domingo, 25 de outubro de 2020

Homilia XXX Domingo do Tempo Comum - Ano A

A leitura do Evangelho de São Mateus que escutámos apresenta-nos mais uma discussão de Jesus com os fariseus, mais um confronto na linha dos que temos vindo a assistir nos últimos domingos na leitura do Evangelho.

Hoje, a questão que os fariseus colocam prende-se com os mandamentos, querem saber na opinião de Jesus qual deles é o maior, e não deixa de ser uma questão pertinente na medida em que sabemos que aqueles homens e mulheres viviam subjugados a uma panóplia diversificada de seiscentos e sessenta e cinco mandamentos ou preceitos. Afinal o que é verdadeiramente importante, significativo.

Novamente, e à semelhança dos confrontos anteriores, Jesus responde utilizando a Sagrada Escritura, citando os textos que os seus interlocutores conheciam do estudo que lhes dedicavam. “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu espírito”. Para dizer qual é o maior dos mandamentos Jesus cita uma passagem do Livro do Êxodo. Resposta perfeita, irrepreensível, poderíamos dizer.  

No entanto, é esta mesma perfeição, e a satisfação idolátrica que podia gerar, que leva Jesus a imediatamente dizer que há outro mandamento semelhante a este, igualmente irrepreensível, ainda que diverso do primeiramente formulado, “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Um mandamento do Livro do Levítico, do livro das coisas sagradas.

A resposta dada por Jesus podia, no entanto, dar azo a objeções, a alguma questão justificativa, como aconteceu no caso do doutor da lei que se queria justificar sobre quem seria o seu próximo e nos possibilitou a parábola do bom samaritano. Para evitar esta derivações Jesus remata as suas respostas dizendo que nestes dois mandamentos se resumem toda a Lei e os profetas. O amor a Deus e o amor ao próximo são as faces da mesma moeda.

Ao responder desta forma aos seus interlocutores, Jesus coloca o acento no que era verdadeiramente importante, central, o amor, que se devia traduzir no amor a Deus e no amor ao próximo e que entre ambos não havia nenhuma incompatibilidade, bem pelo contrário se complementavam e alimentavam.

Esta afirmação de Jesus vem hoje ao nosso encontro e coloca-nos face à duplicidade de critérios que tantas vezes usamos para estar com Deus, para nos relacionarmos com Deus, e para estar com os irmãos, com os outros homens e mulheres. Quantas vezes não vivemos num abismo que nos divide no amor, esquecendo-nos que um e outro se alimentam mutuamente. Não podemos amar a Deus sem amar os irmãos e nem amar verdadeiramente os irmãos se não amarmos a Deus, como lapidarmente nos recorda a Primeira Carta de São João.

A grande questão que se nos coloca, e deriva da resposta de Jesus, é se o nosso amor a Deus e aos irmãos é por obrigação, porque nos está preceituado, ou porque o consideramos como algo natural à nossa própria essência, como uma força que nos habita e transforma, um dom que nos transcende e por isso reivindica ser partilhado.

Se assumimos a prescrição do amor, o amor como algo que nos é imposto a viver de forma regulamentada, esse amor ficará sempre na superfície, como uma máscara, que não nos permitirá desfrutar plenamente nem do amor de Deus, nem do amor de nós próprios, nem do amor do outro. Poderemos dizer que será como uma armadura para vencer os nossos apetites devoradores, a nossa tendência animal a ver no outro uma presa a abater, um adversário ou um obstáculo a vencer.

Pelo contrário se assumirmos o amor como um dom, um fruto do Espírito Santo, a participação na natureza do mesmo amor que é gerado mutuamente entre o Pai e o Filho no âmbito da Santíssima Trindade, amar a Deus, amar o outro e amarmo-nos a nós próprios será uma dinâmica transformadora da nossa vida, porque afinal o nosso amor é participação num outro amor maior, numa dinâmica interpessoal que nos leva à plenitude.

Num mundo em que tudo nos aparece regulamentado, em que há tantas leis de protecção, mas no qual parece que os instintos devoradores estão cada vez mais galopantes e desenfreados, somos chamados a ser testemunhas do amor para os outros homens e mulheres. Testemunhas frágeis, certamente muito limitadas e pobres, mas testemunhas de que há um amor que nos assume e capacita para não nos deixarmos devorar pelos apetites.

É o testemunho da paciência para com o familiar ou colega de trabalho, da amabilidade para com um estranho, da atenção para com o ignorante, da partilha simples com quem aqueles que não têm, e tantas vezes apenas necessitam de um ombro amigo, de um ouvido que escute, de um olhar de ternura. É o testemunho de encontrar no outro a presença de Deus, o abismo do amor que tantas vezes espera apenas uma ponte para ser vivido plenamente e com alegria.

À semelhança dos cristãos de Tessalónica, a quem Paulo se dirigia na Carta cuja leitura escutámos, que também em nós ressoe a Palavra de Deus que escutámos neste domingo e nesta celebração, e pelo amor partilhado nos gestos e palavras desta semana que vamos iniciar os nossos irmãos se possam encontrar com Deus e o seu amor e o louvem pela alegria desse encontro transformador.

 

Ilustração:

1 – Jesus e os fariseus, de James Tissot, Brooklyn Museum, Nova York.

2 – Santíssima Trindade, de Sandro Botticelli, Courtauld Institute of Art, Londres.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Carta de Frei João de Mansilha ao Vigário in Capite do Convento do Porto

 

A 8 de Julho de 1775 Frei João de Mansilha, Visitador da Província de Portugal, escreve ao Vigário in Capite do Convento de São Domingos do Porto, Frei Manuel de Seabra, e face aos distúrbios devido à divisão de governo institui o Vigário como Prior do Convento.

Reverendo Padre Presentado Vigário in Capite do nosso Convento de São Domingos do Porto.

Depois de ter mandado algumas providências precisas para o sossego e para o bem comum desse nosso Convento, continuamos a dar mais algumas outras, entre as quais é arrancar a semente das discórdias, que quase e sempre resultam em um governo a que presidem muitas cabeças; como a experiência tem mostrado no caso presente, no qual a Vossa Paternidade se atribui o governo da espiritualidade, e ao Padre Leitor Frei António de São Bernardo o da temporalidade; do que tem resultado todos os embaraços, e desconcertos, que a Vossa Paternidade tem afligido e a nós tem tomado muito tempo, que devemos empregar em coisas mais úteis à nossa Ordem.

Há muito tempo tínhamos nós previsto esta dificuldade; motivo porque já em parte provemos alguns remédios que fizessem cessar: não sendo porém suficientes para o restabelecimento da paz, e da observância regular, que devemos estabelecer nesse, e em todos os Conventos da nossa jurisdição; nos resolvemos mandar a Vossa Paternidade a Patente inclusa de Prior.

Ao mesmo tempo lhe mandamos também a outra Patente, pela qual Nomeamos e Instituímos a Vossa Paternidade Colector e Administrador das Esmolas, Bens e Rendas do Sagrado Lausperene do Senhor Jesus desse Convento. Assim que Vossa Paternidade receber esta nossa Carta mandará chamar à sua cela ao Reverendo Padre Leitor Frei António de São Bernardo, e lhe dará a Carta inclusa, que lhe escrevemos, na qual lhe ordenamos execute o que pela dita nossa Patente determinamos a respeito da entrega da Administração do Sagrado Lausperene; e ao mesmo tempo lhe damos certas providências para que o dito Padre nem fique desgostoso nem deteriorado; antes sim muito satisfeito.

Remetendo-nos à Carta que escrevemos a Vossa Paternidade no correio passado, esperamos que neste novo emprego e em tudo o que a ele respeita haja Vossa Paternidade de proceder com aquela probidade e zelo que até o presente tem praticado; pois que do contrário lhe não poderão resultar as boas consequências que Nós muito lhe desejamos.

Deus guarde a Vossa Paternidade Reverendíssima

São Domingos de Lisboa em 8 de Julho de 1775  

domingo, 18 de outubro de 2020

Homilia XXIX Domingo do Tempo Comum - Ano A

Caríssimos Irmãos

Certamente já todos ouvimos dizer que Jesus foi um revolucionário, certamente nós próprios já o afirmámos em algum momento, em algum debate. Podemos dizer que se utiliza esta categoria para falar e apresentar Jesus aos mais novos, num ímpeto de apresentar aquele em quem acreditamos como alguém que se configura com o nosso desejo de mudança, com o nosso sonho de um mundo melhor.

Contudo, e a bem da verdade, Jesus não foi um revolucionário e muito menos um idealista, por muito que isso nos custe e até nos dificulte o discurso sobre ele. E a passagem do Evangelho de São Mateus que escutamos hoje dá-nos claramente essa informação. Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Desolação para os herodianos e fariseus que pretendiam apanhar Jesus numa manifestação revolucionária e de desobediência, assim como para os zelotas independentistas que perceberam que Jesus jamais tomaria o partido da luta armada contra o invasor e opressor.

Para compreender melhor a marginalidade da política de Jesus, a sua posição ideológica, se assim podemos falar, basta-nos olhar para o exemplo de duas grandes revoluções, a revolução francesa de 1789 e a revolução russa de 1917, e lê-las à luz dos critérios apresentados nos tratados e ensaios políticos, como o de Louis Latzarus de 1928.

Qualquer revolução começa sempre por um movimento idealista, por uma proposta de algo inatingível, mas ainda assim atractivo e passível de existir, como a igualdade para todos. Esse ideal move os homens à acção e nesse movimento surgem os demolidores, aqueles que na sua acção destroem as estruturas e a organização social e política, como se tudo fosse mau e se tivesse que começar do zero, um novo mundo que deve surgir. O caos gerado nesta destruição conduz ao aparecimento do tirano, do salvador da pátria que tudo subjuga para que a ordem seja restabelecida, numa proposta ainda idealista de que é para o bem de todos.

Face à logica e desenvolvimento deste processo Jesus não pode ser visto como um revolucionário, pois não quis demolir nada, apenas entregou o templo do seu corpo para ser destruído; nunca se apresentou com aspirações de tirano, mas concedeu a liberdade a todos os que eram escravos do pecado e da marginalização religiosa; e muito menos pode ser considerado um idealista, uma vez que não nos apresenta um ideal inatingível, mas pelo contrário um projecto muito concreto, muito humano, que não conduz a uma ilusão.

O Jesus que os Evangelhos nos apresentam é um homem simples, humanamente desconcertante na sua simplicidade e pureza, no seu acolhimento dos outros, mesmo daqueles que atentam contra si, um homem que é reconhecido como o Messias de Deus pelo caminho de libertação que nos revela e oferece. Por isso se nos torna tão difícil falar dele às vezes, na medida em que é difícil falar de liberdade.  

E para cada um de nós, seus discípulos, é esta a dimensão que nos interessa e deve ocupar, pois também a cada um de nós é confiada esta missão de libertação, tal como foi confiada ao rei Ciro da Pérsia, que a leitura do profeta Isaías nos apresentava. Um pagão, um estrangeiro, é eleito e enviado por Deus para reconduzir o povo de Israel à sua terra, para o libertar da escravidão nos países estrangeiros. Ciro é um ungido de Deus como vai ser Jesus, apesar da dimensão e natureza das missões ser completamente díspar.

Como cristãos que estamos no mundo e convidados a transformar o mundo em que nos encontramos, a resposta de Jesus à interpelação dos fariseus e herodianos sobre o tributo a pagar a César é iluminadora da nossa relação com a política e o mundo; afinal não estamos chamados a provocar uma revolução, mas a desenvolver uma libertação. Essa é a nossa missão de baptizados.

No contexto histórico em que nos encontramos, quando o desânimo nos ataca e surgem desejos de revolução, provocados pelas injustiças e incoerências, temos que discernir os modos de proceder, de modo a não cairmos na tentação de uma revolução, mas a conduzirmos conjuntamente uma verdadeira e profunda libertação de todos.  

Neste sentido, é de todo urgente atentar nas palavras de São Paulo aos cristãos da comunidade de Tessalónica. “Recordamos a actividade da vossa fé, o esforço da vossa caridade e a firmeza da vossa esperança”. Três virtudes teologais, fé, esperança e caridade, e três virtudes morais, disposições para actuar bem, acção diligente, esforço paciente, firmeza perseverante.

Assim, nesta semana que agora vamos iniciar, que as nossas palavras e gestos estejam iluminados e marcados pela fé, pelo sentido de que Deus nos chama e nos envia a fazer o bem, a colaborar na sua obra da criação, de uma forma diligente, sem preguiça e sem medo; que a nossa caridade apesar do que possa implicar de esforço e paciência não deixe de estar presente em pequenos gestos de atenção ao outro, somos responsáveis uns dos outros, “fratelli tutti”; e por fim, que sejamos perseverantes na esperança, porque pode não acabar tudo bem, para as vítimas mortais da pandemia não vai acabar bem, mas ainda assim que a nossa consciência não nos acuse de termos deixado alguém para trás, de termos derrotado alguém com uma palavra de desalento.

Demos a César o que é de César, ao mundo o que pertence à idolatria do mundo e às suas forças, e a Deus o que é de Deus, a divina humanidade de cada um de nós cuidada diligentemente com amor e humildade.

Que a Senhora do Rosário nos proteja e acompanhe na missão destes dias.


Ilustração:

1 – Dai a César o que é de César, de Jacek Malczewski, Museu Nacional de Poznan.

2 – Ciro e os Hebreus, de Jean Fouquet, Antiguidades Judaicas, Biblioteca Nacional de França.

 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Homilia XXVII Domingo do Tempo Comum - Ano A

Queridos Irmãos

O Evangelho de São Mateus continua a apresentar-nos o conflito de Jesus na cidade santa de Jerusalém com os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo. Sabendo que não tem nada a perder, Jesus é cada vez mais audaz e confronta as autoridades religiosas com a inevitabilidade da perda da aliança com Deus face à infidelidade a essa mesma aliança.

No domingo passado a infidelidade era apresentada através da parábola dos dois filhos convidados a trabalhar na vinha do pai, hoje essa infidelidade e as suas consequências são apresentadas nesta parábola conhecida como dos vinhateiros homicidas. Tomando como pano de fundo a profecia de Isaías que escutámos na primeira leitura, Jesus apresenta aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo a sua infidelidade, a falta de cuidado da vinha do Senhor, e a consequente perda dessa vinha para outro povo que dará a seu tempo o que é devido.

A consequência da falta de cuidado da vinha e da recusa em entregar os seus frutos a devido tempo é intemporal e por isso pode estar também à espreita na nossa vida, se não nos precavermos e não tivermos cuidado com os dons que nos são concedidos, com a graça de Deus, pois não só somos também vinhateiros da vinha do Senhor, mas somos primordialmente a própria vinha, as videiras escolhidas que foram plantadas pelo Senhor, e possuímos desde já a herança que o Filho nos alcançou, razão para não o matarmos e lançarmos fora da vinha com as nossas incoerências e infidelidades, com o nosso pecado.

A verdade, é que nos é muito mais fácil perceber e assumir o papel dos vinhateiros, a função de administradores. Temos um conjunto de dons que administramos, o que nos dá prazer e satisfação, que de certa maneira nos satisfaz no nosso desejo de propriedade e apropriação. Contudo, já não é tão fácil perceber nem assumir que a propriedade não é nossa, e mais ainda, que esta propriedade só tem existência substancial na medida em que está ligada, filiada a uma outra existência, a outra pessoa que é Deus. Afinal nós somos as vides enxertadas na única cepa que é Cristo e da qual recebemos a seiva que nos alimenta e faz produzir frutos.

Assim, a nossa função de vinhateiros é fundamentalmente uma função de canalizadores ou catalisadores da seiva que circula da nossa relação com Jesus Cristo, uma seiva que leva por si própria, pela sua vitalidade intrínseca, à produção dos verdadeiros frutos, que devemos deixar crescer e desenvolver na nossa própria vida e existência. Estes frutos são já participação antecipada na herança, uma vez que são geradores de plenitude, de sentido de realização, de felicidade, da configuração com o Filho de Deus.

Não é no entanto fácil viver nesta dinâmica, de certa forma nesta dependência relacional, e por isso deixamo-nos muito facilmente vencer pelo nosso orgulho, pelo nosso desejo de ser donos e senhores da vinha e dos frutos, e desta forma possibilitamos que entre no nosso coração a inquietação, uma espécie de turbulência que nos distrai de nós próprios, dos outros e fundamentalmente de Deus. Assim, é com muita frequência que escutamos e dizemos na confissão que na nossa oração somos frequentemente invadidos por pensamentos e problemas que nos distraem na nossa oração, que nos impedem de experimentar a paz da oração.

Perante tal realidade, São Paulo deixávamos na leitura da Carta aos Filipenses um conselho, uma sugestão, que é o de apresentarmos a Deus as nossas inquietações, o de fazermos oração a partir dessa turbulência que nos invade, pois dessa maneira não só estamos a libertar o espírito das inquietações, mas com elas estamos a apresentar as pessoas, os problemas, que à luz de Deus encontram outra dimensão, outros contornos, uma paz que apenas Deus nos pode conceder. No entanto, temos de assumir que muitas vezes esta intranquilidade, estas inquietações são também falta da vivência das virtudes de que igualmente a mesma Carta nos fala. Quando olhamos para os nossos pensamentos, palavras e acções, quanto podemos avaliar de verdade e nobreza, de justiça e pureza, de amabilidade e boa reputação?

E no entanto São Paulo recomenda-nos que todas estas virtudes devem estar no nosso pensamento, devem cunhar tudo o que fazemos e somos. Na medida em que elas estão presentes, nos moldam, a paz de Deus guardará os nosso corações, libertar-nos-á da turbulência das inquietações na oração, e fará com que o nosso espírito seja mais livre, mais humilde, mais confiante na aceitação da vida que Deus nos concede enquanto intimamente ligados a Ele.

Procuremos pois, nesta semana que vamos iniciar, pautar o nosso agir por alguma destas virtudes, para que possamos não só estar mais em sintonia com Deus, mas também mais fortes para partilharmos a vida com os nossos irmãos a quem o Senhor nos envia para ajudar na recolha dos bons frutos. Que o Espirito de Deus nos inspire e ilumine.

Ilustração:

1 - Os vinhateiros homicidas, de Domenico Fetti, Currier Museum of Art, Mancheste, New Hampshire.