quarta-feira, 30 de abril de 2014

Crescemos graças ao encontro

 
Somos e crescemos graças ao encontro. O encontro com o outro transfigura-nos, dá-nos que pensar, obriga-nos a hospedar a sua visão do mundo e a contemplar a sua postura com a máxima dignidade. O encontro, quando se articula desde o coração, abre novas possibilidades e converte o outro estranho em um tu próximo, num interlocutor válido, em alguém de quem posso aprender.
Francesc Torralba Roselló

Ilustração: Elementos decorativos da escadaria do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios em Lamego.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Qualquer coisa mais bela

 
Descobri que existe qualquer coisa mais bela ainda: calar-me para que Deus venha habitar em mim.
Véronique Dufief,
 
Ilustração: Vaso de azáleas no jardim da casa dos meus pais.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

A frágil obra de arte

 
A fragilidade dos outros, a nossa, tem também virtudes espirituais. É porque eu sou dócil e frágil que o Criador fará de mim uma obra de arte.
Jean-Baptiste de Fombelle

Ilustração: Canteiro de tulipas no jardim de Morges. Fotografia da autoria do Alexandre.

domingo, 27 de abril de 2014

Homilia do II Domingo do Tempo Pascal

Este primeiro domingo depois do domingo de Páscoa é desde o ano dois mil, quando o Papa João Paulo II canonizou a Irmã Faustina Kowolska, o domingo da Divina Misericórdia. Esta instituição, do Papa hoje canonizado, é a resposta a um pedido que o próprio Jesus fez numa das experiências místicas desta religiosa polaca.
Quando nos confrontamos com o Evangelho deste segundo domingo do tempo pascal e com a exigência de Tomé de ver as marcas da paixão para acreditar que Jesus ressuscitou, esta instituição do domingo da Divina Misericórdia parece-nos contraditória, pois custa-nos compaginar na nossa concepção racionalista que a misericórdia de Deus se possa jogar numa exigência de provas, de evidências para um mistério inexplicável como é a ressurreição.
Contudo, quando acompanhamos o desenrolar da narração e o que verdadeiramente está em causa, não podemos deixar de concordar que a história de Tomé, as suas dúvidas e exigências, são apenas um pretexto para a manifestação evidente da misericórdia de Deus.
Neste sentido, a exigência de Tomé de ver as marcas da crucifixão, de tocar as chagas dos pés e das mãos e o lado aberto de Jesus, não é de todo descabida, bem pelo contrário é até bastante razoável, uma vez que o apóstolo exige um mínimo de garantias para fundamentar o seu acreditar na ressurreição do Mestre.
Surpreendentemente verifica-se, pelo relato do Evangelho, que Jesus não se escusa a essa exigência, mas vem ao encontro daquele que exige, concedendo-lhe mesmo a possibilidade de tocar. Na aparição em que Tomé está presente Jesus convida-o a lançar mão das provas que exigia anteriormente, a provar a evidência da presença viva daquele que tinha sofrido a paixão e a morte.
Contudo, paralelamente a esta oferta, Jesus faz a Tomé uma exigência, convida-o a dar um outro passo, muito mais fundamental para a experiência viva do ressuscitado, Jesus convida Tomé a deixar de ser incrédulo e a ser crente.
Este desafio, esta exigência de Jesus ressuscitado, mostra o que verdadeiramente está em jogo, mostra que não são as provas evidentes que Tomé tem diante dos olhos que lhe podem garantir a verdade da ressurreição, mas é a experiência e a leitura do que aquelas provas testemunham, e que ele tem que fazer, que lhe podem garantir essa verdade.
Face às provas evidentes e tangíveis que Tomé tem diante dos olhos, a exigência de Jesus mostra-nos, como mostrou a Tomé, que o ver é diferente do perceber, do apreender, que o ver não corresponde directamente ao acreditar, que afinal as chagas das mãos e dos pés e o lado aberto são mais que sinais de um suplício superado, são sinais de um grande amor, da misericórdia e do perdão que Jesus não deixa de oferecer ainda hoje.
Amor, misericórdia e perdão que estão presentes sempre que Jesus se manifesta no meio dos discípulos e os saúda com um voto de paz. Voto que é um convite a sair da culpabilidade, a deixar de ter medo, a deixar de estar encerrados, porque tal como antes tinha dito, a sua vida e a sua morte eram um puro dom, era ele que a dava e ninguém lha tirava, e portanto nenhum deles se podia sentir culpado do que tinha sucedido.
Face a esta compreensão da paixão e morte como dom de amor, correspondido expressivamente na ressurreição daquele que todo se tinha dado, é fácil perceber que Tomé não tenha tido mais necessidade nenhuma de tocar as feridas dos cravos e da lança, e se tenha lançado na mais bela confissão dos Evangelhos ao proclamar “meu Senhor e meu Deus”.
A experiência de amor, da misericórdia divina, de que Tomé é objecto repercute-se na missão que é entregue aos discípulos depois de terem recebido o Espirito Santo, na missão de perdoarem os pecados. Na continuação do perdão alcançado por Jesus, pelo seu sacrifício de amor, os discípulos são convidados a levar o perdão a todos os homens, a viver a misericórdia e a possibilitarem a experiência do ressuscitado a todos os homens.  
Ressureição e sacramento da reconciliação tornam-se assim manifestações da mesma misericórdia de Deus, manifestações que não podem ser vistas na ordem do sensível, abarcadas pelos nossos sentidos, mas que apenas são compreensíveis e perceptíveis quando iluminadas e lidas pelo Espirito Santo, pelo dom do amor.
Dom que como vimos estruturou a primeira comunidade cristã, uma comunidade que à luz do amor misericordioso nos é apresentada a partilhar os seus bens, a viver em comum, a ter uma só fé e um só coração, porque tinha a experiência viva do ressuscitado presente no meio dela.
Este mesmo desafio é hoje colocado a todas as comunidades cristãs e a cada um de nós em particular; e a Eucaristia que celebramos é a oportunidade de tomarmos consciência da presença de Jesus ressuscitado entre nós, presente no seu corpo e sangue, na Palavra que escutámos, na união que vivemos quando nos reunimos em seu nome.
Cada celebração da Eucaristia torna-nos visível Jesus ressuscitado mas igualmente participantes da sua ressurreição, o que nos deveria fazer sair pelo mundo cheios de alegria e confiança, capazes de viver a misericórdia através de um mundo comum mais justo, mais fraterno, mais de acordo com o plano amoroso de Deus.
Que os exemplos dos Papas João XXIII e João Paulo II, que tanto procuraram construir um mundo misericordioso, nos ilumine e fortaleça no nosso construir quotidiano.

 
Ilustração:
1 – “Cristo aparecendo a Tomé”, pintura russa contemporânea, Andrey Mironov.
2 – “Jesus aparece aos discípulos”, pintura russa contemporânea, Andrey Mironov.  

O primeiro passo

 
O desafio da fraqueza é o primeiro passo para aceitar o dom de Deus.
Véronique Dufief

Ilustração: Campo de Soja na Suíça. Fotografia da autoria do Alexandre.

sábado, 26 de abril de 2014

Os nossos desejos

 
Os nossos desejos profundos são promessas que nos faz o Senhor!
Véronique Dufief

Ilustração: Jardim de Morges. Fotografia da autoria do Alexandre.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Ao saltarem para terra viram brasas acesas. (Jo 21,9)

Jesus ressuscitou e aparece aos discípulos por diversas vezes. Não são acontecimentos extraordinários, acontecimentos que deixam de tal modo perturbados os discípulos que os encontramos numa outra situação de vida.
Bem pelo contrário, e o facto de os encontrarmos encerrados em casa ou já na sua faina diária da pesca é bem sinal disso. Jesus aparece na normalidade do quotidiano, das situações diárias da vida, como quando estão fechados em casa com medo ou quando já regressaram ao seu ritmo de trabalho habitual.
Contudo, se há alguma realidade extraordinária nas aparições de Jesus é a sua antecipação aos acontecimentos, a sua presença anterior aos mesmos acontecimentos da aparição, como se verifica quando Jesus aparece na margem do lago.
Após uma noite longa de trabalho e sem qualquer recompensa, os discípulos enfrentam o desânimo e o cansaço quando raia a manhã, quando se torna possível para o discípulo amado ver que o Senhor está na margem.
Jesus vem em socorro dos seus amigos e não só lhes proporciona uma pesca numerosa, como lhes prepara a refeição, pois ao saltarem em terra encontram um braseiro aceso e nele peixe assado e pão preparado.
Uma vez mais Jesus mostra que caminha à frente deles, que está presente ali, mas está também mais além, naqueles lugares aos quais devem ir, nos quais os espera na margem após uma noite de trabalho e fadiga.
Jesus precede os discípulos, precede-nos a cada um de nós, nos caminhos da vida, e nesse preceder vai preparando o que necessitamos para retemperar as forças, para não nos deixarmos vencer pelo cansaço ou pelo desânimo.
Onde quer que seja que saltemos, qualquer que seja a margem, Jesus está lá à nossa espera, com o seu amor e com o braseiro aceso, o pão e o peixe preparados. Esta garantia, que os discípulos puderam experimentar e testemunhar devia animar a nossa esperança e o nosso esforço, devia animar a nossa ousadia no testemunho da fé que professamos em Jesus Cristo.
Que o Senhor nos conceda o amor que permitiu ao discípulo amado reconhecê-lo na margem do lago e a Pedro lançar-se ao seu encontro.

 
Ilustração: “A pesca milagrosa”, de Lluis Borrassá, San Pere, Terrasa.

O que Deus espera

 
Deus não esperava nada mais que aquilo que lhe podia dar no instante presente.
Véronique Dufief,

Ilustração: Floreira com azáleas na casa dos meus pais.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

O mistério da liberdade

 
Tal é o mistério da liberdade do homem, diz Deus… se o protejo demasiado, ele deixa de ser livre, mas se não o protejo com atenção, ele cai.
Charles Péguy,

Ilustração: Cedro coberto de neve no Jardim des Bastion em Genebra.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Simulacro de liberdade

 
O mar não é liberdade, é um simulacro dela, um símbolo dela… Mas que bela é a liberdade se um simples simulacro enche o homem de felicidade!
Vassili Grossman, “Tudo Passa”, 228.

Ilustração: Praia nas Ilhas Barbados.

terça-feira, 22 de abril de 2014

A violência é eterna

 
A violência é eterna, por mais que se faça para a liquidar, não desaparece, não diminui, apenas se modifica. A quantidade geral da violência mantém-se sempre igual na terra, enquanto os pensadores tomam o caos das suas metamorfoses por uma evolução e procuram as suas leis. No entanto, o caos não tem leis nem evolução, nem sentido, nem objectivo.  
Vassili Grossman, “Tudo Passa”, 225.

Ilustração: Escudo português no monumento à Batalha de Vitória aquando das invasões francesas.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

A verdadeira força

 
Por mais altos que sejam os arranha-céus, por mais potentes que sejam os canhões, por mais ilimitado que sejam o poder do Estado e a força do império, tudo isso é apenas fumo e nevoeiro que vai desaparecer. O que se mantém, se desenvolve e vive é a verdadeira força, a liberdade. Viver significa ser livre. Nem tudo o que é real será razoável. Tudo o que é desumano é também absurdo e inútil!
Vassili Grossman, “Tudo Passa”, 222.

Ilustração: Torre Eiffel em Paris.

domingo, 20 de abril de 2014

Homilia da Páscoa da Ressurreição do Senhor

Neste dia de Páscoa, no qual a leitura dos Actos dos Apóstolos nos apresenta Pedro, diante da multidão, a interpelar os seus ouvintes, dizendo-lhes que todos eles sabem o que aconteceu com Jesus de Nazaré na Judeia e na Galileia, podemos igualmente dirigir-vos as mesmas palavras.
Também vós sabeis o que aconteceu com Jesus, conheceis o bem que fez, as curas e milagres que operou, como foi amigo de todos, como procurou fazer o bem e salvar todos aqueles que sofriam. Sabeis também como pela sua liberdade foi julgado e condenado, foi conduzido ao suplício da cruz e aí morreu.
Esta é aquela que podemos chamar a experiência histórica, a que nos pode ser dada por qualquer testemunha, mesmo por aqueles que o negam ou se recusam a acreditar. Esta é a história comum que o povo pôde testemunhar, os gestos e as atitudes que os olhos puderam ver.
Contudo, e tal como Pedro também afirma no seu discurso ao povo, houve algumas testemunhas particulares, houve alguns homens e mulheres que fizeram uma experiência diferente, homens e mulheres aos quais foi dado perceber que Jesus era o ungido de Deus, que os seus gestos e milagres eram consequência da força do Espirito Santo que o habitava.
Estes homens e mulheres puderam por isso fazer a experiência da ressurreição, eles que o tinham conhecido na intimidade, em momentos particulares de revelação da sua identidade, puderam encontrar-se com Jesus para além da sua morte na cruz, porque a mesma força do Espirito os iluminava.
Esta experiência da ressurreição não foi no entanto fácil, pelo contrário, muitas vezes titubeou entre o maravilhoso e a incredulidade, passou em muitos casos por um desencontro, ou um encontro complexo com o túmulo vazio como aconteceu com Maria Madalena, Pedro e João.
Se aquela que vai ser a primeira testemunha do ressuscitado sai desesperada do encontro com o túmulo vazio, Pedro, o primeiro dos apóstolos, fica atónito e estupefacto, enquanto o discípulo amado acredita sem qualquer questão. Atitudes diferentes para a mesma experiência do vazio, da perda, face ao material que testemunha a ausência do corpo de Jesus como são o pano do sudário e as ligaduras abandonadas.
Será a memória dos acontecimentos, dos encontros pessoais, interpretada com amor à luz da Escritura, da Palavra e promessa de Deus, que tal como nos diz o Evangelho de São João permitirá entender o que significa a ressurreição.
No caso de Maria Madalena é o apelo pelo nome, apelo que exige liberdade, a liberdade de deixar subir para o Pai aquele que se ama, porque também ele a deixou ir livre um dia sem a condenar pelos seus pecados. No caso de Pedro é a questão da fidelidade no amor, por três vezes questionada, ele que tinha sido instituído de autoridade com a mudança do nome de Simão para Pedro, e que tinha negado por três vezes aquele que lhe dera essa mesma autoridade.
Cada um dos discípulos faz a experiência da ressurreição à luz da sua relação pessoal com Jesus, da sua história lida e contada com amor. De certa forma cada um participa da ressurreição na medida em que encontra a sua vida escondida em Cristo, em que se sente presente na própria vida de Jesus.
E este é o desafio que se nos coloca de percebermos e vivermos a ressurreição de Jesus, ou seja, quanto maior é a nossa intimidade com ele, quanto maior é a nossa assimilação à sua vida, a nossa participação no seu amor e vida obedientes ao Pai, tanto maior é a nossa compreensão e experiência da ressurreição.
Tal como diz São Paulo aos Colossenses a nossa vida e a nossa morte estão já presentes em Jesus, estão escondidas na sua humanidade assumida e na divindade revelada, e por isso devemos aspirar às coisas do alto, devemos afeiçoar-nos àquelas realidades que manifestam a nossa vida ressuscitada, a nossa condição de redimidos e assumidos como filhos de Deus.
A ressurreição de Jesus que celebramos na Páscoa é assim a celebração da nossa ressurreição, o que nos exige e compromete na vida como ressuscitados, homens e mulheres de vida vivida em plenitude e verdade.

 
Ilustração:
1 - “A Ressurreição”, de Tintoretto.
2 - Arranjos florais para a cruz gloriosa na igreja de Cristo Rei, Porto. 
 

Aleluia! Felizes Festas Pascais! Aleluia!

 
Aleluia! O nosso Redentor ressuscitou de entre os mortos. Cantemos um hino ao Senhor nosso Deus. Aleluia!

Ilustração: Mosaico do altar do Mistério da Ressurreição, na Basílica do Rosário em Lourdes.

sábado, 19 de abril de 2014

Chamada para despertar

 
Eu te ordeno: Desperta, tu que dormes, porque Eu não te criei para que permaneças cativo no reino dos mortos. Levanta-te de entre os mortos; Eu sou a vida dos mortos. Levanta-te, obra das minhas mãos; levanta-te, minha imagem e semelhança; levanta-te, saiamos daqui; tu em Mim e Eu em ti, somos um só.
De uma Antiga Homilia de Sábado Santo

Ilustração: Nascer do sol sobre Rabanal del Camino, Caminho Francês de Santiago, Maio 2010.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Faz frio! (Jo 18,18)

A noite caiu já e com a escuridão do seu manto veio o frio. Um vento gélido trespassa as roupas e faz-se sentir à flor da pele.
É verdade que as noites de primavera são ainda frescas, mas esta noite o frio faz-se sentir de forma intensa, é como se abraçasse tudo o que existe, como se nos quisesse engolir tal como a escuridão imensa da noite.
No princípio da noite havia ainda uma fogueira, crepitavam os ramos secos enquanto as hastes verdes lançavam nuvens de fumo intenso. À sua volta uns quantos soldados, judeus como ele, uma criada que parecia conhecê-lo, que não deixava de afirmar que também ele era discípulo daquele Jesus que tinham trazido manietado.
Alienado pelo calor do fogo que aquecia o corpo, ou pelo medo daquela voz feminina que não deixava de o apontar a toda a gente, teve a hipócrita ousadia de dizer que não o conhecia, que nunca o tinha visto, que não era seu discípulo.
E como querendo convencer-se disso mesmo foi negando, uma, duas e três vezes, até que um galo cantou e o seu canto o penetrou mais gélido que o próprio frio da noite. Na voz do galo ouviu a voz do Mestre “hoje mesmo me negarás três vezes”.
O fogo que ainda crepitava deixou de o aquecer e no seu coração um outro fogo se ateou, o fogo da culpa e do remorso, o fogo devastador da traição. Subitamente o frio da noite tornou-se o maior conforto, como uma carícia, e saiu desesperadamente à procura da fonte desse frio para que o seu fogo pudesse ser extinto.
Deambulando pela noite, pelas veredas vazias de gente, buscou ansiosamente, desesperadamente, e sem saber como viu-se novamente no jardim das oliveiras. Ainda há tão pouco tempo tinham estado ali, todos reunidos com o Mestre, com o seu querido Mestre, jamais imaginando que um dos seus o viria entregar com um beijo.  
Com o vento frio a bater-lhe no rosto, a arrastar-lhe as lágrimas que dolorosamente escorriam, lembrou-se das palavras de Jesus quando aquela multidão conduzida por Judas se aproximou para o prender, “sou eu, sou eu a quem buscais!”
O Mestre não tinha recuado um passo, não se tinha escondido, enfrentou a verdade e a demanda daqueles que vinham à sua procura para o levar preso, enquanto ele se tinha acobardado diante de uma pobre criada, certamente menos livre que ele.
No frio da noite Pedro aqueceu-se naquelas palavras de Jesus, nas palavras do Mestre que sem qualquer movimento de resistência se deixava apanhar e levar. Aquelas palavras dirigidas à multidão em fúria dirigiam-se agora a ele, “sou eu, sou eu quem te pode dar a paz, sou eu a quem tu buscas na tua perda e na tua dor”.
E no vento gélido da noite as palavras continuaram a ressoar e a ecoar para todos aqueles que buscam, os culpados que buscam o perdão ou os amantes que buscam o amado, “sou eu a quem buscais”.

 
Ilustração: “As lágrimas de São Pedro”, de El Greco, Bowes Museum.

Achei um tesouro

 
O soldado trespassou o lado, abriu uma brecha na parede do templo santo e eu achei um grande tesouro, e alegro-me por ter encontrado riquezas admiráveis.
São João Crisóstomo, Catequeses
 
Ilustração: Mosaico do altar do Mistério da Crucifixão na Basílica do Rosário em Lourdes.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Estar preparados para a mesa

 
A mesa do grande senhor é a mesa em que se recebe o Corpo e Sangue daquele que deu a sua vida por nós. Sentar-se a ela significa aproximar-se com humildade. Olhar com atenção o que está diante é tomar consciência da grandeza deste dom. E considerar que temos de preparar coisas semelhantes significa o que já disse antes: assim como Cristo deu a sua vida por nós, também nós devemos dar a nossa vida pelos irmãos.
Santo Agostinho, Tratados sobre o Evangelho de São João

Ilustração: Basílica subterrânea de São Pio X em Lourdes.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Um de vós me entregará! (Mt 26,21)

É no meio da ceia pascal, quando todos estavam reunidos em festa, que Jesus anuncia ao grupo dos discípulos que um deles o vai entregar, o vai trair. As manobras que Judas tinha andado a realizar em segredo, às escondidas, aparecem agora veladamente descobertas.
Ao saber o que se tramava e quem era o autor das manobras de traição, Jesus podia apenas dirigir-se a ele, falar com ele em privado, confrontá-lo com a traição. Contudo, Jesus não faz isso, pelo contrário levanta no grupo e no meio da festa a suspeita, deixando cada um a questionar-se, “serei eu senhor?”
Numa abordagem malévola poder-se-ia dizer que Jesus tinha uma personalidade complicada, que gostava de provocar, de deixar tudo e todos perturbados, de ser um desmancha-prazeres, pois com aquela afirmação deixava tudo em suspenso, certamente um ambiente pesado na sala onde antes reinava a alegria.
A interrogação de cada um dos discípulos, e depois do próprio Judas, põe em evidência que a afirmação de Jesus não era uma afirmação gratuita, não tinha qualquer interesse em criar mau ambiente, mas revelar a cada um dos presentes a possibilidade real de traição. Cada um deles podia entregar Jesus, podia atraiçoá-lo. Não se perguntaram todos pela possibilidade? Não é afinal uma possibilidade que nos atinge a todos, à qual todos estamos vulneráveis?  
Há mil maneiras e possibilidades de entregar o Mestre, de atraiçoar Jesus, de o deixar só face ao mundo que o condena. De cada vez que nos escondemos, que nos silenciamos na defesa da fé ou da Igreja, de cada vez que evidenciamos o nosso orgulho ou a nossa inveja, de cada vez que nos deixamos aliciar por ideias e valores que se assemelham aos cristãos mas na sua verdade inviabilizam o mistério de salvação que Jesus realiza. E tantas outras formas possíveis!
Cada um de nós pode entregar Jesus aos verdugos, àqueles que o expõem ao ridículo, e se umas vezes tal acontece por actos concretos de cada um, muitas vezes acontece porque nos calamos, porque somos omissos, porque não estamos para nos implicar e correr o risco de dar a vida, ou a boa imagem que os outros têm de nós. Afinal Jesus pode funcionar como mais um produto de consumo, que quando se torna mais caro deixamos na prateleira.
Tal atitude tem como consequência uma desgraça, pois como Jesus diz relativamente a Judas, melhor seria que não tivesse nascido. Construímos a nossa própria condenação, tornamo-nos os carrascos de nós próprios, porque ainda na desgraça da traição Jesus não deixa de nos chamar amigos, tal como chamou a Judas quando ele se apresentou com os soldados e a multidão para o prender.
Jesus não deixa de nos estender a mão, Jesus não quer a nossa perda, mesmo na traição, uma vez que essa perda representa a negação do seu mistério redentor. Ele deu a sua vida pelos pecadores quando ainda eramos pecadores, para que na nossa traição pudéssemos acolher o dom da sua vida e do seu amor, o dom do perdão sempre oferecido.
Saibamos acolhê-lo com humildade e em espirito de agradecimento!

 
Ilustração: “A traição de Judas”, pintura de origem russa de Andrey Mironov?   

Deus escolheu o que é fraco

 
Deus escolheu o que é fraco aos olhos do mundo para confundir o forte, e escolheu o que é vil e desprezível, o que nada vale aos olhos do mundo, para reduzir a nada aquilo que vale, a fim de que ninguém se possa gloriar diante de Deus. É por Ele que vós estais em Cristo Jesus, o qual se tornou para nós sabedoria de Deus, justiça, santidade e redenção.
Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios

Ilustração: Mosaico do Mistério da Coroação de Espinhos na Basílica do Rosário em Lourdes.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Não cantará o galo sem que me tenhas negado! (Jo 13,38)

A última ceia de Jesus com os discípulos é um grande momento de verdade, de confronto com a verdade. Por um lado Jesus assume a realidade do seu dom total e propõe a radicalidade do seguimento pela lavagem dos pés, por outro lado manifesta-se a traição e a infidelidade daqueles que ali mesmo se afirmam seus amigos incondicionais, dispostos a tudo, até a segui-lo para onde não sabem.
Quando tudo parece perfeito não há qualquer temor, quando tudo está bem com a vida não há qualquer dúvida, qualquer medo. Acontece assim com todos nós, connosco que somos jovens dinâmicos, avós divertidos, homens de sucesso, mulheres e mães realizadas; a todos nós, que tal como Pedro estamos dispostos a seguir Jesus, ainda que sem saber para onde ele vai e para onde nos possa levar.
E para onde Jesus se encaminha é para a verdade, para a verdade da sua vida e da sua missão, para a morte que culmina o mistério da sua encarnação e da nossa redenção. E aqui, inevitavelmente estacamos o pé, colocamos as máscaras, pois não é fácil enfrentar a verdade da nossa vida, não é fácil confrontarmo-nos connosco próprios e com a nossa missão primordial.
Como Pedro temos medo de enfrentar a verdade de ser discípulos, de ser filhos de Deus, deixamo-nos desfigurar pela mentira, pelo mal, e sem que tenhamos consciência desfiguramos o próprio Deus em que acreditamos, a missão a que fomos chamados e o projecto de felicidade a que a criação divina nos destinou.
O fim do caminho de Jesus, traduzido de forma visual na nudez da cruz, no seu corpo verdadeiro exposto aos olhares de todos, apela-nos à verdade, ao retirar das máscaras, ao abandono da mentira e ao encontro com a verdade de nós próprios. Só na verdade podemos estar verdadeiramente bem na vida e com a vida.
O cantar do galo despertou Pedro da mentira, fez com que caíssem as máscaras que o desfiguraram. Que estes dias da Semana Santa nos libertem também das máscaras que nos desfiguram e nos ajudem a encontrar a nossa verdade pessoal.
 
Ilustração: “A negação de São Pedro”, de Rembrandt, Rijksmuseum, Amesterdão.

Seguir a Cristo

 
Para atingir a vida perfeita é necessário seguir a Cristo, não apenas nos exemplos de mansidão, humildade e paciência que nos deu durante a sua vida, mas também na sua própria morte.
São Basílio Magno, Do Livro Sobre o Espirito Santo

Ilustração: Mosaico do Mistério da Flagelação de Jesus na Basílica do Rosário em Lourdes.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

A casa encheu-se de perfume! (Jo 12,3)

Iniciamos a Semana Santa, na qual somos convidados a viver a Paixão e a morte de Jesus, com um acontecimento extravagante, com um gesto que Judas considera um desperdício, pois o dinheiro gasto no perfume de nardo puro podia ser utilizado para dar aos pobres.
Respondendo a Judas, e a qualquer outra crítica que pudesse surgir, Jesus defende o gesto de Maria, a irmã de Lázaro, apontando-o como um gesto profético, uma vez que aquela unção se refere à sua morte, é um gesto que no momento exacto não será possível de realizar e portanto se antecipa.
Contudo, e ainda que Jesus não o assuma diante da plateia, aquele desperdício extravagante é mais que um gesto profético, é mais que um sinal da morte, bem pelo contrário, é um sinal da vida, é um gesto de profundo amor.
Maria, com o seu frasco de perfume de nardo puro, de alto preço, faz um dom inestimável a Jesus, um dom devido à sua natureza divina, mas faz também pelos gestos que acompanham o dom, a unção dos pés e a sua limpeza com os cabelos, um dom sem limites devido ao amor divino.
E por isso a casa se enche do perfume de nardo puro vertido sobre os pés de Jesus, pois é a humanidade que Jesus assumira que é perfumada e ungida, o dom de amor feito ao Filho de Deus retorna aos filhos dos homens no dom do amor divino.
Durante esta Semana Santa acompanharemos os acontecimentos que o gesto profético de Maria anunciou, mas viveremos também o mistério do amor, desse perfume divino que o Filho de Deus derramou não só sobre os nossos pés mas sobre toda a nossa pessoa ao resgatar-nos da morte e do pecado.
O perfume puro da redenção, o perfume do amor de Deus pelos homens, espalhou-se pela casa da humanidade e nestes dias somos convidados a aspirá-lo, a respirá-lo a plenos pulmões, embebendo-nos dele para o podermos continuar a difundir por aqueles lugares em que ainda não se encontra.
Tal como Maria, sem medo nem pudor, se colocou aos pés de Jesus para derramar o seu perfume amante, também nós saibamos e tenhamos a coragem para nos colocarmos aos pés de Jesus de modo a sermos perfumados pelo amor da sua graça.

 
Ilustração: “Jesus ungido por Maria”, de Johann Christof Haas.

O incrivel que já se realizou

 
Quem pode duvidar que Cristo dará a vida aos seus fiéis, se por eles se entregou à morte? Porque hesita ainda a humana fragilidade em acreditar que um dia os homens viverão com Deus? Muito mais incrível é o que já se realizou: Deus morreu pelos homens!
Santo Agostinho, Sermões

Ilustração: Mosaico do Mistério da Agonia de Jesus no Horto na Basílica do Rosário em Lourdes.

domingo, 13 de abril de 2014

Homilia do Domingo de Ramos na Paixão do Senhor

Celebramos o Domingo de Ramos, entramos na Semana Santa através deste pórtico duplo, desta celebração única em que a liturgia nos oferece a leitura de dois Evangelhos, o primeiro no momento de iniciarmos a procissão de entrada na igreja com os nossos ramos festivos, e o segundo com a leitura da Paixão do Senhor.
São leituras do Evangelho diametralmente opostas na tonalidade dos acontecimentos, pois se a primeira leitura nos coloca face à alegria e ao júbilo da entrada de Jesus em Jerusalém, face ao melhor que há no homem, à sua capacidade de acolhimento e reconhecimento do que lhe é oferecido, a segunda leitura do Evangelho coloca-nos face ao pior que o homem pode desenvolver, como são a traição, a cobardia, a mentira, e a condenação injusta à morte de um inocente, como acontece com Jesus.
São Bernardo, num sermão para o Domingo de Ramos, diz-nos que a leitura do primeiro Evangelho, antes da procissão de entrada, manifesta a glória divina oferecida por Deus Pai aos homens, enquanto a leitura do segundo Evangelho, a Paixão, nos recorda o caminho a percorrer para alcançar essa glória. E neste caminho a percorrer, Jesus é a imagem mais perfeita e acabada, o exemplo verdadeiro ao qual não podemos fugir.
É a própria pessoa de Jesus, quando se humilha, quando se aniquila, quando obedece filialmente aos desígnios do Pai, que nos é dada como estrada a percorrer, como o verdadeiro caminho para alcançar a verdade e a vida. É no abandono total e incondicional nas mãos do Pai, é no dom total por amor, que Jesus se mostra o caminho a percorrer para alcançar a glória.
E esta realidade, esta circunstância, é magistralmente posta em evidência na Carta de São Paulo aos Filipenses, quando nos diz que apesar da sua condição divina, Jesus não reivindicou nada para si, mas que se submeteu totalmente à vontade do Pai, tornando-se não apenas homem mas um homem igualmente sujeito à morte como todos os homens.
Este assumir do sofrimento humano, da condição de servo sofredor, tal como Isaías o tinha preconizado, é para Jesus a oportunidade de realizar a salvação e a redenção da humanidade de acordo com os desígnios do Pai. É acolhendo, aceitando, comungando da vontade divina do Pai, que Jesus restabelece a nossa dignidade filial, que reata a relação da humanidade pecadora com o seu criador.
E nesta aniquilação manifesta-se o paradoxo de todos os paradoxos, a questão que está subjacente à redacção do próprio Evangelho de São Mateus que escutámos, na medida em que todos nos questionamos da possibilidade de vitória face à perda total. Tendo como destinatários cristãos provindos do judaísmo, o Evangelho de São Mateus procura uma resposta para esta questão incompreensível, para este paradoxo, de saber como é possível vencer quando tudo se perde.
São Mateus responde-nos que tal incompreensão e paradoxo apenas se ultrapassa e vence pela fé, pela mesma fé que Jesus vive nos momentos da Paixão, quando na obscuridade do sofrimento e da morte eminente entrega toda a sua vida e vontade nas mãos do Pai, acto que provoca um conjunto de sinais que manifestam a glória divina, sinais que levam o centurião a proclamar “este é verdadeiramente Filho de Deus”.
A leitura da Paixão de Jesus, neste Domingos de Ramos, coloca-nos assim face ao desafio da fé, face ao desafio de um caminhar confiante nas circunstâncias da nossa vida e da nossa humanidade limitada e frágil, para que possamos alcançar a glória da entrada em Jerusalém.
Face aos desafios e incompreensão das cruzes que pontuam a nossa vida, a vida e a Paixão de Jesus apontam-nos a compreensão possível, uma compreensão que passa pelo acolhimento humilde, pela comunhão íntima com Deus, na qual a fé e a oração são elementos estruturais e meios fundamentais.
A cruz será assim sempre revelação da nossa glória divina na medida da nossa compreensão daquele Jesus que ali está pregado e exposto, que pode ser um condenado perdido ou pelo contrário um rei vitorioso no seu trono de glória. Da nossa fé na cruz de Jesus e do acolhimento da vontade de Deus nas nossas cruzes está dependente a capacidade de podermos afirmar como São Paulo, “toda a minha glória está na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo”.

 
Ilustração:
1 – “Entrada de Jesus em Jerusalém”, de Pedro de Orrente, Museus Russos.
2 – “Cristo na cruz com dois doadores”, de El Greco, Museu do Louvre.

Lançar-se aos pés de Cristo

 
Em vez de túnicas ou ramos sem vida, em vez de arbustos que alegram os olhos por pouco tempo mas depressas perdem a sua frescura, lancemo-nos a nós mesmos aos pés de Cristo, revestidos da sua graça, ou melhor, revestidos dele mesmo.
Santo André de Creta, Sermões

Ilustração: Cruz de milheiro entre ramos de carvalhos em Parada de Francos.

sábado, 12 de abril de 2014

O fruto


Quando comeres o fruto da árvore lembra-te daquele que plantou a árvore.
Provérbio vietnamita

Ilustração: Flor do jardim do Convento de Cristo Rei no Porto.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

A liberdade não é uma necessidade

 
A liberdade não é, como pensava Engels, uma necessidade consciencializada. A liberdade é diametralmente oposta à necessidade, a liberdade é uma necessidade superada.
Vassili Grossman, “Tudo Passa”, 198.

Ilustração: Óculo da igreja do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios em Lamego.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

A história é liberdade

 
A história do homem é a história da sua liberdade. O crescimento da potência humana exprime-se, em primeiro lugar, no crescimento da sua liberdade.
Vassili Grossman, “Tudo Passa”, 197.

Ilustração: Elemento decorativo do parque do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Vai onde Deus fala

 
Vai onde tu não consegues, olha onde tu não vês, escuta onde nada ressoa. Então, estás onde Deus fala.
Angelus Silesius

Ilustração: Montanhas com nevoeiro no País Basco.  

terça-feira, 8 de abril de 2014

A promessa da noite

 
A noite promete o dia, contrariamente ao que a angustia não deixa de nos murmurar.
Catherine Chalier

Ilustração: Procissão das velas em Lourdes.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

O espirito de infancia

 
O espirito de Infância consiste antes de mais em saber-se, com toda a certeza, amado.
Gilbert Cesbron

Ilustração: Rosas outonais do Jardim de Serralves.

domingo, 6 de abril de 2014

Homilia do V Domingo da Quaresma

As leituras deste quinto domingo da Quaresma são um apelo a recordarmos que o nosso Deus é um Deus de vida e de vivos e não um Deus de mortos ou da morte.
Se a leitura do profeta Ezequiel nos recorda a esperança que Deus transmitia ao povo desterrado, a um povo que se considerava aniquilado, morto, no sentido de uma nova vida com o regresso à terra prometida; se a Epístola de São Paulo aos Romanos nos recorda que a habitação do Espirito Santo na nossa carne nos liberta da morte; a narração no Evangelho de São João da ressurreição, ou reanimação, de Lázaro recorda-nos o convite carregado de ternura e amor que Deus nos faz de sairmos dos nossos túmulos, dos nossos lugares de morte.
É incontestável que a narração da ressurreição de Lázaro se constrói à luz da ressurreição de Jesus, à luz dos chamados sinais que marcam a hora em que Jesus se revelará. Este é o sétimo e último sinal dessa revelação progressiva da hora da manifestação de Jesus como Filho de Deus. Tal como nos diz o texto é o momento e a oportunidade para a manifestação da sua glória.
Paralelamente a esta construção teológica encontra-se também a manifestação da humanidade daquele que é Filho de Deus, uma humanidade traduzida na comoção e nas lágrimas que Jesus derrama pelo seu amigo. É o Filho do Homem que se manifesta na sua humilde compaixão e dor pelo amigo que desapareceu.
Contudo, se há alguma novidade radical face ao conjunto das verdades reveladas, aos mistérios sobre os quais assenta a narração do Evangelho, essa novidade é a actualidade da acção de Jesus, do poder de Jesus de dar a vida. Jesus é a ressurreição e a vida, ali e aqui, naquele momento preciso e neste mesmo momento.
Percebe-se assim que face à resposta de Marta, que confessa a sua fé na ressurreição para um tempo futuro, para uma eternidade, Jesus lhe responda que ele é a ressurreição e a vida e que todo aquele que acreditar nele vive já a ressurreição.
Jesus coloca no presente a vida e a ressurreição que opera e interroga Marta, como nos interroga a cada um de nós, sobre a fé nessa vida e nessa ressurreição. Somos nós capazes de acreditar que a ressurreição acontece aqui e agora, na medida da minha fé?  
Somos nós capazes de acreditar que a ressurreição acontece quando temos a fé e a esperança, condimentada de ousadia, de mostrar a Jesus os lugares onde encerrámos os nossos cadáveres?
Face à fé das irmãs de Lázaro, Jesus pergunta pelo local onde sepultaram o irmão e amigo e dirige-se para lá, ordenando que a pedra que sela o sepulcro seja retirada. Jesus vai ao encontro dos lugares da morte, dos nossos lugares de sepultamento, nos quais tantas vezes deixamos ou queremos deixar os restos mortais da nossa vida. Ele que é a vida e a ressurreição vem ao encontro dessas realidades. Onde escondemos as causas do nosso sofrimento, aquelas realidades que provocam as nossas lágrimas, Jesus quer entrar e ressuscitar essas realidades, reanimá-las ou transfigurá-las para que possamos viver em paz com elas.
E ainda que nos desculpemos como Marta que essas realidades já cheiram mal, já nos são insuportáveis aos nossos sentidos e sensibilidade, Jesus não deixa de insistir para que a pedra seja retirada e a luz e a palavra possam chegar ao fundo do sepulcro.   
Muitas vezes essas realidades, essas causas, surgem como Lázaro do túmulo, enfaixadas, cobertas com um sudário, envoltas em explicações ou desculpas que necessitam ser desligadas, desfeitas, para que a vida possa ser retomada em plenitude e verdade.
A ressurreição de Lázaro é assim uma metáfora, ou uma parábola, do próprio mistério da incarnação do Filho de Deus. Aquele que é a verdade e a vida veio ao nosso encontro, ao nosso sepulcro humano para nos retirar dele e fazer caminhar livres à luz da filiação divina.
A nossa caminhada quaresmal é neste sentido um encontro com aquilo que nos sepulta, que nos enterra, que nos impede de andar, mas também um encontro com a vida e a luz que nos liberta, com o convite a sairmos das trevas do pecado para a luz da graça.
Necessitamos por isso de fazer um exame de consciência, encontrar as realidades que nos impedem de viver, e apresentá-las a Jesus, confiantes que a sua acção ressuscitadora não acontece apenas no futuro, mas aqui e agora, no exacto momento em que lhe indicamos o lugar onde nos sepultámos com as nossas debilidades e pecados.
Tal como nos diz São Paulo, diante de tal atitude, de tal apresentação humilde, Deus não deixará no seu amor infinito de nos conceder a vida, de nos ressuscitar pela habitação do Espirito Santo.

 
Ilustração: “Ressurreiçaõ de Lázaro”, de José de Ribera, Museu do Prado.