Este primeiro domingo
depois do domingo de Páscoa é desde o ano dois mil, quando o Papa João Paulo II
canonizou a Irmã Faustina Kowolska, o domingo da Divina Misericórdia. Esta
instituição, do Papa hoje canonizado, é a resposta a um pedido que o próprio
Jesus fez numa das experiências místicas desta religiosa polaca.
Quando nos
confrontamos com o Evangelho deste segundo domingo do tempo pascal e com a
exigência de Tomé de ver as marcas da paixão para acreditar que Jesus
ressuscitou, esta instituição do domingo da Divina Misericórdia parece-nos
contraditória, pois custa-nos compaginar na nossa concepção racionalista que a
misericórdia de Deus se possa jogar numa exigência de provas, de evidências
para um mistério inexplicável como é a ressurreição.
Contudo, quando
acompanhamos o desenrolar da narração e o que verdadeiramente está em causa,
não podemos deixar de concordar que a história de Tomé, as suas dúvidas e
exigências, são apenas um pretexto para a manifestação evidente da misericórdia
de Deus.
Neste sentido, a
exigência de Tomé de ver as marcas da crucifixão, de tocar as chagas dos pés e
das mãos e o lado aberto de Jesus, não é de todo descabida, bem pelo contrário
é até bastante razoável, uma vez que o apóstolo exige um mínimo de garantias
para fundamentar o seu acreditar na ressurreição do Mestre.
Surpreendentemente
verifica-se, pelo relato do Evangelho, que Jesus não se escusa a essa
exigência, mas vem ao encontro daquele que exige, concedendo-lhe mesmo a
possibilidade de tocar. Na aparição em que Tomé está presente Jesus convida-o a
lançar mão das provas que exigia anteriormente, a provar a evidência da
presença viva daquele que tinha sofrido a paixão e a morte.
Contudo, paralelamente
a esta oferta, Jesus faz a Tomé uma exigência, convida-o a dar um outro passo,
muito mais fundamental para a experiência viva do ressuscitado, Jesus convida
Tomé a deixar de ser incrédulo e a ser crente.
Este desafio, esta
exigência de Jesus ressuscitado, mostra o que verdadeiramente está em jogo,
mostra que não são as provas evidentes que Tomé tem diante dos olhos que lhe
podem garantir a verdade da ressurreição, mas é a experiência e a leitura do
que aquelas provas testemunham, e que ele tem que fazer, que lhe podem garantir
essa verdade.
Face às provas
evidentes e tangíveis que Tomé tem diante dos olhos, a exigência de Jesus
mostra-nos, como mostrou a Tomé, que o ver é diferente do perceber, do
apreender, que o ver não corresponde directamente ao acreditar, que afinal as
chagas das mãos e dos pés e o lado aberto são mais que sinais de um suplício
superado, são sinais de um grande amor, da misericórdia e do perdão que Jesus
não deixa de oferecer ainda hoje.
Amor, misericórdia e
perdão que estão presentes sempre que Jesus se manifesta no meio dos discípulos
e os saúda com um voto de paz. Voto que é um convite a sair da culpabilidade, a
deixar de ter medo, a deixar de estar encerrados, porque tal como antes tinha
dito, a sua vida e a sua morte eram um puro dom, era ele que a dava e ninguém
lha tirava, e portanto nenhum deles se podia sentir culpado do que tinha
sucedido.
Face a esta
compreensão da paixão e morte como dom de amor, correspondido expressivamente na
ressurreição daquele que todo se tinha dado, é fácil perceber que Tomé não
tenha tido mais necessidade nenhuma de tocar as feridas dos cravos e da lança,
e se tenha lançado na mais bela confissão dos Evangelhos ao proclamar “meu
Senhor e meu Deus”.
A experiência de amor,
da misericórdia divina, de que Tomé é objecto repercute-se na missão que é
entregue aos discípulos depois de terem recebido o Espirito Santo, na missão de
perdoarem os pecados. Na continuação do perdão alcançado por Jesus, pelo seu
sacrifício de amor, os discípulos são convidados a levar o perdão a todos os
homens, a viver a misericórdia e a possibilitarem a experiência do ressuscitado
a todos os homens.
Ressureição e
sacramento da reconciliação tornam-se assim manifestações da mesma misericórdia
de Deus, manifestações que não podem ser vistas na ordem do sensível, abarcadas
pelos nossos sentidos, mas que apenas são compreensíveis e perceptíveis quando
iluminadas e lidas pelo Espirito Santo, pelo dom do amor.
Dom que como vimos
estruturou a primeira comunidade cristã, uma comunidade que à luz do amor
misericordioso nos é apresentada a partilhar os seus bens, a viver em comum, a
ter uma só fé e um só coração, porque tinha a experiência viva do ressuscitado
presente no meio dela.
Este mesmo desafio é
hoje colocado a todas as comunidades cristãs e a cada um de nós em particular;
e a Eucaristia que celebramos é a oportunidade de tomarmos consciência da
presença de Jesus ressuscitado entre nós, presente no seu corpo e sangue, na Palavra
que escutámos, na união que vivemos quando nos reunimos em seu nome.
Cada celebração da
Eucaristia torna-nos visível Jesus ressuscitado mas igualmente participantes da
sua ressurreição, o que nos deveria fazer sair pelo mundo cheios de alegria e
confiança, capazes de viver a misericórdia através de um mundo comum mais
justo, mais fraterno, mais de acordo com o plano amoroso de Deus.
Que os exemplos dos
Papas João XXIII e João Paulo II, que tanto procuraram construir um mundo
misericordioso, nos ilumine e fortaleça no nosso construir quotidiano.
Ilustração:
1 – “Cristo aparecendo
a Tomé”, pintura russa contemporânea, Andrey Mironov.
2 – “Jesus aparece aos
discípulos”, pintura russa contemporânea, Andrey Mironov.