver o outro na sua agonia. Ficam apenas os que cumprem o seu serviço e aqueles poucos que muito amam.
Junto dos condenados os poucos soldados que guardam ainda os corpos, são os que estão de serviço, e apenas desejam que tudo se despache para poderem voltar a casa. A noite vai caindo com uma força surpreendente e o vento tempestuoso parece querer correr com eles.
Junto da cruz de Jesus, sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria mulher de Cléofas e Maria Madalena. Três mulheres que estão ali, ainda que afastadas pela soldadesca, desde que tudo começou. E junto delas um jovem, João, o discípulo amado, um amigo, um irmão e agora um filho. É um grupo estranho, pois é um grupo frágil, sem poder e sem força, um grupo inesperado e imprevisível junto de tanta violência e brutalidade. O contraste é gritante.
Quando os soldados descem da cruz o corpo de Jesus recebem-no com todo o carinho e cuidado, como se fosse o maior tesouro que existe à face da terra. É necessário sepultá-lo, colocá-lo naquele sepulcro novo que se vislumbra por detrás das costas, mas antes disso há ainda coisas a fazer como limpar o corpo e prestar-lhe as últimas homenagens imagináveis e possíveis face ao momento.
Maria, a mãe, segura a cabeça do filho e ternamente limpa-lhe o sangue da coroa de espinhos que lhe colocaram na cabeça. O seu filho, o seu menino, volta aos seus braços, não já cheio de promessas mas com o destino traçado e a missão cumprida. Tudo estava consumado e agora nos seus braços naquele corpo morto acolhe os outros filhos, aqueles que lhe tinham sido entregues em João, naquele jovem tão forte e corajoso. O corpo que segura ternamente nos seus braços já é o corpo dos outros filhos, o corpo da Igreja da qual também ela é filha. Segura também e cuida zelosamente por aquele corpo que será alimento para todos os que acreditarem que ele pode ser alimento de vida.
Maria, sua irmã e mulher de Cléofas, ajuda a limpar o corpo. É mais uma daquelas mulheres que tem acompanhado o grupo dos discípulos. Está ali porque necessita certificar-se de tudo para poder contar ao seu marido. São informações preciosas, porque, ainda que o não saiba, quando mais tarde Cléofas se encontrar a caminho de Emaús com um forasteiro desconhecido e reconhecido, serão estas informações que ele poderá apresentar e confrontar para anunciar a verdade do sucedido. Maria certifica-se do corpo morto, do fim dos projectos de uns quantos que acompanharam Jesus na expectativa e na esperança de um poder e uma ascensão social.
Maria Madalena limpa os pés de Jesus, esses pés junto dos quais ela tinha sido lançada um dia como pecadora, pés que dizem alguns também beijou e limpou com as suas próprias lágrimas e perfumou com uma exorbitância de perfume puro. Madalena cuida os pés daquele que tanto caminhou para nos resgatar a todos da condição de pecadores, para nos erguer da nossa humilhação.
João segura a mão de Jesus, aquela mão que ternamente um dia lhe tinha feito sinal para ir ver onde e como morava, a mão que o tinha chamado para ser discípulo. Segura a mão que poucas horas antes tinha entregue o bocado de pão molhado a Judas, o traidor, a mão que cravada no madeiro se tinha feito fonte para todas as graças, a mão que o afagara quando na ceia da Páscoa repousara sobre aquele peito que agora contempla desfalecido e sem vida.
Junto deste grupo uma outra figura estranha, um intruso se assim se pode dizer, um intruso que contempla aquilo que o grupo faz. E mais não pode fazer que contemplar porque séculos os separam. São Domingos contempla esta cena e estas figuras porque a sua Ordem está presente em cada uma destas figuras, elas representam a vida que os seus irmãos são chamados a viver, a vida da contemplação, de oração, do estudo e da pregação. Tudo está ali e tudo é necessário para compreender o mistério, aquele corpo entregue para sepultar e o cuidado que lhe é prestado.
Como São Domingos, a sua presença é um convite a isso, contemplemos o mistério que nesta noite se nos apresenta, cheio de sombras e escuridão mas também cheio de amor revelador e iluminador.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Ecce Homo!

Eis o homem! É assim que Pilatos apresenta Jesus aos príncipes dos sacerdotes e escribas, à multidão em fúria, àqueles mesmos que o tinham entregue para ser condenado à morte. Sem piedade nem compaixão é apresentado como nunca ninguém o tinha visto, como um verme, esmagado pela violência e a brutalidade dos carrascos.
Eis o homem! E eles sabem que é o homem, o mesmo homem que tinham conhecido em criança interrogando-os e ensinando-os no templo, o mesmo homem que tinha mandado o paralítico andar com a sua enxerga num sábado, o mesmo homem que um dia tinha feito um chicote de cordas e num acesso de zelo tinha expulsado os vendilhões do templo, o mesmo homem que eles tinham adquirido por trinta moedas de prata. Mas como estava desfigurado, como estava irreconhecível, sem beleza nem poder para atrair qualquer olhar.
Eis o homem! O homem filho e descendente da desobediência de Adão, esse homem desfigurado pela paixão e pelo desejo de querer ser Deus, o homem que não quis ser criatura, o homem que matou o seu irmão por ciúme, que derramou o sangue dos seus irmãos pelo poder e pela vaidade de ser reconhecido, o homem que procura a luz em si mesmo e nas suas forças esquecendo-se como é breve e frágil a sua existência.
Eis o homem! O homem desfigurado pelas nossas fraquezas e paixões, pelos nossos desejos de domínio sobre o outro, o homem vendido como mercadoria, explorado até à exaustão, esquecido na solidão dos seus lares ou nas camas do sofrimento. Eis-nos todos ali representados, a nossa condição humana com tudo o que tem de lodo e pó da terra.
Eis o Homem! O verdadeiro homem, aquele que estamos chamados a ser, o homem que se reconhece filho de Deus, que sabe a herança que lhe pertence, que sabe quem é e decide sobre a sua vida.
Eis o Homem! O homem que diz àquele que se julga com poder sobre a sua vida “não terias poder algum sobre mim se não te tivesse sido dado”, o homem que diz “a minha vida sou eu que a dou não é ninguém que ma tira. Este é o homem, o verdadeiro, aquele que tem poder de dar a sua vida e tomá-la de volta.
Eis o Homem! O homem que se sabe Filho de Deus e por isso no momento final pode dizer “Pai nas tuas mãos entrego o meu espírito”, o homem que vive em intimidade com o Pai e Deus e por isso diz aos seus amigos que ele e o Pai são um, vivem em intima comunhão e nada mais querem que todos os homens vivam a mesma comunhão entre si e com eles.
Eis o Homem! O homem que é templo de Deus e por isso entrega o seu corpo para ser destruído porque passado três dias esse mesmo templo será reconstruído, será resgatado da sua condição arruinada e será glorificado. O corpo que ainda que neste momento esteja a ser apresentado e trocado como mercadoria, como acontecerá com tantos outros corpos idolatrados e vendidos, é o único modo de nos constituirmos como pessoas e nos relacionarmos com os outros e com o totalmente Outro, é o verdadeiro e único templo de Deus.
Eis o homem! E com ele, e esta apresentação pública, a pergunta já feita em conversa amena com os seus amigos, “ e vós quem dizeis que eu sou?”. Quem é este homem para cada um de vós?

Homília da Missa da Ceia do Senhor

Quando no próximo sábado dermos início à celebração da Vigília Pascal cantaremos o Precónio Pascal e nele exaltaremos a noite em que o céu se une à terra, em que o homem se encontra com Deus.
Hoje celebramos outra noite, uma noite em que podemos dizer que é Deus que se encontra com o homem, uma noite cheia de acontecimentos e de testemunhas, ao contrário da noite da ressurreição que nenhum homem testemunhou.
Esta é a noite da última ceia de Jesus com os discípulos, é a noite da agonia e da oração no jardim das oliveiras, é a noite da traição de Judas, a noite da prisão e a noite da negação de Pedro. Nela e nos vários acontecimentos condensa-se e sintetiza-se a condição humana, a sua fragilidade e infidelidade, o seu afastamento do projecto de Deus, bem como o amor de Deus pelos homens, esse amor levado até ao fim na encarnação e na experiência da morte dolorosa e da solidão face ao destino inexorável.
Esta referência à noite não é um mero pormenor temporal, porque no ciclo do tempo é uma realidade importante na economia da salvação. Assim, se para os homens o dia começa com a manhã, passa pelo meio-dia e chega à noite, no cômputo divino o dia começa com a noite, com o princípio da noite e termina na aurora. Vemos isso no momento da criação em que nos é dito que cada dia é criado primeiro pela tarde e só depois vem a manhã. Na narração da instituição da Páscoa, na libertação do Egipto, é também à noite que tudo se inicia, para durante a noite se caminhar e no romper da aurora já a escravidão ter ficado para trás. Há assim uma realidade que se vislumbra no cair da tarde, uma luz que nos ilumina e permite atravessar as trevas da noite e reconhecer a luz maravilhosa do despontar da aurora e do dia.
Esta noite em que tudo acontece é também símbolo da noite em que vivemos cada um de nós e a humanidade na sua condição finita, na sua condição pecadora. É a noite das nossas paixões, da nossa violência, do ódio e das infidelidades, da mentira, do sofrimento e dos abandonos, é a noite das nossas lágrimas e da nossa angústia.
E é a essa noite que Deus vem em Jesus Cristo e vem com um gesto, com uma atitude, que não podemos jamais esquecer, porque nos foi deixado como mandamento, como forma de vida, o gesto da lavagem dos pés.
É um gesto, um acto que estava reservado para os escravos, para os servos dos senhores que recebiam convidados. Antes de se sentarem à mesa o servo lavava os pés daqueles que chegavam. Um gesto de acolhimento e de higiene. Jesus repete este mesmo gesto, toma uma atitude servil e lava os pés aos seus discípulos, mas fá-lo já no meio da refeição, quando a celebração da ceia pascal ia já a meio ou até tinha já terminado na sua forma mais ritual. Desta forma o gesto adquire uma outra dimensão, um outro significado, torna-se de facto um rito, um mandamento, não é um mero gesto higiénico.
Através deste acto Jesus sintetiza e assume a sua encarnação, assume como realmente se tinha feito homem para poder servir o homem e servi-lo da forma mais humilde; e indica aos seus discípulos, aos seus amigos, que só poderiam tomar parte com ele, ou seja, só poderiam participar da sua condição divina na medida em que vivessem da mesma forma, assumissem a mesma condição servindo e cuidando uns dos outros.
E este cuidado não é uma ideia teórica, uma retórica, bem pelo contrário é uma realidade bastante prática, e por isso Jesus lava os pés de cada um dos discípulos assumindo a própria carga sensual do gesto, que é inevitável, mas que é necessária para que se veja a sua dimensão concreta, palpável, real. O amor exerce-se praticando, vivendo-se através de gestos muito concretos, por vezes assumindo uma condição carnal que é inevitável e até urgente. Não podemos querer cuidar do espírito e da alma se deixamos o corpo por cuidar.
Jesus podia ter lavado as mãos aos discípulos, seria mais fácil e poderia ter a mesma carga simbólica, mas ao lavar os pés Jesus mostra uma vez mais como nos veio cuidar e salvar naquilo que temos de mais frágil, de menos decoroso. Os pés são a nossa fragilidade, a nossa possibilidade de cairmos e nos magoarmos, são a nossa condição de infidelidade, são os membros que tantas vezes nos levam para longe dos caminhos de Deus. E Jesus veio cuidar desses pés, veio purificá-los para que o possamos seguir, porque imediatamente terminada a ceia e o seu ensinamento diz aos discípulos, “partamos daqui”.
A lavagem dos pés tem esse efeito de nos purificar mas também de nos fortificar para atravessar a noite, a noite tantas vezes sem sentido da nossa existência, da nossa tentativa de seguir o Senhor. Acolhamos esta humildade de Jesus, a sua generosidade de cuidar de nós, mesmo naquilo que menos merecemos, e procuremos viver da mesma forma humilde e disponível aos outros para podermos tomar parte com ele na sua glória.




quinta-feira, 1 de abril de 2010

Celebrar a Páscoa

É chegada a hora e os discípulos perguntam ao Senhor onde quer celebrar a Páscoa, onde começar a tratar dos preparativos, porque ainda havia preparativos a fazer.
Jesus diz-lhes que vão à cidade, a casa de tal pessoa e que lhe digam “é em tua casa que eu quero celebrar a Páscoa”.
Ir à cidade é ir a Jerusalém, mas para nós, hoje no ano dois mil e dez, esta cidade é a nossa vida atarefada, a nossa vida stressada e cheia de compromissos, é o nosso mundo tão quotidiano e tão cheio de rotinas. Precisamos ir à cidade, precisamos levar a nossa celebração para esse mundo, precisamos celebrar a nossa fé para que uma nova luz brilhe neste mundo e nesta vida. Necessitamos urgentemente de fazer a festa, de fazer a festa da nossa redenção, dessa passagem da nossa humanidade para um outro nível, uma outra dimensão, a divina. Se não o fizermos, a nossa vida e o nosso mundo perderá a maior riqueza que alguma vez alcançou.
Mas para que a festa ecoe na cidade e a transforme tem que antes de mais ser feita em nossa casa, no nosso coração, nessa intimidade de alguém que se sabe amado e quer amar aquele que o ama. É na nossa casa, no coração de cada um que Jesus quer celebrar a Páscoa, essa passagem da morte à vida, da morte dos nossos pecados e infidelidades à vida da graça e da filiação divina.
Necessitamos por isso dispor-nos a tal, tratar dos preparativos que tanto preocupava os discípulos e materialmente nos preocupam a nós. Contudo, os preparativos da verdadeira Páscoa são preparados espiritualmente, devem ser preparados espiritualmente e por isso a Igreja celebra a Semana Santa, vive a Quaresma e nos convida a um conjunto de exercícios penitenciais, de conversão, durante estes dias e tempo tão especial.
Ao iniciarmos o Tríduo Pascal, estes dias tão intensos de memórias, preparemo-nos para acolher o Senhor em nossa casa e na nossa cidade. Paremos por uns momentos, mesmo que breves e façamos uma revisão do que na nossa casa está a mais, o que atrapalha e impede a possibilidade de acolhermos o Mestre e os seus amigos. Limpemos a casa e abramos as portas de par em par para que entre o Rei da Glória e nos glorifique.