domingo, 27 de dezembro de 2015

Homilia da Festa da Sagrada Família

No domingo imediato à celebração do Natal do Senhor somos convidados a celebrar festivamente a Sagrada Família de Jesus, Maria e José, somos convidados a celebrar o dom da família, base e célula fundamental da sociedade, mediação estruturante da realização plena da pessoa humana.
As imagens da Sagrada Família que moldaram o nosso imaginário, algumas devoções e certa espiritualidade familiar ficam em muitos aspectos distantes da verdade e da realidade da experiência da família de Nazaré. Moldada por algumas histórias que nos aparecem nos Evangelhos Apócrifos imaginámos uma família perfeita, sem problemas, uma família em que a santidade dos seus membros e a presença do próprio Verbo de Deus feito carne resolvia tudo.
E, contudo, a realidade que os Evangelhos nos transmitem não é assim tão perfeita, bem pelo contrário, apresenta-nos uma família que tem problemas, que enfrenta situações desafiantes, que tem que encontrar respostas para os seus problemas.
Podemos começar na questão que perturba José quando sabe da gravidez de Maria, passar ao nascimento do menino numa gruta de animais porque não havia lugar para eles na hospedaria, olhar a perda de Jesus no templo aos doze anos e que o Evangelho de hoje nos apresenta. Podemos ver a necessidade de emigrar para o Egipto para escapar à morte, a pressão familiar junto de Maria para fazer regressar o filho a casa considerado louco, o sofrimento da paixão e da morte de um filho como um criminoso.
A Sagrada Família de Nazaré não se distancia muito das nossas famílias, das famílias de todos os tempos nos desafios e problemas que tem que enfrentar. Também hoje temos membros das nossas famílias emigrados, outros sem trabalho, alguns doentes, outros que nos colocam questões e exigências que muitas vezes não sabemos como responder.
Mas se a Sagrada Família de Nazaré se aproxima da realidade das famílias, e se a Igreja nos propõe no dia de hoje esta festa, é para nos convidar e ajudar a encontrar respostas para os nossos problemas, situações e desafios tal como a família de Jesus, Maria e José o fizeram. Neste sentido, o acontecimento da perda de Jesus no templo de Jerusalém pode ajudar-nos a compreender as respostas que necessitamos encontrar.   
Respostas que assentam no paradigma do crescimento em sabedoria, estatura e graça; que no caso do Evangelho que lemos se aplica directamente ao crescimento de Jesus, mas que de facto se aplica a todos nós. A família tem como missão possibilitar o crescimento em todas as dimensões, um crescimento estruturante da nossa pessoa e que nos conduzirá à plenitude da realização humana.
Poderíamos dizer que a família é o ambiente propício para a realização de todas as vocações, a dinâmica que possibilita o desenvolvimento de todos os dons, e como tal da pessoa em toda a sua potencialidade e plenitude.
O homem desenvolve-se como companheiro, como esposo, como pai, como amigo, como trabalhador responsável, como educador e transmissor de valores, como testemunha da fé e da esperança. A mulher desenvolve-se como esposa e companheira, como mãe, como fonte de carinho e ternura, como testemunha do amor para os seus filhos. Os filhos desenvolvem-se reflectindo o respeito e o carinho dos pais, o sentido da responsabilidade, a esperança e a confiança apreendida nas conversas dos seus pais.
A família permite assim o desenvolvimento em ordem à plenitude humana, o desenvolvimento da sabedoria sempre acrescentada das experiências de cada um, mas permite igualmente o desenvolvimento da graça, na medida em que cada um sendo fiel à sua missão, aos dons recebidos, vive cada vez mais e melhor e desenvolve em si a santidade a que é chamado.
Encontramo-nos assim todos na mesma circunstância que Jesus menino ao responder a Maria que devia ocupar-se da casa e das coisas de seu Pai. Também nós nos devemos ocupar das coisas e da casa do Pai, que não são nada mais que os nossos irmãos, aqueles que partilham a nossa vida e são templo de Deus, habitação da presença de Deus.
Desta forma, e tal como recomenda São Paulo aos Colossenses, que todas as nossas obras, palavras, gestos, tudo o que fizermos, seja sempre em nome de Jesus Cristo e seja sempre para a plenitude e perfeição do próximo, de modo que todos se sintam e saibam filhos muito amados de Deus.

 
Ilustração:
“A Sagrada Família do passarito”, de Bartolomé Esteban Murillo, Museu do Prado.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Também eu te ofereço! (1 Sm 1,28)

Ana tomou Samuel, seu filho, consigo e conduziu até à casa do Senhor. O menino era ainda muito pequeno. Ao chegar ao santuário ofereceu-o para que fosse consagrado ao Senhor todos os dias da sua vida.
Nesta nossa caminhada de Advento e ao terminar este dia também nós vimos junto de ti Senhor oferecer-te e consagrar-te o que fizemos neste dia. É tudo tão pequeno, tão pobre e frágil, mas acreditamos que ainda assim, ou por ser assim, tu o aceitas com alegria.
Procurámos com as nossas forças, de uma forma sóbria e natural, fazer o que devíamos fazer, levar a cabo as nossas obrigações e responsabilidades. Pedimos a luz e a força do teu Espirito, para que as palavras e os gestos fossem de paz, mas encontrámos o outro e na sua diferença chocámos nas cargas que cada um transporta.
Ana, juntamente com Samuel, dirigiu-se ao templo com um novilho, três medidas de farinha e um odre de vinho. O novilho para o sacrifício, a farinha para alimento e o vinho para a festa. Mas nós vimos até ti Senhor sem praticamente nada.
Esquecemos o novilho, porque nesta cultura do fácil e provisório não nos apetece abdicar de nada, não estamos dispostos a sacrificar nada, e muito menos a nossa vontade. Falta-nos o pão porque tão pouco soubemos ser alimento na vida do outro e o vinho da alegria ficou por derramar nos encontros que tivemos. Vimos assim Senhor de mãos vazias!
Aceita Senhor o que te oferecemos, as nossas mãos vazias e o nosso corpo exangue, o cansaço e as derrotas deste dia. Aceita Senhor a nossa humanidade ferida e com o teu amor transfigura-a, renova-a, e que amanhã o dia desponte com uma nova luz, com a alegria do teu encontro.

 
Ilustração:
“Ana entrega Samuel a Heli”, de Gerbrand van den Eeckhout, Museu do Louvre.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Maria pôs-se a caminho! (Lc 1,39)

Começou a semana do Natal, e com ela a nossa agitação adquire um outro grau, uma urgência que nos faz sentir como se o tempo voasse. Falta-nos tempo para tudo e ainda nos faltam tantas coisas!
Desenfreados pomo-nos a caminho dos centros comerciais, das lojas que lançam a última promoção, desesperamos porque o trânsito não desenvolve e a fila para o pagamento na caixa também não.
Corremos de um lado para o outro, ainda falta a prenda de tal, ainda nos falta este doce de Natal, e no fim de tantas voltas o que desejávamos já está esgotado, ficamos irritados porque o cliente anterior acabou de adquirir o último modelo das existências.
No meio de todas estas correrias esquecemos que estamos a caminho, e que para se chegar à meta do Natal é necessário cuidado, poderíamos dizer até uma certa disciplina, para não nos perdermos, para não desesperarmos, para não chegarmos exaustos.
Necessitamos assim recolocarmo-nos no caminho, no caminho para o encontro de nós próprios e dos outros que gozarão da nossa presença reencontrada. Não podemos ir ao encontro dos outros como um embrulho de Natal sem nada dentro, necessitamos preencher o embrulho do melhor de nós próprios.
Falta perto de uma semana para o Natal e é tempo de parar, de olhar para cada um de nós e perguntar o que vamos oferecer de nós próprios aos outros. Pode ser a nossa esperança, a nossa fé, a nossa confiança, a nossa alegria de viver…
Para me oferecer aos outros vale a pena pôr-me a caminho como Maria!

 
Ilustração:
“Virgem Maria do retábulo da Visitação”, Reno Palatinato, Dorotheum, Alemanha.

domingo, 20 de dezembro de 2015

Homilia do IV Domingo do Advento

O Advento aproxima-se do seu termo e celebramos já o quarto domingo deste tempo e caminhada de preparação para a celebração do Natal do nosso Salvador Jesus Cristo Senhor. Iniciamos a quarta semana já com um ar de alegria, de festa, pois Maria sai alegre de sua casa a visitar Isabel sua prima que se alegra com a visita.
Neste acontecimento, nesta visita de Maria a Isabel, que o Evangelho de São Lucas hoje nos apresenta, podemos ver uma espécie de parábola do próprio mistério da encarnação que celebramos no Natal. Tal como Maria também Deus vem alegremente ao nosso encontro.
Desta forma, e perante este mistério da visitação de Deus, podemos colocar a questão que Isabel colocou quando viu Maria diante de si: como me é dado que venha ter comigo? Para nós não se trata já tanto da Mãe do meu Senhor, mas do próprio Senhor que vem ter connosco. Como é possível?
A leitura da Epístola aos Hebreus que escutámos dá-nos a resposta para esta questão, uma vez que nos diz que não agradaram a Deus os holocaustos e os sacrifícios, o culto exterior, a idolatria que escraviza o homem. Havia por isso necessidade da encarnação do Filho, a formação de um corpo de homem, para que todos os homens pudessem saber que o desejo de Deus, o que agrada a Deus é a realização da sua vontade. E ela é alcançada na nossa humanidade!
A visita de Deus à nossa humanidade, o mistério da encarnação, é assim para nos mostrar que é na nossa condição humana com as suas limitações e fragilidades que nos podemos encontrar com Deus. O mistério da encarnação vem sublinhar de forma vincada e iluminar com todo o brilho a criação do homem à imagem e semelhança de Deus que nos é apresentada no livro do Génesis.
Perante esta realidade o nosso coração deve rejubilar de alegria, deve viver na alegria de se saber amado e querido de Deus, filho de Deus, deve viver na paz que o próprio Jesus nos alcançou com a encarnação, através da qual experimentou a morte mas também nos alcançou a graça da redenção.
São esta paz e esta alegria que nos levam a sair ao encontro do outro, pois à semelhança do próprio Deus elas projectam-nos para fora de nós próprios. Ficar encerrado em si próprio, viver egoisticamente, egocentricamente, é contrariar esta dinâmica da alegria e da paz de Deus, é aniquilar a vitalidade divina semeada na humanidade pelo próprio Filho de Deus ao fazer-se homem como nós em tudo menos no pecado.
A visita de Maria a sua prima Isabel e ainda mais o nascimento de Jesus desafiam-nos nesta dinâmica, nesta necessidade de ir ao encontro do outro para que a alegria e a paz possam ser mútuas, para que o projecto de Deus chamado homem se realize plenamente.
É certo que teremos que atravessar dificuldades, teremos que atravessar as montanhas como Maria, mas na medida do nosso compromisso com esta dinâmica poderemos fazer a experiência da bem-aventurança, da felicidade de ver realizado tudo o que nos foi dito e anunciado.   
Nestes dias que nos faltam para a celebração do Natal do nosso Redentor, que possamos fazer a experiência do encontro, de sairmos ao encontro do outro e de acolhermos o outro.
Se não formos capazes de abrir o nosso coração, e o que também não é fácil que é o nosso tempo disponível, ao outro que vive ao nosso lado e partilha a nossa vida, a nossa celebração do Natal será certamente mais pobre, menos luminosa e alegre.
Saibamos sair ao encontro do outro, saibamos acolher o outro que vem ao nosso encontro, e então estaremos certamente juntos a adorar o menino Deus na noite mais bela de todas as noites, na noite que desvela a alegria da eternidade.

 
Ilustração:
“Visitação”, de António de Pereda y Salgado, Museu Lázaro Galdiano, Madrid.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Não temas! (Mt 1,20)

O Evangelho apresenta-nos José como um homem justo, e é na sua justiça humana que decide repudiar Maria em segredo, ela que espera um filho que não é seu.
Decisão congeminada no caldo dos seus valores ancestrais, na cultura patriarcal, mas também no carinho e ternura por aquela que lhe estava prometida.
Podemos imaginar as questões que se lhe colocaram, as dúvidas e as várias hipóteses de solução, num balancear entre o amor e a lei.
Após a decisão tomada, durante a noite e o tormento que ela representa, o enviado de Deus, um anjo, que o desafia a não temer e a acolher Maria com tudo o que ela significa de novidade e aventura.
Ao acolher Maria com todo o risco inerente, e dessa forma a vontade de Deus, José assume o papel e o lugar que lhe compete no plano de Deus, e dessa forma realiza também a verdadeira paternidade ou maternidade a que todos somos chamados.
Com a sua decisão de acolher Maria, apesar dos sentimentos que o perturbavam, José recorda-nos que ao acolher e aceitar a vontade de Deus, estamos a possibilitar que a fecundidade de Deus se realize em cada um de nós.
O temor e o medo face aos convites e apelos de Deus são assim sentimentos que devemos afastar do nosso coração, um coração aberto e disponível para que Deus nasça, a fecundidade aconteça, agora e sempre, de acordo com a vontade de Deus.

 
Ilustração:
“O sonho de São José”, de Pierre Parrocel, Catedral de Nimes.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Que fostes ver ao deserto? (Lc 7,24)

Os discípulos de João saem de cena, regressam para junto do mestre do deserto com o que viram fazer a Jesus.
Entretanto Jesus questiona a multidão sobre o profeta João, afinal o que foram ver ao deserto, porque muitos dos que se dirigiram até João foram movidos apenas pela curiosidade.
O que tinham ido ver? Uma cana agitada pelo vento? Um homem vestido de roupas finas? Um profeta? O maior dos profetas?
A pergunta de Jesus continua actual, e muito mais ainda nesta nossa caminhada de Advento, que podemos considerar como um tempo de deserto.
Que procuramos ver nesta nossa caminhada de Advento? No nosso deserto com quem nos encontramos? Porque a ida ao deserto implica sempre um encontro.
Podemos encontrar a cana agitada pelo vento, a fraqueza das nossas limitações que são agitadas pelas contingências da nossa existência.
Não encontraremos as roupas finas porque nos encontraremos nus ou então apenas cobertos pelas nossas infidelidades e incoerências.
Encontraremos o profeta, ou a sua voz, o apelo à conversão, à mudança de vida, porque no deserto ecoa sempre esse apelo.
E encontraremos sobretudo a força de Deus, a força que nos ajuda a dizer que nem só de pão vive o homem, que só a Deus serviremos porque só Deus tem palavras de vida eterna, que somos filhos de Deus.
 
Ilustração:
“São João no deserto”, de Domenico Veneziano, National Gallery of Art

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

És tu Aquele que devia vir? (Lc 7,19)


João Baptista encontra-se na prisão e face ao que ouve contar de Jesus envia dois dos seus discípulos interrogar Jesus. É ele aquele que devia vir, aquele que João tinha anunciado estar para vir, ou deviam continuar a esperar?
Jesus realiza diversas curas diante deles para que pudessem levar a resposta a João. Não era uma confirmação verbal que atestava a novidade, mas a acção realizada, os gestos que manifestavam que algo novo estava a acontecer.
Também nós, das nossas prisões, lançamos muitas vezes esta questão, perguntamos se podemos esperar, se não se trata tudo de um equivoco, de uma alienação para não enfrentarmos por nós próprios e com as nossas forças os desafios e batalhas.
Poderíamos pensar que é uma tentação, certamente algumas vezes é, mas na maior parte dos casos é o resultado do nosso cansaço, dessa experiência de prisão na qual já não vemos luz para dar mais um passo, para continuar a manter acesa a chama da esperança. 
E, contudo, é aí que Jesus mais está presente, que Jesus mais se revela como aquele que é, como aquele em quem devemos colocar a nossa esperança. Esta esperança não nos é garantida por uma palavra, ou por um discurso, não foi assim que Jesus respondeu aos discípulos de João, mas por um conjunto de sinais, frequentemente silenciosos, que nos manifestam a acção de Deus.
O olhar terno de uma mãe para com o seu filho, a noite em claro passada à cabeceira do doente, a compreensão de um filho pelo desaire de mãos do seu pai idoso, a palavra de ânimo de alguém que nem conhecemos, um sorriso trocada com um criança num banco de autocarro, a flor que radiosa ilumina o recanto do nosso gabinete de trabalho, uma ideia genial depois de um dia de trabalho desgastante e árido de ideias criativas.
Quantos milagres acontecem no nosso quotidiano e no mostram a presença de Deus, que Jesus é aquele que devemos esperar e no qual devemos colocar a nossa confiança. A João faltam-lhe elementos para alicerçar a sua confiança, e por isso as curas que Jesus realiza, mas a nós não nos faltam elementos, e para além deles ainda temos a promessa deixada aos discípulos de que estaria com eles até ao fim dos tempos. Acreditamos?

 
Ilustração:
“A prisão de São João”, fresco de Joseph Anton Hafner, igreja de Oberzell.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Arrependeu-se e foi trabalhar na vinha do pai! (Mt 21,29)

Jesus encontra-se com os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo e face à sua atitude não pode deixar de os provocar. Trata-se de tentar uma vez mais um processo de conversão.
E é nesse sentido que Jesus apresenta a parábola dos dois filhos que são convidados a ir trabalhar para a vinha do pai. Se um se nega ao pedido do pai, mas mais tarde vai, o outro ainda que anuindo ao pedido do pai nunca chega a ir.
Estamos assim perante uma parábola que nos desafia na resposta à vontade do pai, no acolhimento da vontade do pai, que se traduz numa fidelidade na acção mais que na palavra dada, no consentimento manifestado.
A parábola dos dois filhos convidados a irem trabalhar para a vinha do pai vai no entanto mais longe, não se limita a uma realização da vontade do pai, ela ensina-nos algo fundamental sobre a misericórdia, sobre o amor de Deus para com os homens. E devemos estar atentos a isso.
A parábola ensina-nos que quaisquer que sejam as nossas acções passadas, Deus não recusa nem afasta um coração contrito e humilhado, um coração que reconhece os seus erros e procura ultrapassá-los. Que temos sempre uma oportunidade para cumprir a sua vontade.
O filho obediente da parábola, aquele que cumpre a vontade do pai, é o filho que se arrepende e volta atrás na sua decisão, é aquele que é capaz de perceber o amor do pai expresso no pedido de trabalho e deixa a sua vontade e liberdade para obedecer ao pai.
A conversão, a mudança de vida e de decisão é assim a verdadeira obediência, o verdadeiro acolhimento da vontade do pai. E esta conversão, esta alteração, provoca em nós uma verdadeira separação, um golpe decisivo entre o passado e o presente. Há um antes e um depois.
Neste Advento somos assim convidados a este golpe, a uma separação das águas entre o passado e o presente para que dessa forma vivamos verdadeiramente a vontade do Pai. A nossa conversão é uma abertura, um acolhimento, do trabalho que o Pai nos pede.

 
Ilustração:
“Parábola dos dois filhos”, de Andrey Mironov.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Responderam que não sabiam! (Mt 21,27)

O encontro de Jesus no templo com os príncipes dos sacerdotes e anciãos do povo dá origem a um debate sobre a autoridade, a autoridade de Jesus para ensinar no templo, ele que não pertencia à classe dos sacerdotes. Trata-se de aferir se aquele que tinha entrado em Jerusalém aclamado como Messias pelo povo tinha autoridade para exercer alguma actividade no templo.
Face ao desafio Jesus confronta os seus adversários, aqueles que colocam em questão a sua autoridade, com a figura de João Baptista, uma pessoa conhecida de todos e cuja autoridade era também um desafio ao estatuído e instituído, àqueles mesmos que o interrogavam e colocavam em causa a sua autoridade.
A resposta dos príncipes dos sacerdotes e dos anciãos do povo às perguntas de Jesus é uma manobra retórica, uma táctica para escapar e iludir a questão colocada, uma questão séria sobre a autoridade e autenticidade de João Baptista.
Contudo, o que está em causa não são artifícios de retórica, nem técnicas de argumentação, mas uma realidade e uma questão para as quais os príncipes dos sacerdotes e anciãos do povo não tinham outra resposta, porque de facto eles não sabiam o que se estava a passar, o que verdadeiramente estava em causa.
Eles não podiam saber de onde vinha o baptismo de João porque não tinham reconhecido nele a voz que clama no deserto, o cumprimento da profecia feita pelo profeta, eles não o tinham ainda verdadeiramente escutado com o coração e portanto não tinham ainda entrado na lógica da conversão inerente à missão e às palavras de João.
Deste modo, e diante desta ignorância Jesus não lhes podia responder à questão que colocavam, não lhes podia dizer com que autoridade ensinava no templo e realizava milagres. Eles não estavam preparados para isso, para acolher e compreender a sua mensagem.
Também nós podemos escutar as mesmas palavras e resposta de Jesus, na medida em que não nos dispomos a acolher o processo de conversão, o apelo à mudança que ecoa nas palavras e missão de João Baptista. Necessitamos preparar o coração e a nossa vida para que as palavras de Jesus possam ser acolhidas e possam fazer-se carne da nossa carne.
É no nosso coração que o Menino Deus deve nascer, mas para que isso aconteça não podemos dizer que não sabemos o que é necessário. A Palavra de Deus, em cada dia, nos alerta e desafia à preparação desse acolhimento, ao nascimento do Menino Filho de Deus.

 
Ilustração:
“Os fariseus interrogam Jesus”, de James Tissot, Brooklyn Museum.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Homilia do III Domingo do Advento

Na nossa caminhada de Advento, neste tempo de preparação para a celebração do nascimento do nosso Salvador, encontramos novamente a figura de João Baptista e a sua pregação. O Evangelho de São Lucas que escutámos faz-nos eco dessa pregação e de como ela teve ouvintes, homens e mulheres que face às palavras de João se questionaram sobre o que fazer.
“O que devemos fazer” é assim a pergunta que orienta as respostas e recomendações de João Baptista, respostas que visam colocar no concreto da vida quotidiana a dinâmica transformadora da conversão. Pergunta que obrigatoriamente deve ser também a nossa, assim como nossa deve ser a dinâmica que lhe está inerente.
Neste sentido devemos olhar as respostas de João Baptista a cada grupo, pois encontramos uma evolução de um grupo mais lato para grupos restritos, de um grupo indiferenciado como é a multidão para os grupos específicos dos publicanos e dos soldados.
No grupo mais lato, como o da multidão, João Baptista apela à partilha do vestuário e do alimento, daquelas realidades acessíveis a todos e portanto passiveis de serem partilhadas sem dificuldade. Estamos num patamar que poderíamos considerar externo a cada um de nós, que não exige uma grande implicação da nossa parte.
Ao responder ao grupo dos publicanos o grau de exigência aumenta, pois encontramos já uma particularização e uma exigência ética que se traduz nessa atitude de não exigir mais que o prescrito. Eram homens ao serviço do império e vemos pelos Evangelhos que muitas vezes se serviam do seu posto e serviço para se servirem a si próprios pela exploração do outro.
Entramos desta forma num patamar superior em que a justiça é o elemento orientador, pois tudo deve ser feito à luz do prescrito e do possível ao outro. Principio que não está muitas vezes presente na nossa realidade e na nossa relação com o outro, pois dirigimo-nos a ele com superioridade ou com força, exigindo o que não tem ou não pode dar.
Num outro contexto, mas sem muita distância do princípio orientador, Jesus acusa os fariseus de colocarem grandes fardos às costas dos outros, mas os quais não estão dispostos a mover com um dedo. Encontramo-nos assim com as nossas exigências, com as nossas expectativas face aos outros, com o que lhes exigimos mas que nós não fazemos ou não queremos.
Quantas pessoas vivem ao nosso lado oprimidas, frustradas, tristes, porque não somos capazes de aceitar as suas debilidades e limitações, as suas incapacidades, às quais exigimos o que não podem ou não conseguem dar. E tudo isto se encontra tanto no campo profissional como no campo das nossas relações humanas de família ou de amigos.
Quando São João diz aos publicanos que não devem exigir para além do que foi prescrito está a colocar-nos face a face às capacidades do outro e ao seu respeito.
A resposta de João Baptista aos soldados reforça a resposta dada aos publicanos ao solicitar que não se exerça violência sobre o outro, mas acrescenta-lhe uma nova exigência, uma nova realidade que é a satisfação com o que é próprio.
Ao recomendar aos soldados que se contentem com o seu soldo, João Baptista no seu apelo de conversão está-nos a solicitar uma valorização do que temos, um combate da inveja que muito frequentemente nos impede de apreciar o que temos e nos faz querer o que é dos outros.
Estas recomendações de João Baptista àqueles que o procuravam eram já suficientes para uma mudança de vida, para uma entrada nessa alegria que somos convidados a viver neste domingo. Mas João vai mais longe e desafia-nos numa experiência radical que pode conduzir ao verdadeiro júbilo, à experiência mais gratificante do Senhor que está no meio de nós.
Quando João Baptista diz aos seus ouvintes, esperançados que ele fosse o messias, que não era digno de lhe desatar as correias da sandália, está a subverter toda a tradição do seguimento e do discipulado conhecido à época, e a inovar uma forma de estar diante do outro considerado mestre completamente inusitada.
De acordo com as normas do seguimento dos mestres rabis, o discípulo tinha a obrigação de fazer tudo ao mestre, como preparar-lhe a casa, cuidar dele, ser secretário, mas jamais podia descalçá-lo porque esse era um serviço dos escravos, um serviço humilhante e nenhum judeu se podia submeter a tal humilhação. O judeu era sempre um homem livre e nunca um escravo.
João Baptista ao colocar-se como indigno de desatar as correias da sandália humilha-se abaixo do escravo, aniquila-se totalmente em qualquer poder para que o outro possa ser e realizar a sua missão. Diante do Messias que vem e já está presente não há lugar para qualquer pretensão, qualquer lugar ou poder, tudo deve ser submetido com humildade e amor.
As recomendações de João Baptista aos diversos grupos sobre o modo de realizar a conversão são assim iluminadas, e de certa forma ultrapassadas, por esta atitude de João. O importante não é assim tanto o que se faz ou deixa de fazer mas a atitude, o colocar-se ao serviço do outro para que ele cresça, para que ele se realize.
Quando olhamos para este princípio e para a atitude de João Baptista vemos como nos falta ainda tanto para progredir no seguimento de Jesus, na humildade de desaparecermos para que o outro seja e Deus se realize no outro.
Que este Advento seja uma oportunidade para nos fazermos pequenos como o Filho de Deus se fez para que o pudéssemos acolher.

 
Ilustração:
1 – “Pregação de João Baptista”, de Bernardo Strozzi, Kunsthistorisches Museum.
2 – “Jesus, João e o cordeiro”, de Anthony van Dyck e Rubens, Museu do Prado.

sábado, 12 de dezembro de 2015

O Filho do homem será maltratado por eles! (Mt 17,12)

Hoje, nesta caminhada de Advento encontramo-nos com os momentos imediatamente a seguir à transfiguração de Jesus no alto do monte Tabor. Jesus desce do monte com os três discípulos e estes perguntam pelo profeta Elias e a sua vinda.
A resposta de Jesus associa Elias a João Baptista. O profeta esperado era João que pregava um baptismo de conversão, pelo qual foi maltratado. E tal como João também Jesus sofrerá e será maltratado.
O mistério da encarnação, para o qual nos preparamos através do Advento, coloca assim a cruz no horizonte, não há encarnação sem cruz, não há seguimento de Jesus sem combate.
A Palavra de Deus retira-nos desta forma qualquer pretensão a uma fé de veludo, sem consequências, sem exigências na sua concretização, subtrai-nos qualquer possibilidade de infantilismo, ainda que o Senhor reclame que deixem ir até si os pequeninos.
Ao nos prepararmos para celebrar o Natal temos diante de nós o menino, o Filho de Deus que se faz menino para que o acolhamos na simplicidade e humildade de recém-nascido, mas somos convocados a não deixar de ter presente a cruz e a morte, o processo pelo qual o menino feito homem nos redime da nossa condição pecadora.
Se as luzes e as bolas coloridas nos podem distrair do essencial, o menino na manjedoura recorda-nos que a vida não é fácil, que o seguimento de Jesus é exigente e que não podemos querer segui-lo se não tomarmos a nossa cruz e com humildade a carregarmos juntamente com Ele.   

 
Ilustração:
“Jesus menino dormindo sobre a cruz”, de Orazio Gentileschi, Museu do Prado.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

A tua paz seria como um rio! (Is 48,18)

Na agitação do nosso dia-a-dia, no meio das solicitações do mundo, um grito ecoa no nosso coração, faz estremecer as entranhas do nosso ser. Como sedentos de água assim anda sedento o nosso coração, a nossa vida, de paz!
Todo o nosso ser grita de ansiedade por paz. É o corpo que solicita a paz do descanso merecido, é o espirito que pede a paz de uns minutos de silêncio, é o coração que reclama a paz das relações, é a alma que deseja a paz de Deus.
O Senhor diz-nos que essa paz vem até nós, é-nos oferecida como um rio, quando atendemos às suas ordens. E como nos custa atender a esta oferta que responde às nossas necessidades.
Nos ritmos alucinantes do quotidiano esquecemos que o nosso corpo necessita de repouso, de recuperar energias, e como não o fazemos adequadamente chegamos ao esgotamento. Falta-nos a paz do corpo, porque não percebemos nem queremos perceber que o nosso corpo é a primeira dimensão da nossa existência e que necessita cuidados, como o descanso.
Cheios de imagens e som, de instrumentos cada vez mais afinados de comunicação, perdemos a noção e o gosto do silêncio, desenvolvemos até uma fobia ao silêncio. E é no silêncio que encontramos a paz que nos embala o espirito, que nos permite olhar o horizonte da nossa existência, escutar o bater do nosso coração agitado ou mais tranquilo.
Pressionados por uma imagem social, pelo grupo, por aspirações de conforto que levam a um trabalho desenfreado, perdemos os outros, deixámos de nos falar e as relações tornaram-se violentas ou vazias de sentido. O nosso coração necessita, e aflito reclama, um abraço, um carinho, uma palavra de consolo ou incentivo, reclama as relações fraternas de amor.
A alma saudosa da paz eterna busca em cada dia essa paz, geme com o Espirito e pelo Espirito, tentando fazer brotar no coração do homem esse desejo de parar um minuto e olhar sem medo nem pressa o rosto do seu Criador e Salvador.
E no turbilhão de todas estas necessidades o Senhor recorda-nos as suas ordens, como o nosso corpo é sagrado, como os outros são nossos irmãos, como o tempo é um dom e o silêncio uma necessidade para o apreciar, como necessitamos encontrar-nos com Ele para nos encontrarmos verdadeiramente connosco.
Que a paz brote em nós neste Advento como uma nascente de água fresca e siga com remanso até às margens da nossa vida.

 
Ilustração:
Rio Rhône, junto do Chemin du Moulin des Frères, em Genebra.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

São os violentos que se apoderam do Reino dos Céus! (Mt 11,12)

As palavras de Jesus são desconcertantes, provocadoras, e muito frequentemente chocam connosco de uma maneira que é impossível não sentir o choque.
A violência entra-nos todos os dias pelos olhos dentro, é a violência das ruas, os atentados, as agressões dos adolescentes nas escolas, são os misseis que matam inocentes, são as palavras que ferem e destroem o outro que está ao nosso lado.  
A violência faz parte do nosso quotidiano, e até parece que já nos habituámos a viver nela e com ela, e contudo quando encontramos essa palavra na boca de Jesus o nosso coração estremece e sobressalta-se.
Quando Jesus nos diz que são os violentos que se apoderam do Reino dos Céus, a nossa perplexidade aumenta, a surpresa torna-se abissal, pois no nosso imaginário o Reino de Deus é um Reino de Paz, um universo de gente boa e de bem.
As palavras de Jesus são no entanto verdadeiras, e desafiam-nos numa atitude que não podemos deixar de ter. Há necessidade de força, há necessidade de uma disciplina, de uma vontade que não é natural mas que é necessária para que o Reino de Deus se realize em nós.
O Reino de Deus é um dom que nos é feito, um dom que poderíamos dizer aberto, em desenvolvimento ou construção, e dessa forma exige de nós um acolhimento atencioso, cuidado, um trabalho para que não se desfaça nem se desperdice, para que não resvale na nossa indiferença.
O Reino de Deus acontece desta forma no nosso processo de conversão, nas nossas tentativas de fidelidade e realização plena, e por isso necessitamos da violência do amor, da violência da paixão, que conhecemos de outras realidades, e que devemos aplicar e exercer para que possamos apoderar-nos do Reino de Deus, ou melhor, para que ele se apodere de nós, para que nos integre na sua dinâmica.

 
Ilustração:
“Sagrada Família com São João Baptista”, de Joachim von Sandrart, Museus de Belas Artes de Rennes.  

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Eu vos aliviarei! (Mt 11,28)

Chega ao fim um dia mais e o corpo denuncia o cansaço dos trabalhos e preocupações. Os olhos cansados semicerram-se e quase já não deixam ver o que vai surgindo preto no branco do papel que se escreve ou se lê. E tu dizes-nos Senhor que nos aproximemos de ti, que a todos os cansados e oprimidos nos aliviarás.
E tão cansados que andamos Senhor, cansados deste mundo complicado e cheio de violência, cansados do tempo que não temos e que cada dia mais nos é exigido, cansados das nossas relações cada vez mais virtuais e menos fraternas, cansados de tudo e de nada, cansados do sem sentido do que fazemos.
E o teu convite permanece, continuas a pedir-nos que deixemos tudo e saiamos ao teu encontro, ao encontro do teu jugo que é suave e da tua carga que é leve. Continuas a dizer-nos pela voz do profeta Isaías que aqueles que esperam em ti renovam as suas forças, correm sem se fatigarem e caminham sem se cansarem.
Nesta caminhada de Advento fortalece-nos Senhor na esperança que nos renovas sem cessar, que nos dás asas como as das águias para voar bem alto, para voar serenamente no horizonte do projecto do teu Reino.
Alivia Senhor o nosso cansaço, dá forças aos que andam exaustos e vigor aos que andam enfraquecidos, renova-nos no teu jugo de amor e de humildade.

 
Ilustração:
“Jesus cura os doentes”, vitral da igreja de São Bartolomeu de Roeschwoog, Alsácia.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Homilia da Solenidade da Imaculada Conceição

Celebramos a Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Maria, realidade da natureza da Virgem Maria proclamada dogma da Igreja em 1854 pelo Papa Pio IX.
Esta proclamação não foi no entanto uma novidade, uma mudança radical na concepção do papel da Virgem Maria no mistério da encarnação e da salvação, mas foi o cristalizar de um sentimento que a Igreja desde sempre manifestou pela Mãe do Salvador.
Tal como escutávamos na Epístola de São Paulo aos Efésios, os cristãos sempre sentiram que Maria era alguém que Deus tinha escolhido, que Deus tinha predestinado, tinha constituído de modo particular para realizar uma missão, para ser um hino de louvor à sua glória.
Por isso, considerar que ela era imaculada, que tinha sido concebida sem pecado, não era estranho ao projecto de Deus nem ofendia a dignidade de qualquer um dos outros filhos, bem pelo contrário colocava-os em evidência e desafiava-os numa resposta.
A concepção imaculada da Virgem Maria é assim uma realidade que nos diz respeito, que não pode ficar encerrada na exclusividade de Maria, porque tal como ela também nós fomos escolhidos, fomos eleitos e para a mesma missão, a de dar à luz o Filho de Deus, ainda que em circunstâncias e modos completamente diferentes.
A concepção imaculada de Maria tinha por fim primeiro e único a encarnação do Filho de Deus, e em atenção aos méritos do Filho, à missão salvadora que o Filho de Deus deveria desenvolver, ela foi preservada de todo o pecado, foi cuidada com a graça divina para poder gerar o Filho de Deus com toda a pureza na nossa humanidade.
Com cada um de nós, tal não acontece nem é necessário, pois o Filho de Deus feito homem como nós no seio da Virgem Maria, realizou a missão única e eterna que lhe estava destinada, e da qual todos beneficiamos, e por isso não necessita mais de um seio virginal para se fazer homem.    
Neste aspecto distanciamo-nos radicalmente de Maria, ela é verdadeiramente única, foi a que foi necessária para que o mistério de salvação se iniciasse, mas aproximamo-nos dela na medida em que, tal como aconteceu com Maria, Deus não deixa de solicitar o nosso consentimento à obra que deseja realizar.
Também nós fomos escolhidos, predestinados, chamados a dar o nosso sim ao projecto de Deus, a permitir que o Filho de Deus se faça carne hoje, não já carne que se gera num útero durante nove meses, mas carne habitada pelo espirito divino que o mesmo Filho de Deus nos alcançou pelo mistério da redenção, pela sua morte e ressurreição.
Hoje somos chamados a dar à luz o Filho de Deus ressuscitado, glorioso, o Filho de Deus que nos fez herdeiros do Reino, que nos alcançou a dignidade divina que se tinha perdido pelo pecado de Adão. E tal acontece sempre que vivemos no amor, na justiça, na verdade, sempre que procuramos viver com dignidade, com essa dignidade de filhos de Deus que somos pela encarnação do Filho Primogénito no seio virginal de Maria.
E se o temor e a surpresa nos assaltam diante deste mistério, não podemos estranhar, não podemos ficar indiferentes, porque também a Virgem Maria se sobressaltou quando ouviu a saudação do anjo. O toque de Deus, o apelo de Deus à porta do nosso coração provoca inevitavelmente o nosso estremecimento, deixa-nos estarrecidos, afinal todos sabemos que não somos dignos, todos sabemos que estamos nus diante de Deus.
Que a resposta de Maria, o seu consentimento ao projecto de Deus, o sim para que se cumprisse a vontade divina, seja também a nossa resposta, seja o nosso consentimento ao projecto de Deus, ao mistério da incarnação do Filho que deve acontecer em cada um de nós nas suas circunstâncias e limitações, aqui e agora.
Que Maria nos proteja com a sua intercessão e nos ilumine diante de qualquer temor que possamos ter, para que sem medo a Palavra Eterna se faça em nós vida em plenitude.

 
Ilustração:  
“Imaculada Conceição”, de Juan de Frias, Museu de Belas Artes de Córdova.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Pegou na enxerga e foi glorificando a Deus! (lc 5,25)


As histórias de Jesus não são simples, muitas vezes desenvolvem-se num enredo que nos obriga a uma paragem, a um olhar mais atento.
É o caso do paralítico que é introduzido junto de Jesus pelo telhado, uma vez que aqueles que o transportavam não conseguiam passar a multidão aglomerada diante da porta.
Espectáculo excepcional, inusitado, e que nos mostra a confiança daqueles homens e muito particularmente daquele paralítico, certamente vexado pela multidão face à ousadia de aparecer como caído do céu.
Para Jesus o objectivo é bem claro desde o primeiro momento e os fins são proporcionados ao que se pretende, encontrar-se face a face com Jesus para ser curado.
Cura que passa antes de mais pelo perdão dos pecados, pela restituição da dignidade como filho de Deus. Só depois acontece a cura física que não é mais que uma manifestação, um sinal, da cura interiormente operada.
Como consequência do perdão e da cura realizadas a invectiva de Jesus é clara, aquele homem deve levantar-se, pegar na sua enxerga e ir para casa. Há uma nova vida, este é o começo dessa nova vida e portanto não pode permanecer ali nem deixar a sua enxerga para trás.
Ao sair carregando a sua enxerga, o Evangelho mostra-nos que aquele homem assume a sua condição, o seu passado, e certamente o seu pecado, mas é só carregando com ele que pode partir glorificando o Senhor.
Também nós, quando carregamos com as nossas fraquezas e debilidades, com as nossas faltas e pecados, transformados pelo perdão de Deus, podemos seguir em frente na nossa vida e glorificar o Senhor. Porque os nossos pecados foram perdoados, transportamos já connosco o dom do perdão e da salvação, e portanto louvamos a Deus pela graça alcançada, pelo tesouro de uma vida nova que nos confiou.

 
Ilustração:
“A crua do paralítico”, vitral da Catedral de Saint Colmans, Cobh, Irlanda.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Homilia do Domingo II do Advento

Celebramos o segundo domingo do Advento e a Liturgia da Palavra, as leituras que escutámos, coloca-nos face a face com a acção de Deus, com a iniciativa de Deus em todo o processo de salvação.
O excerto do livro de Baruc que escutámos na primeira leitura é neste sentido muito clara, pois diz-nos que Deus decidiu, que Deus vai mostrar, que Deus dará, que Deus tem a iniciativa antes de mais.
A Carta de São Paulo aos Filipenses, da segunda leitura, vai no mesmo sentido, pois diz-nos que Deus começou em nós uma obra boa, uma obra que levará a bom termo.
E o Evangelho de São Lucas, ao apresentar-nos a figura de João Baptista no deserto, confirma esta ideia ao dizer-nos que a palavra de Deus foi dirigida a João para que ele pregasse um baptismo de penitência e arrependimento.
Assim, se Deus tem a iniciativa, se a acção tem o seu princípio em Deus, a cada um de nós corresponde a participação nessa iniciativa de Deus pelo acolhimento da acção, pela disponibilidade para que ela aconteça em nós.
O apelo de João Baptista no deserto, fazendo eco da profecia de Isaías, é assim um apelo à abertura, à disposição para o acolhimento, à eliminação de todos os obstáculos que possam impedir a iniciativa de Deus de se realizar.
Disposição para o acolhimento que é processo de conversão, e que não pode ser vivido na tristeza nem na amargura, no desalento, pois o que se nos pede para endireitar, para aligeirar, para desprender é sempre em função de um bem maior, da plenitude que Deus tem na origem da sua iniciativa.
Somos assim convidados, tal como o profeta Baruc convidava Jerusalém, a deixar o nosso manto de luto e tristeza, a nossa aflição pelas coisas que não funcionam ou que correm contrariamente aos nossos planos e expectativas.
É a beleza da justiça que devemos vestir, a glória de Deus que devemos colocar como diadema sobre a nossa cabeça, é a esperança que deve animar os nossos gestos e atitudes, é no final das contas a dignidade de filhos de Deus que devemos assumir e procurar viver.
É a caridade que deve crescer, uma caridade que não é espontânea, que não surge do nada, mas que é fruto da ciência e do discernimento, de um trabalho pessoal e à luz da graça e da Palavra de Deus, e que nos permite distinguir o que é melhor, o que nos torna mais puros e irrepreensíveis para o dia de Cristo.
Fizemos uma semana de caminhada neste tempo de Advento e certamente alguma coisa fizemos de diferente, algum discernimento com ciência elaborámos e iluminou as nossas acções e palavras.
Pelo que fizemos e também pelo que nos propusemos fazer mas ainda não fomos capazes, temos que dar graças a Deus, com alegria e fé, porque Deus vai actuando em nós e o nosso coração vai estando mais disposto e disponível à acção de Deus.
Ao iniciarmos a segunda semana do Advento não podemos dar-nos por satisfeitos pelo que já fizemos, nem cruzar os braços pelo que ainda ficou aquém do desejado, mas devemos solidificar o que já fizemos e continuar a insistir no que nos falta fazer.
Uma vez mais somos convidados a compromissos concretos, e realistas, a pequenos gestos que podem marcar a diferença junto do outro e até junto de mim próprio, a uma oração mais intensa, ou até mais simples mas mais unitiva com Deus.
Tal como São Paulo, manifestemos a nossa confiança na acção de Deus, no seu amor para connosco e na sua promessa de que não nos deixaria sós neste caminhar e nesta luta. Esta confiança produzirá a mudança que desejamos e esperamos.

 
Ilustração:
“São João pregando no deserto” de Luca Giordano, Los Angeles County Museum of Art.

Começou em vós tão boa obra! (Fl 1,6)

Uma voz clama no deserto, é a voz de João Baptista a convocar-nos a preparar os caminhos do Senhor.
Convocatória provocante, umas vezes tomada em sério, outras vezes nem tanto, umas vezes interpelativa ao ponto de nos mover a um gesto a uma palavra, outas vezes ricocheteando na nossa indiferença ou distracção.
E contudo, tal como diz São Paulo na Carta aos Filipenses, a obra já foi começada, já nem somos obrigados ao esforço inicial de qualquer obra.
O mistério do nascimento do Filho de Deus integrou-nos já na obra, num processo para o qual não tínhamos forças nem qualificações para iniciar por nós próprios, e por tanto o que se nos pede, a preparação do caminho que nos é solicitada, é apenas a do acolhimento, a do acolhimento do dom que Deus nos faz.
O apelo no deserto de João Baptista é assim um apelo ao abrir do nosso coração, a uma limpeza, a um desimpedimento das vias para que a graça do dom flua serena e intensa e nos transforme.
Pelo baptismo, porta de entrada na vida cristã, iniciou-se em nós a obra divina, foi-nos concedido o dom do Espirito; que pela nossa verdade de vida, pela nossa coerência e fidelidade, pela justiça dos nossos actos e pelo amor das nossas palavras, essa obra possa desenvolver-se, brilhar e alcançar a sua plenitude.

 
Ilustração:
São João Baptista em letra capitular de Antifonário, de Lorenzo Monaco, Gemäldegalerie, Berlim.