terça-feira, 30 de agosto de 2011

Braga em 1594

Apresentamos uma gravura da cidade dos Arcebispos feita em 1594, quando a cidade e Arquidiocese de Braga era governada pelo Arcebispo D. Frei Agostinho de Jesus.
Pela gravura e ainda que posterior ao tempo do Arcebispo Dominicano D. Frei Bartolomeu dos Mártires podemos ter uma ideia da cidade que este frade de São Domingos governou e onde apoiou a fundação do Colégio dos Jesuítas que podemos identificar junto à porta de Santiago e na rua perpendicular à Catedral.


domingo, 28 de agosto de 2011

O baptizado do Afonso

Este domingo em que o Senhor Jesus nos convida a segui-lo, a renunciar a nós mesmos e a tomar a nossa cruz, tive a alegria de celebrar o baptizado do meu primo Afonso, de o admitir à comunidade cristã, e de o integrar nesse grande projecto de seguimento que Jesus oferece a cada homem.
Os poucos meses de vida não lhe permitiram ainda fazer essa opção pessoal e livre que Jesus espera de cada um dos convidados, mas os seus pais, avós, tios, primos e amigos fizeram-na por ele, assumindo responsavelmente que lhe transmitirão o amor e a alegria do Deus Salvador em que acreditam, para que ele possa um dia conscientemente fazer a mesma experiência de amor e alegria e adquirir a mesma fé em Deus.
Foi o lançar de uma semente, que criará raízes com o testemunho fiel e crente daqueles que diariamente partilham a sua vida com o Afonso e com a acção do Espírito Santo o levará a produzir frutos de boas obras.
Que todos nós que estivemos presentes e partilhámos na fé a Palavra e o Corpo e Sangue de Jesus possamos e saibamos ajudá-lo a encontrar em cada momento e em cada experiência da vida a presença transfiguradora de Deus e o seu amor por cada um de nós.

Homilia do XXII Domingo do Tempo Comum

O trecho do Evangelho de São Mateus que lemos neste domingo encontra-se imediatamente a seguir à profissão de fé de Pedro, a essa afirmação solene e inspirada de que Jesus é o Messias, o Filho de Deus vivo.
Contudo, e ainda que inspirada por Deus, esta afirmação de Pedro está mesclada de uma grande dose de desejo humano de poder, de fascínio por um futuro glorioso, que Jesus imediatamente se vê obrigado a desmistificar. É assim que se compreende que não só tenha proibido os discípulos de divulgarem publicamente que ele era o Messias, como também tenha iniciado uma formação mais insistente sobre o fim da sua missão e a tragédia que os espera a todos em Jerusalém, afinal o lugar de satisfação da ambição intima que todos transportavam.
É no contexto desta formação, e em resposta à tentativa de Pedro de desviar Jesus da sua missão, que surge o convite ao seguimento, esse apelo de Jesus a que quem o quiser seguir deve renunciar a si mesmo, tomar a sua cruz e segui-lo.
Não podemos esquecer que Jesus tinha convidado os discípulos a segui-lo, e que eles tinham deixado as redes e os barcos junto ao mar para o seguirem. Um convite certamente muito aberto, sem grandes implicações, e suficientemente atractivo para os levar a deixar tudo por um sonho de poder que se podia concretizar. Agora o convite, ou apelo, é mais concreto, mais exigente, mais implicativo, uma vez que exige tomar a cruz e renunciar a si mesmo.
Mas ainda assim não deixa de ser um convite, não deixa de contar com a liberdade pessoal e a determinação individual. Jesus não obriga ninguém, não força nenhum dos discípulos, chegando mesmo em outra situação a perguntar-lhes se também eles se querem ir embora, uma vez que bastantes outros se foram. E uma vez mais Pedro responderá, “ a quem iremos Senhor, só tu tens palavras de vida eterna”.
O convite de Jesus aparece portanto com um atractivo, com uma grande dose de sedução, que leva a que os discípulos possam dizer como o profeta Jeremias que escutámos na primeira leitura, “seduziste-me e eu deixei-me seduzir”. Há assim na própria realidade do convite, na natureza da proposta, um atractivo, uma força que leva à opção e a uma resposta positiva e aderente.
Esta atracção, esta sedução da realidade proposta é extremamente importante, porque se aquele que é convidado, aquele que é solicitado, não encontra essa sedução nunca a poderá gozar completamente, nunca virá a dar-se conta do valor do objecto sedutor, ou então manifestar-se-á como indigno dessa sedução uma vez que nem sequer a soube ou foi capaz de a captar e perceber.
Para que tal não aconteça necessitamos, como nos diz São Paulo, renovar espiritualmente a nossa mente, para saber discernir o que é bom, o que é agradável e o que é perfeito, no final das contas o que nos atrai e seduz no sentido da verdadeira realização, no sentido do seguimento da palavra que conduz à vida eterna.
Mas Jesus não nos apresenta apenas o convite ao seu seguimento, concretiza-o nessa necessidade de renunciarmos a nós próprios e de assumirmos a nossa própria cruz. Neste sentido Jesus apela a uma implicação particular, a uma distinção no esforço, para que da nossa parte possa haver um pouco de mérito, uma vez que a glória de tudo o alcançado lhe pertence a ele por natureza, pelo trabalho que vai realizando em nós através do Espírito.
À luz da vida de Jesus e de tudo o que nos ensinou, renunciar a si mesmo significa a consideração de si e da sua vontade como realidades estranhas com as quais não se pode pactuar nem ter compaixão. Há um conjunto de interesses, de forças e de desejos que habitam em nós, e muitas vezes nos escravizam, que necessitam ser purificados à luz desses critérios de que nos fala São Paulo, ou seja, do bom, do agradável a Deus e do perfeito. Tudo o que não conduza ao bem, à perfeição humana e à divinização dessa mesma humanidade deve ser combatido, renunciado.
Jesus leva este apelo à renúncia até ao extremo, a um limite que vai para lá da própria morte, pois Jesus não nos diz que devemos renunciar a tudo até ao fim da vida, mas que devemos renunciar a nós mesmos e tomar a cruz, a nossa cruz com tudo o que ela significa. Face a esta proposta não podemos esquecer o que a cruz significa de ignominioso, de realidade escandalosa, e contudo é essa proposta que Jesus nos deixa no convite ao seu seguimento.
Aceitar seguir Jesus implica assim aceitar a negação de si mesmo, bem como a disponibilidade para em qualquer momento enfrentar o sofrimento e derramar o sangue por Jesus e pela sua proposta. É perder a vida para a voltar a ganhar, para a voltar a reencontrar de uma outra forma ou simplesmente com um outro sentido.
Tudo isto no entanto só tem sentido se, como nos diz Jesus, não o deixarmos de ter como ponto de referência, como aquele a quem seguimos. Porque também aqueles que se dedicam às obras do mal, da violência e do ódio são capazes de renunciar a si mesmos, às suas vontades, de seguir outros chefes e até de derramar o seu sangue pela causa que advogam.
Neste sentido necessitamos ter presente e acreditar na promessa de Jesus de que um dia virá na sua glória e dará a cada um segundo as suas obras. Há uma justiça divina, pelo que o seguimento de Jesus, na sua verdadeira concretização e realidade não se traduz apenas num sofrer por amor, mas também numa prática das obras e virtudes que podem ser reconhecida meritórias.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Sermão da Beatificação de Santa Rosa de Lima - Continuação

Prosseguimos a apresentação do Sermão pregado pelo Prior de Águeda, Alvaro de Escobar Roubam, no último dia da Oitava que os Dominicanos e Dminicanas de Aveiro mandaram celebrar pela Beatificação de Santa Rosa de Santa Maria, Santa Rosa de Lima.

Que seria, se à vista das muitas luzes, que em mãos de outras tantas Virgens nos oferece o Evangelho, perdêssemos de vista uma Virgem Esposa, a que se compara hoje o Reino dos Céus? Suceder-nos-ia o que no Tabor aos Discípulos sagrados; a quem os sobejos de resplendores divinos, com que se toldou o monte fizeram cair cegos, e desmaiados por terra: Ceciderunt in faciem suam. Mas não permitirá Deus, que em tão alegre dia nos ceguem de todo o ponto as luzes, que podem encaminhar-nos; e mais quando temos, não só por guia, mas caminho: Ego sum via, aquele Senhor Sacramentado. Bem sei, que nestes dias estarão tomados os caminhos Reais, mas tomarei pelos meus atalhos. Vamos assim, e iremos à primeira dúvida do sermão.
Símile erit Regnum Caelorum decem Virginibus. Que o Céu seja semelhante a dez Virgens, está bem; mas que esta semelhança tenha lugar na festa de uma Virgem só? Que uma só Virgem seja para com o céu, o que muitas Virgens? Mistério deve ser de algum segredo. Ora o segredo, e o Mistério, a meu ver, não é outro, que resumirem-se nesta só Virgem as virtudes, e perfeições de muitas. Das Santas, que coroam a Igreja, se excederam umas a outras em diferentes géneros de virtudes: umas no sofrimento da penitência, outras na abstinência de jejum: estas no fervor da Oração, aquelas na caridade do próximo, e amor de Deus, e se me dessem uma Virgem, que em todas estas virtudes fosse, não só exemplo, mas prodígio, que dúvida tem, que seria por si só semelhante ao Céu. O Céu não se retrata nos sujeitos, senão nas perfeições, e se em um só sujeito se acharem as perfeições, que em muitos, porque não será um retrato do Céu? Pois este, e esta foi Bem-Aventurada Rosa de Santa Maria, de si só exemplo na Caridade, na Oração, no Jejum, e na Penitência: mas notem quanto maior maravilha, é comparar-se o Céu a um sujeito só, que compararem-se lhe muitos; depositarem-se muitos quilates de perfeições em uma só Virgem, que nas muitas Virgens do Evangelho. A festa é de uma Flor, e do Sacramento: o Sacramento, e as flores, nos hão-de fazer a prova.
Não houve flor, ou houve poucas flores, a que o divino Amante nos Cantares se não comparasse: comparou-se à Rosa de um Jardim, comparou-se ao Lírio dos Vales; comparou-se à Flor do Campo; comparou-se a outras muitas flores: quis levantar de ponto a Esposa querida, e disse, que o mesmo Amante divino era um Ramalhete de flores: Fasciculus mirrae dillectus meus mihi. Comentou um Doutor: Fasciculus ex mirrae floribus; o meu Amado é um Ramalhete de odoríferas flores; e que flores pode haver a que o Esposo se não comparasse a si mesmo? Pois se se tem comparado a flores muitas, para que o compara a Esposa às muitas flores de um Ramalhete? Notem, comparou-se o divino Amante a muitas flores, mas flores divididas; uma Rosa no Jardim, um Lírio no Vale, uma Flor no Campo; mas o Ramalhete consta de muitas flores, e todas unidas em um só Ramalhete: Muito tem, que ver na Primavera um Campo, um Vale, um Jardim, semeado de variedade de flores; mas estas flores várias, juntas em um só Ramalhete, se não é mais dilatada vista, é mais gloriosa pompa. Pois este foi o maior gabo do Esposo, e o será também da Esposa Rosa. Resumir em um só ramalhete muitas flores, copiar em um sujeito só muitas perfeições; e quanto mais é muitas perfeições em um só sujeito, que em um ramalhete muitas flores! Agora o Sacramento.
Cifra das maravilhas de Deus, e a maior maravilha de todas se chama o diviníssimo Sacramento do Altar: Memoriam fecit mirabilium suorum escam dedit timentibus se. Pôs Deus em memória, e em lembrança a maravilha, que obrou no diviníssimo Sacramento: Pergunto: e foi menos maravilhosa obra a da Encarnação, a da Paixão sagrada, a da Ressurreição gloriosa? Não foram tudo obras maravilhosas de Deus, prodígios de seu amor? Sim, mas vejam como. Tudo o Filho de Deus obrou, e fez; mas tudo divididamente, Encarnou em Nazaré; Morreu no Calvário: Ressuscitou no Horto; e no Sacramento? Está juntamente Encarnado, Morto, e Ressuscitado. O mistério da Encarnação, não contém mais, que a Encarnação; o mistério da Morte, não contém mais, que a Morte; o Mistério da Ressurreição, não contém mais, que a Ressurreição: só o Sacramento foi cópia, e foi desempenho de tudo; contém a Deus Encarnado, por extensão; Deu Morto, por representação; Deus Ressuscitado, por existência; Deus Sacramentado, por essência; e quem duvida, que é mais que tudo depositar em um só mistério, muitos mistérios, em uma maravilha só muitas maravilhas?
Ó Bem-Aventurado Espírito, ó Virgem Bem-Aventurada! Pois em vós só depositou Deus todos os merecimentos, que repartidos por dez Virgens as fizeram semelhantes ao Céu: Simili erit Regnum Coelorum decem Virginibus. E esta Virgem menina aos três meses de idade começou a ser cópia de prodígios, maravilhas, e aplausos do Céu. De uma Virgem só a muitas Virgens tenho feito diferença: falarei agora de uma Virgem pequenina a uma Virgem grande; dando a razão de ser mais depositar o Céu muitas virtudes em um só sujeito pequeno, que em um sujeito, se fosse grande. A razão, é porque depositar muitas maravilhas em um sujeito grande, é pôr muito em muito: e em um pequeno sujeito, é pôr muito em pouco. O muito em muito é muito: mas o muito em pouco, é realce de um bom obrar. Outra vez me hei-de valer do diviníssimo Sacramento.

Sermão da Beatificação de Santa Rosa de Lima

SERMÃO DA BEATIFICAÇÃO DA SANTA MADRE ROSA DE SANTA MARIA
Religiosa Professa da Terceira Regra da Ordem dos Pregadores
No último dia da Oitava, que celebraram os Religiosos do Mosteiros de São Domingos, e Religiosas do Convento de Jesus, na Vila de Aveiro.
Esteve o Santíssimo Exposto
Foi Pregado por Álvaro de Escobar Roubam, Prior da Paroquial Igreja de Águeda, e Protonotário Apostólico de sua Santidade, em 25 de Novembro de 1668.
Oferecido
Ao Muito Reverendo Padre D. Bernardo de Santa Maria, Cónego Regular do Grande Padre Santo Agostinho, Lente de Teologia Moral, Procurador Geral na Corte de Lisboa, Prior, e Prelado duas vezes do Mosteiro de Grijó, Vigário do Real Mosteiro de Santa Cruz, e Primeiro Definidor da sua Religião Sagrada.
Lisboa. Com as licenças necessárias. Na Impressão de António Craesbeeck de Mello, Impressor de Sua Alteza. Ano de 1670.

Desempenhado parece que temos hoje o Céu, de uma divida grande em que estava a terra: porque se a terra tem dado ao Céu Virgens, que assistiam, e seguiam ao Cordeiro de Deu, para onde quer que iam: Virgines enim sunt: hi sequuntur agnum quocumque ierit. Hoje vemos que, que o mesmo Cordeiro de Deus segue, e assiste a uma Virgem Bem-Aventurada, em cada um dos inumeráveis, e ilustres Conventos, em que suas memórias suavíssimas se festejam: e logo (ainda que não fosse advertido) pudera entender, que não havia de faltar nesta solenidade, e festa soberana, e inefável presença; porque se aquele Pão, que desceu do Céu é alimento de Anjos: Angelorum esca, e os Anjos como diz o Angélico Doutor São Tomás, são irmãos das Virgens: Virginitas est soror Angelorum. Claro é, que nas bodas de uma Virgem esposa, se havia de pôr a mesa com o mesmo Pão, de que se alimentam os Anjos.
Maiormente, quando aquele Senhor tomou para si o próprio nome desta sua Esposa sua. O nome, que aquele Senhor para si tomou foi o de Rosa: Ego Flos campi. Outra letra tem: Ego Rosa. Daqui será gabar-lhe uma alma querida, as duas estremadas cores, com que o contemplava no Diviníssimo Sacramento do Altar: São as cores encarnado, e branco: Dilictus meus candidus, et rubicundus. O branco das espécies Sacramentais; o encarnado, ou do sangue, que nos oferece no Sacramento, ou da Rosa, de que no Sacramento se veste.
Pois estas mesmas cores são as desta Virgem inocente, desta Esposa querida, desta Alma triunfante, em que o encarnado competiu com o branco. O branco de uma neve enterrada em cal virgem, para diminuir a neve com o encarnado, que se transformou a beleza do rosto. O que não saberei dizer, é qual destes dois amantes fez este amoroso roubo; tomou um do outro a engraçada divisa destas duas cores: se a Esposa triunfa hoje no Céu, com as cores de que viu a seu amado no Sacramento; se aquele amantíssimo Senhor com as próprias cores de sua Esposa, quis assistir hoje Sacramentado às festas de tão glorioso triunfo.
Pois com a intercessão para alcançar a graça para o acto presente, não temo, que me falte a sereníssima Rainha dos Anjos, pois é sua a festa, por ser de uma coisa tanto sua. Por mandato, e eleição de Senhora se chamou esta Santa menina Rosa de Santa Maria: Rosa de Santa Maria? Parecia-me a mim, que tinha mais lugar chamar-se Sor Maria da Rosa: mas Rosa de Santa Maria? Sim. Quis a Senhora, que se chamasse de Santa Maria esta Rosa, porque quis a esta Rosa por sua. E não só amantes vejo eu ao mesmo Deus, e sua Mãe Santíssima desta soberana Rosa, mas apostados a quem mais a há-de amar: a Senhora lhe chamou Rosa sua; o Senhora Rosa de seu coração: penetrando cada um as perfeições, e delicias, de que viam composta esta Flor, coroada esta Rosa, parece, que se não fartavam de a ver, ou que a não acabavam de louvar.
Desta sorte se vê abalado em obséquio, e honra deste dia o Céu, e a terra; o Céu, com assistência do mesmo Deus, e sua Mãe Santíssima; a terra com júbilos, aplausos, e repetidas festas a uma Rosa Bem-Aventurada, por um coro de Virgens; mas não são elas sós, também as Virgens do Evangelho com suas luzes nos ajudam, e acompanham hoje: Accipientes lampades suas exierunt obviam sponso, et sponsae. Saíram a receber o Esposo, e a Esposa. A Esposa também? Não são elas logo as que hão-de lograr estes desposórios; outra Esposa os logra, e elas os festejam; mas quem é esta Esposa, senão Rosa, a quem Deus pediu se desposasse com ele, e se desposou. Para o mais, que hei-de dizer, recorramos ao Espírito Santo, por intercessão da Senhora. A maré é de Rosas, boa viagem. Ave-Maria.

domingo, 14 de agosto de 2011

Homilia do XX Domingo do Tempo Comum

O Evangelho deste vigésimo domingo do Tempo Comum apresenta-nos o encontro de Jesus com a mulher cananeia, uma mulher estrangeira, habitante de uma terra de infiéis e pagãos, que recorre a Jesus para obter a cura da sua filha.
É um encontro que se diferencia dos outros encontros e curas que Jesus opera, e nos são relatados pelos evangelistas, na medida em que Jesus parece bastante indiferente à situação da mulher, levando mesmo à intervenção intercessora dos discípulos. A compaixão habitual de Jesus parece que desapareceu neste caso e nesta terra estrangeira.
Mas se tal acontece, ou aparentemente parece que acontece, é para levar a mulher, e cada um de nós que nos confrontamos com o relato do acontecimento, a perceber o que verdadeiramente está em causa, ou seja, a fé num Deus que salva e a missão que é inerente a essa mesma fé.
Neste sentido se joga o silêncio de Jesus face ao primeiro pedido da mulher. Ao não responder à invocação “Filho de David”, Jesus situa-se como não desejando assumir a carga histórica e tradicional que está vinculada a esse título. Um título que já tinha estado em jogo quando depois do milagre da multiplicação dos pães a multidão o tinha procurado para o fazer rei em Jerusalém.
Há assim um distanciamento da concepção monárquica, e do poder humano inerente, que a mulher tem que perceber, porque de facto não são os poderes terrenos que podem trazer a salvação e a cura da situação demoníaca em que se encontra a filha doente.
Por outro lado, o silêncio de Jesus remete para o confronto com as autoridades dessa mesma concepção, representadas nos escribas e fariseus, que pouco antes o tinham procurado para o confrontarem com o incumprimento dos rituais de pureza por parte dos discípulos.
Jesus não podia de facto, e depois da resposta dada aos fariseus e escribas sobre a relatividade dos preceitos e tradições face à Lei da Aliança, aceitar e responder àquele título e invocação. Neste sentido, o silêncio de Jesus é de alguma forma um convite à mulher a dar um salto na fé, na sua concepção face àquele que tem diante de si e a quem pede a cura da filha.
Salto que a mulher dá, humildemente, quando Jesus lhe responde, ainda na sua concepção restrita da salvação para as ovelhas perdidas de Israel, que não se pode dar o pão dos filhos aos cachorrinhos. O que é dos eleitos não pode ser dado aos pagãos.
Ora, a mulher reconhece que de facto é assim, mas reconhece também e abre os horizontes de Jesus para tal, que apesar da exclusividade da aliança e da lei todos os povos estavam chamados a usufruir dos frutos dessa aliança e dessa lei desenvolvida depois de forma exclusiva. De alguma forma, e na sua simplicidade, a mulher recolhe a profecia de Isaías e esse desejo de Deus de fazer de Jerusalém lugar de oração para todos os povos, casa de todas as nações.
Sem o dizer, a mulher cananeia apresenta a Jesus a história da infidelidade do povo de Israel à aliança estabelecida com Deus e à grande missão de trazer todos os povos ao conhecimento do Deus único. De facto todos os preceitos, todos os rituais, todas as tradições se tinham tornado obsoletas face à inviabilidade de darem a conhecer o verdadeiro Deus e o seu plano salvador. Mas, ainda assim, ela esperava qualquer coisa, ela acreditava que apesar de tudo a salvação podia chegar até ela.
Perante tal lucidez e tal fé, Jesus responde à mulher que o seu pedido estava satisfeito, a cura da filha estava alcançada, pois a sua fé ia muito para além daqueles que o tinham querido fazer rei para obter o pão para a boca e para além daqueles que se tinham deixado prender em preceitos de pureza e se tinham esquecido da verdadeira Lei e da missão salvadora a que estavam chamados.
Perante a fé desta mulher e os problemas que estão subjacentes à sua conversa com Jesus colocam-se à nossa consideração questões importantes. A primeira delas prende-se com a nossa ideia de eleição e relação com Deus. Afinal de contas porque Deus nos escolheu, ou nos escolhe para manter uma relação connosco? Como filhos muito amados, como nos sentimos implicados nessa filiação no sentido de a revelar e a anunciar a todos os homens?
Depois, e devemos questionar-nos sobre isso, até que ponto a nossa filiação e eleição não nos conduz ao orgulho, ao isolamento, a uma visão distorcida dos outros e das suas fragilidades? Neste sentido não podemos esquecer as palavras de São Paulo na Carta aos Romanos, todos fomos incluídos na desobediência para que com todos o Senhor pudesse usar de misericórdia.
Peçamos assim ao Senhor que ilumine o nosso espírito no sentido de termos consciência de comos estamos chamados a trazer todos os homens desde as mais diversas fronteiras até ao coração do conhecimento de Deus e à sua adoração filial.





terça-feira, 9 de agosto de 2011

Cinco virgens insensatas (Mt 25,2)

A parábola das virgens prudentes e insensatas deixa-nos muitas vezes um sabor amargo na boca, provoca em nós um sentimento muito forte de injustiça, uma vez que a porta se fecha sobre as cinco virgens que se preocuparam em procurar azeite para manter acesa a lâmpada enquanto o esposo não chegava; bem como um juízo muito pouco favorável sobre aquelas que não foram capazes de partilhar do azeite que tinham, faltando desse modo à caridade que dá acesso ao banquete.
Quase que poderíamos dizer que o Reino de Deus para estas virgens se constitui sobre a injustiça, uma vez que entram no banquete aquelas que faltam à caridade não partilhando do seu azeite com as virgens que o não têm, enquanto que por outro lado a diligência destas em procurar o azeite em falta as afasta e impossibilita injustamente de entrar no banquete.
Esta é no entanto uma leitura que se afasta do verdadeiro sentido da parábola, o qual se intui logo desde o seu início, pois são as dez virgens que se colocam em caminho para irem ao encontro do esposo. As virgens prudentes e insensatas conhecem já o esposo, sabem da sua vinda e partem ao seu encontro.
De alguma forma estas virgens assemelham-se aos trabalhadores de outras parábolas que conhecem o seu senhor e sabem que ele recolhe de onde não semeia, que é um senhor justo que retribui não só o trabalho diligentemente bem feito mas também a sagacidade daquele que procura beneficiar dos dons recebidos.
As virgens prudentes e insensatas são assim possuidoras de um conhecimento e de uma experiência do noivo e sabem à partida ao encontro de quem vão. Assim a insensatez de algumas, a falta de reserva de azeite, é já por si um sinal de desconhecimento, de falta de intimidade e relação com o noivo ao encontro de quem partem.
Neste sentido a parábola das virgens é antes de mais uma parábola de sabedoria e sobre a sabedoria, uma sabedoria bíblica que se assenta sobre a prudência, sobre uma experiência quase artesanal, mais que sobre uma construção filosófica. E o azeite como fonte de luz e de conhecimento corrobora simbolicamente esta leitura.
Assim, a injustiça que aparentemente se comete sobre as virgens insensatas ao fechar-se lhes a porta é inevitável, uma vez que elas não só não se precaveram do verdadeiro conhecimento quando partiram ao encontro do noivo, como depois foram ainda pela noite em busca de alguém que lhes vendesse o azeite, ou mais correctamente o conhecimento que lhes tinha faltado.
Não estranha assim que o noivo depois da porta fechada lhes diga que as não conhece. De facto não as pode conhecer, na medida em que se afastaram do verdadeiro conhecimento, uma vez que não souberam precaver-se devidamente com o conhecimento que ele já lhes tinha possibilitado no primeiro encontro.
Por outro lado, e tendo presente a falta de caridade das virgens sensatas, não podemos deixar de assumir que lhes era impossível partilhar do azeite que possuíam, da experiência e conhecimento pessoal do noivo ao encontro de quem iam. É um conhecimento íntimo e pessoal, que por mais que se queira tão pouco se torna transmissível. Cada um recebe de acordo com as suas capacidades e com a abertura manifestada ao acolhimento do dom e da experiência.
E desse dom e dessa experiência convém, como dizem as virgens sensatas, guardar uma reserva para os momentos em que o sono nos possa atacar, o noivo se faça demorar. Nesses momentos de escuridão e solidão a experiência primeira e a alegria do dom permitirá manter a vigilância e de alguma forma continuar a experiência da relação e da intimidade com o senhor ausente.
Poderíamos dizer que é a necessidade de regressar ao amor primeiro, de guardar na memória e no coração a alegria desse primeiro beijo, do primeiro olhar, para com eles alimentar e iluminar os momentos de secura e de escuridão, os momentos de aparente ausência ou afastamento do noivo esperado.
Tal como as virgens prudentes e insensatas também nós partimos ao encontro do Senhor que veio até nós. Saibamos levar toda a riqueza do primeiro encontro e do desejo de si que despertou em nós para nos mantermos fieis e constantes na espera vigilante, pois não sabemos nem a hora nem o dia em que chega.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

São Domingos de Guzman

Pedro paga-lhes o imposto por mim e por ti. (Mt 17,27)

Cafarnaum e a presença dos cobradores de impostos a favor do templo de Jerusalém são o local e o acontecimento mundano que servem a Mateus para narrar um dos episódios mais deslumbrantes na relação entre Pedro e Jesus. Um episódio com um significado tão maravilhoso que por intermédio de Pedro nos atinge a todos e a todos nos engloba.
Conta-nos o Evangelho que ao chegarem a Cafarnaum Pedro foi abordado pelos cobradores de impostos a favor do templo, desejosos de saber se Jesus pagava ou não o imposto. Era um imposto anual, cobrado a todos os filhos de Israel, que para além de sustentar as despesas do governo do templo servia também para confirmar e ratificar a pertença ao povo eleito. Significava uma adesão, uma fé.
Pedro respondeu positivamente aos cobradores de impostos, certamente porque sendo uma obrigação comum não tinha outra resposta para dar. É por essa razão que ao chegar a casa, e ainda antes de colocar a questão, Jesus se lhe dirige no sentido do pagamento do imposto, da responsabilidade do pagamento. Afinal a quem é que corresponde pagar imposto, se aos filhos ou aos estranhos?
Face à resposta de Pedro, que corresponde aos estranhos pagar o imposto, àqueles que não têm direitos à herança, Jesus ordena a Pedro que vá pescar um peixe, pois nele encontrará um estáter que servirá para pagar o imposto dos dois. Ainda que eles não se sintam obrigados não convém escandalizar os outros.
O milagre do peixe e do estáter encontrado no seu interior pode distrair-nos da verdadeira dimensão do acontecimento, um acontecimento que nos mostra uma vez mais a gratuidade da salvação e a integração de toda a humanidade através da pessoa de Pedro.
Jesus não está submetido a nada nem a ninguém e por essa razão não tem qualquer obrigação de pagar um imposto, e muito menos um imposto religioso. Ele é o Filho por natureza, aquele ao qual nunca poderá ser pedido nenhum imposto, nenhum pagamento devido ao Pai.
Contudo, Jesus assume pagar o imposto e de uma só vez, com uma só moeda, por um único sacrifício, o sacrifício da sua vida. E fá-lo para nos readquirir a condição de filhos, readquirir a filiação para todos os homens e mulheres. E ao pagar o imposto integra também a divida de Pedro, a divida da falta de fé, da sua fragilidade manifestada na travessia do lago na noite tempestuosa.
Como é sublime o amor de Jesus e a sua atenção para com Pedro, para com aquele discípulo que pouco antes o tinha tentado dissuadir de continuar a caminhada de obediência ao projecto do Pai, que tinha outros planos de poder e glória, que ainda confiava mais em si que no Mestre deixando-se por isso afundar por causa da sua falta de fé na possibilidade de caminhar sobre as águas como Jesus.
Apesar das fragilidades, ou por causa delas mesmo, Jesus paga o seu imposto e oferece-se para pagar o imposto de Pedro, colocando-o assim na sua periferia e mesma condição de filho. Se não estavam obrigados a pagar o imposto, Jesus mostra a Pedro que há obrigações que se cumprem para além do dever, que se cumprem por amor e por coerência aos princípios porque nos regemos e aos quais nos obrigamos.
No caso de Jesus o princípio era o da obediência ao projecto salvífico do Pai, no caso de Pedro era o princípio da eleição de que tinha sido objecto, uma eleição de amor e para o serviço do amor na condução dos irmãos.
O estáter encontrado no peixe que Pedro pescou por ordem de Jesus serviu para pagar o imposto devido ao templo por todos nós. A partir desse pagamento deixámos todos de ser estranhos e passámos a ser filhos, herdeiros, e não só desse templo e desse culto, mas do Pai e Deus verdadeiro ao qual o Filho Jesus entregou a vida para nosso resgate.
Como esta certeza nos deveria deixar mais confiantes, como nos deveria dar uma tranquilidade de espírito face a tantas dúvidas que nos assaltam, como nos deveria conduzir no sentido de uma vida mais fiel e coerente em virtude da liberdade de filhos que somos por Jesus Cristo.



domingo, 7 de agosto de 2011

Homilia do XIX Domingo do Tempo Comum

Em tempo de férias e praia o Evangelho deste domingo apresenta-nos a narração de uma tormenta marítima, uma tempestade que se abate sobre a frágil barca em que seguiam os discípulos. Um contraste tremendo entre o sol que brilha nas nossas praias e a noite escura e temerosa que envolve os discípulos, um contraste abismal entre a nossa tranquilidade e o medo que se apodera dos discípulos.
Esta circunstância é no entanto propícia ao desenrolar de um dos acontecimentos mais significativos da vida do discípulo Pedro, bem como à apresentação de um processo de fé pelo qual todos temos que passar para nos encontrarmos com Jesus.
Assim, e antes de mais, não podemos deixar de reparar que é o Senhor que envia os discípulos para o meio do mar, pedindo-lhes que aguardem por ele na outra margem. Isto, enquanto ele fica a despedir a multidão que pouco antes tinha alimentado.
Não é normal esta separação do Mestre dos seus discípulos, e muito menos quando sabemos que alguns daqueles que compunham a multidão desejavam apoderar-se de Jesus para o fazer rei, enquanto outros procuravam apoderar-se dele para o eliminar. Jesus fica assim exposto, fragilizado, comprometido apenas com um encontro na outra margem do lago. Partindo os discípulos no barco, como lá chegaria?
Mas a fragilidade de Jesus, a exposição ao perigo, atinge também os discípulos que navegam na barca num primeiro momento com toda a tranquilidade. Contudo, pela quarta vigília a tormenta que era demasiado forte tinha-os já extenuado, uma vez que os ventos eram contrários e as ondas alterosas.
Esta realidade mostra a situação em que afinal todos vivemos, em que todos nos encontramos, uma realidade de perigo, como a da barca atingida pela tempestade ou a da solidão de Jesus na margem do lago. Pela criação e a vinda ao mundo a vida do homem desenvolve-se num contexto em que o perigo é latente, em que a confiança muitas vezes definha e esmorece, ainda mesmo quando existe a promessa do encontro na outra margem.
E assim, tal como os apóstolos podemos em algum momento encontrar-nos paralisados de medo, completamente vencidos pela consciência que as forças do mundo e do mal nos superam, completamente sucumbidos à consciência das nossas fragilidades e incapacidades de continuar a remar até à margem.
Nesses momentos Jesus vem ao nosso encontro caminhando sobre as águas, numa situação de tamanha fragilidade como a nossa, ou melhor, numa situação de fragilidade simétrica à da nossa falta de esperança e confiança da sua presença no encontro marcado na outra margem. Então nos diz, como disse aos apóstolos, “não temais, sou eu”.
Esta afirmação da sua pessoa e o convite a não ter medo são uma solicitação a experimentar de forma pessoal e única o seu mistério, são como o encontro de Moisés com a sarça ardente, no qual também Deus se revela como aquele que é, ainda que sob a forma de um fogo numa sarça que não se consome. É uma experiência de salvação que nos é proposta, mas que necessita da nossa adesão e do nosso consentimento confiante.
Perante esta oferta fazemos como Pedro o pedido de o Senhor nos mandar ir ter com ele, mas tal como Pedro também nós falhamos na caminhada sobre as águas. E tal acontece porque, ainda que o pedido tenha sido feito convictamente, contámos mais com as nossas forças e capacidades que com a força e capacidade de Jesus. É pelos nossos meios e com as nossas forças que procuramos caminhar sobre as águas, que procuramos encontrar Deus, esquecendo-nos que é Ele que vem ao nosso encontro.
Experimentamos então a nossa fragilidade, como nos é impossível sozinhos enfrentar as ondas tumultuosas e as rajadas do vento, mas experimentamos também que a vitória e a libertação dos medos e dúvidas acontece na medida em que não perdemos os olhos de Jesus. A vitória não é assim caminhar sobre as águas, passar sobre os problemas e tempestades, mas nesses problemas e nessas tempestades nunca deixar de ter os olhos fitos em Jesus.
Jesus que uma vez mais vem ter connosco, mas que previamente a essa vinda nos prometeu estar connosco na outra margem do lago. É para lá que devemos dirigir o nosso olhar, a nossa esperança, e certamente tal como aconteceu com os apóstolos depois da ressurreição, cruzaremos o nosso olhar com o olhar de Jesus que caminha na margem e espera por nós com o peixe assado.
A tempestade que atinge o barco dos discípulos é a circunstância que permite experimentar a solicitude de Jesus e de Deus para com a humanidade, vindo ao seu encontro no meio dos perigos e das necessidades. Contudo, e no meio da tempestade não podemos deixar de ter presente que Deus pode vir e vem muitas vezes de forma silenciosa, tal como uma brisa suave, como aconteceu com o profeta Elias que só nessa brisa suave encontrou a presença de Deus.
Necessitamos assim de nos colocar em sintonia, de nos assumirmos como gritando constantemente “Senhor salva-me”, porque só mergulhados nessa consciência podemos experimentar verdadeiramente a salvação e o encontro de Jesus na margem como nos prometeu, ou vindo ao nosso encontro nas ondas da tormenta.

sábado, 6 de agosto de 2011

A transfiguração de Jesus em Rembrandt

Terminou há poucos dias uma exposição no Museu do Louvre, em Paris, sobre Jesus na obra de Rembrandt. Não posso dizer que a visitei, apesar de o ter desejado desde o primeiro momento que tomei conhecimento da sua realização. No entanto, e apesar da distância, fui estando atento às notícias, e se hoje abordo o assunto é porque o mistério da transfiguração que hoje celebramos na Igreja se relaciona de modo particular com os retratos que Rembrandt pintou de Jesus.
Rembrandt não pintou por convenção, não pintou para a sua clientela calvinista, mas por uma convicção profunda na pessoa e no mistério de Jesus Cristo. E assim distanciou-se de muitos dos seus contemporâneos na medida em que nos deixou um conjunto de retratos de um Cristo próximo, humano, por vezes quase demasiado humano.
E é nestes retratos de Jesus que Rembrandt se manifesta como pintor vivendo um paradoxo tremendo, um paradoxo que resulta da sua fé e relação pessoal com Jesus mas que contradiz e entra em confronto com os princípios orientadores da sua pintura.
Rembrandt pretendeu sempre a perfeição na arte do retrato, e para isso desenvolveu até ao possível a cópia do modelo, deixando-nos um conjunto de retratos e auto-retratos que quase parecem fotografias. Contudo, nos retratos de Cristo não houve modelo físico que os sustentasse, ainda que alguns defendam que foi um jovem judeu que serviu como modelo, enquanto que outros defendem que foi uma descrição apócrifa que circulava e ainda circula por aí, escrita por Públio Lêntulo, que o inspirou.
Com modelo ou com descrição, a verdade é que Rembrandt, criou uma nova imagem do rosto de Jesus e neste sentido podemos dizer que procedeu a uma transfiguração da imagem e da relação com Jesus, reactivando um caminho de que Tomé é o paradigma, mas que o próprio Jesus tinha criticado e que o mistério da transfiguração que hoje celebramos restringe quando a voz do Pai recomenda que os discípulos escutem o Filho.
Rembrandt dá um novo corpo e uma nova face a Jesus, e faz com que o sentido da visão adquira de novo um papel na possibilidade de estabelecimento de relação com o Filho de Deus, já não composto com pinceladas de glória mas com traços muito humanos, muito próximos dos pobres e necessitados, dos homens que carregam as suas cruzes como o próprio Rembrandt carregou a sua.
Face a estes retratos e tal como face à Palavra desafia-nos o silêncio, a necessidade de escutar, de perceber qual a Palavra que consubstanciou tal forma e tal rosto e nos fala por seu intermédio.

Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João (Mt 17,1)

Ao sabermos que Jesus se retirou para um monte apenas com Pedro, Tiago e João, e diante deles se transfigurou, a primeira ideia que nos vem à cabeça é a de predilecção, de um certo favoritismo destes discípulos face aos demais que não tiveram esta oportunidade, e que de acordo com as recomendações de Jesus só muito mais tarde vieram a saber do sucedido.
Podemos contudo questionar esta predilecção, perguntar-nos se a escolha de Jesus foi feita pela positiva ou pela negativa, se este favoritismo não se prende mais com a ambição interior de cada um destes discípulos, ambição que necessitava ser confrontada de uma forma extraordinária.
Pedro é neste sentido verdadeiramente paradigmático, uma vez que quando é convidado a subir ao monte e a testemunhar a transfiguração, vem de uma conversa em que é repreendido por Jesus por causa de o querer afastar do caminho trágico de Jerusalém. Pedro, a quem tinha sido dado o poder do governo, tinha-se já deixado seduzir pela glória desse mesmo poder, não percebendo que o poder derivava do serviço mais que do cargo.
Assim, não estranha que se proponha imediatamente a construir três tendas para que Jesus, Moisés e Elias pudessem permanecer ali, no alto do monte. Pedro tenta sujeitar o invisível aos seus interesses, à sua ambição de o caminho de Jesus não terminar em Jerusalém de uma forma trágica.
Pedro, que tinha escutado Jesus falar da realeza, e de uma forma sarcástica da realeza de Herodes, não percebeu que as palavras e proposta de Jesus iam no sentido contrário da sua concepção, porque era o serviço e a obediência que garantia a verdadeira realeza e poder.
Tiago e João, ainda que indirectamente, estão envolvidos pela mesma concepção, pois a sua mãe não se esquecerá de pedir para cada um deles um lugar de proeminência no governo que esperam que Jesus instaure em Jerusalém. A manifestação que testemunharam no alto do monte não lhes serviu assim de muito para alterar as ideias e aspirações.
Neste sentido, poderíamos dizer que a transfiguração no alto do monte Tabor foi um rotundo fracasso, pois nem Pedro, nem Tiago e João perceberam que Jesus se transfigurava diante deles para que abdicassem das ideias de poder e glória que transportavam, e assumissem que o verdadeiro poder e glória, que eles ali antecipadamente podiam vislumbrar, era consequência da aceitação obediente do aniquilamento e da perda de vida.
Mas apesar do fracasso primário, a transfiguração realiza outra missão que é extremamente importante, e não podemos deixar de ter em conta; não só porque influiu na vida dos discípulos, e influi na nossa também como discípulos, mas sobretudo porque processa uma viragem na vivência da relação pessoal com Jesus.
Assim, à visão e aos dados objectivos alcançados pelo acompanhamento e pela partilha do dia a dia, os discípulos são convidados pela voz do Pai a sobrepor a escuta, o sentido da audição. Este é o meu Filho muito amado, escutai-o! Os discípulos estão a ver o Filho, podem vê-lo na sua glória, mas para o compreenderem verdadeiramente devem escutá-lo.
Uma vez mais a revelação procura superar as vias da idolatria, potenciadas pela visão e toda a visibilidade dos gestos, curas e milagres. Não é aí que verdadeiramente reside a novidade da presença divina, mas na palavra, na atenção dada ao que o outro diz e nos possibilita de relação através do que diz. São João percebeu isto claramente quando nos transmitiu que “a Palavra se fez carne”.
Resulta daqui um desafio tremendo para os discípulos, para qualquer discípulo e em qualquer tempo, porque a via da apropriação de Deus é a escuta mais que a visão. E para escutar necessitamos calar, necessitamos silêncio, necessitamos recolher-nos do ruído do mundo e do nosso próprio ruído, para que a voz se faça ouvir e a Palavra se faça carne.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Se alguém quiser seguir-me… (Mt 16,24)

O convite de Jesus ao seu seguimento não pode separar-se da conversa que Jesus mantém com os discípulos e ocupa a parte final do capítulo dezasseis do Evangelho de São Mateus. Afinal o seguimento joga-se face à concepção que se tem de Jesus, face ao que cada um pode dizer dele.
Porque se consideramos que Jesus é um profeta, ou um taumaturgo capaz apenas de nos curar e satisfazer, o seu seguimento é de alguma forma fácil, uma vez que exige apenas uma adesão aos princípios, um certo negócio para que nos seja alcançado o bem que necessitamos. O seguimento, que deriva da relação estabelecida, é exterior, superficial e de alguma forma até ritual, fundado sobre um conjunto de preceitos que funcionam pelo simples cumprimento. Não há mais nada que cumprir o estabelecido.
Pelo contrário, se consideramos Jesus como o Filho de Deus, o Messias salvador, e temos essa certeza pela luz e sabedoria do Espírito, a nossa relação é diferente e consequentemente o seguimento. Não podemos manter-nos na superficialidade de um ritualismo escrupuloso, mas necessitamos afundar-nos na intimidade da perda de vida, como Jesus nos diz que deve acontecer.
Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, porque se confrontará com a limitação e a finitude, com uma cruz que não deixa de estar presente, mas se apresenta sem sentido, sem um corpo entregue para redenção, e portanto é apenas uma cruz nua e vazia. Mas quem perder a vida por sua causa, encontrá-la-á, porque na cruz encontrará não só o corpo do redentor, mas uma vida que se nos abre como oportunidade, um outro homem que fez a mesma experiência desbravando o caminho a percorrer.
Ao convidar-nos a segui-lo, Jesus apresenta-se como guia, um guia numa terra estrangeira, mas pela qual podemos passar e caminhar com segurança na sua companhia, seguindo os seus passos que marcam o percurso. Contudo, não podemos deixar de ter presente que segui-lo nessa terra estrangeira é sempre uma aventura, uma viagem por um desconhecido, porque ainda que balizado e marcado o caminho a aventura do seguimento de cada um é pessoal e irrepetível, única na história.
Afinal, o caminho e o seguimento dependem da relação que cada um for capaz de estabelecer, dessa dose pessoal de adesão ao conhecimento do Filho de Deus enquanto Filho de homem, do Messias enquanto Jesus de Nazaré, dependem da aceitação do aniquilamento e da renúncia da própria vontade para que a vontade do Pai prevaleça e o seu projecto de salvação se concretize.
Pelo que necessitamos pedir a Deus que nos fortaleça no Espírito para aceitar a sua vontade e podermos seguir o caminho de Jesus sem medos nem peias que nos aprisionem ao nosso egocentrismo e egoísmo.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Quem dizem os homens que é o Filho do homem? (Mt 16,13)

A passagem de Jesus para os lados de Cesareia de Filipe é um momento incontornável na sua relação com os discípulos, um momento de definição da sua pessoa e do compromisso que é inerente ao seu seguimento. Assim, estabelece um diálogo com os discípulos no sentido de saber o que dizem os homens sobre ele e o que os próprios discípulos são capazes de dizer.
As perguntas de Jesus sobre a sua identidade funcionam quase como um enigma, não só porque são formuladas de forma indirecta, mas também porque colocam uma certa ambiguidade no objecto da pergunta.
Desta forma, a primeira pergunta, que procura saber o que dizem os homens, não se interessa pela pessoa de Jesus em si mesma, mas pelo Filho do homem. O que é que os homens pensam sobre o Filho do Homem? Há assim como que uma certa distância, como que uma fronteira que é necessário ultrapassar.
E esta fronteira torna-se mais clara quando os discípulos começam a responder a Jesus dizendo que os homens pensam que ele é Elias, Jeremias ou até João Baptista. Todos profetas, mas todos figuras de um tempo já passado, de uma história de promessa que estava em desenvolvimento.
É uma resposta que se desenvolve numa dimensão exterior, que não implica um compromisso pessoal, uma relação de mim para ti, eu e tu. De alguma forma é a expressão dessa esperança messiânica que o povo acalentava, uma esperança de instauração de um governo monárquico, mas que se afasta da pessoa e projecto de Jesus. É uma resposta que comporta uma grande dose de idolatria, na medida em que a adesão a Jesus se processa apenas por esse desejo de satisfação possível junto do taumaturgo, daquele que pode curar e alimentar.
Perante isto, perante esta concepção, torna-se urgente saber o que os próprios discípulos pensam. Contudo, e para eles, Jesus já não coloca a questão do Filho do homem, mas de si próprio. E vós, o que pensais de mim? Quem sou eu?
A diferença da pergunta é já por si um prenúncio da resposta, ou da necessidade de uma relação pessoal para uma resposta verdadeira. E é assim que Pedro diz a Jesus que ele é o Messias, o Filho de Deus vivo.
Afirmação que, como Jesus diz a Pedro, não é possível obter pela carne e pelo sangue, apenas pela força e acção do Espírito Santo que procede do Pai. Resposta que se confronta com todas as expectativas pessoais, manifestadas nesse aparte que Pedro pouco depois vai ter com Jesus no sentido de o dissuadir de ir até ao fim no projecto de obediência à vontade do pai.
E é então que Jesus afasta Pedro como Satanás, como uma mais tentação ao prosseguimento no caminho de obediência ao projecto de salvação de Deus. Ao querer afastar Jesus do fim trágico de Jerusalém, do seu aniquilamento, Pedro apresenta-se como um tentador e em contradição com a formulação inspirada pelo alto. Afinal a sua ideia de ungido, de Messias, era muito rasteira, muito humana e não tinha em conta que o verdadeiro Messias estava destinado a dar a vida em resgate de muitos.
Mas é neste diálogo, e face à afirmação inspirada de Pedro, que Jesus o institui como pedra sobre a qual edificará a sua igreja. Pedro ganha assim uma outra dimensão, uma dimensão de glória e poder, mas que apenas se verificará na medida em que também ele assumir o projecto do ungido, em que assumir que é pela obediência até ao aniquilamento que poderá fazer a experiência da filiação divina.
Se Jesus é um servidor da obra do Pai, e por isso é o Messias Filho de Deus vivo, também Pedro deve ser um servidor e deve abdicar das suas pretensões de poder e glória para verdadeiramente cumprir a sua missão de chefe dos discípulos e condutor da Igreja.
Face a estas perguntas e ao confronto que assistimos entre a concepção messiânica de Pedro e a verdade do Messias Filho de Deus que é Jesus coloca-se a questão da nossa própria afirmação sobre Jesus. Afinal quem dizemos nós que é Jesus e até que ponto o que dizemos está verdadeiramente inspirado por Deus Pai ou se confunde e mescla com os nossos desejos de poder, ou até com a nossa idolatria a um Messias que se adequa às nossas necessidades e medidas.
Necessitamos aferir do sentido de aniquilamento, ou do sentido de obediência, da verdadeira dimensão da cruz, para perceber o quanto ainda nos pode faltar purificar para uma verdadeira relação com Jesus, uma fé correcta no Messias Filho de Deus.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Uma cananeia começou a gritar: Senhor Filho de David tem misericórdia de mim! (Mt 15,22)

Terminada a discussão com os fariseus e escribas sobre o preceito da pureza, Jesus retira-se para a região de Tiro e da Sidónia, para a região dos infiéis e pagãos. Há como que uma retirada estratégica face ao conflito previsível com as autoridades religiosas, que tinham vindo de Jerusalém para aferir da doutrina daquele que chamavam “Filho de David”.
Contudo, esta passagem à terra dos pagãos, reforçada pelo aparecimento da mulher cananeia, é mais que uma retirada estratégica ou de segurança, ela insere-se na linha de outras passagens, como a dos profetas Elias e Eliseu que igualmente se encontram com mulheres necessitadas de auxílio.
E a referência explícita da cananeia, dessa mulher da terra de Canaan, remete o episódio para um tempo histórico ainda mais primitivo, para uma referência a essa terra hostil e idólatra que era necessário conquistar depois da passagem pelo deserto e para que o povo eleito aí se pudesse instalar.
O encontro de Jesus com a cananeia e respectivo diálogo, depois do milagre da multiplicação dos pães e do encontro e discussão com os escribas e fariseus sobre os ritos de pureza, é assim um acontecimento que nos remete uma vez mais para as fronteiras intransponíveis da religião judaica e para a infidelidade da missão do povo escolhido.
Assim percebemos que, face ao apelo da cananeia “Filho de David”, Jesus não tenha respondido, não tenha sequer abrandado o passo para a atender, obrigando os discípulos a intervir no sentido de lhe dar uma resposta. De facto, o título dado pela cananeia, mais que um elogio, era um assumir de uma tradição histórica e religiosa que não assumia nem aceitava aquele por quem ela chamava. Os escribas e fariseus que pouco antes tinham vindo de Jerusalém não o tinham reconhecido, nem sequer estavam dispostos a abdicar das suas verdades para o reconhecerem. Bem pelo contrário, o fito do encontro era a morte.
Por outro lado, o título de “Filho de David” contradizia o pedido feito da mulher, criava ou recriava a fronteira que os separava e tornava incomunicáveis. Os herdeiros de David estavam destinados a conquistar e destruir a terra e o povo a que aquela mulher pertencia, e portanto qualquer pedido era impossível de resposta.
Neste sentido, e face à intervenção dos discípulos tocados pela compaixão para com aquela mulher, Jesus faz uma afirmação que poderá ser considerada como um insulto, um acto tremendo de desprezo por aquela mulher e a sua situação, “não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cachorros”.
Jesus, ou o evangelista Mateus, assume com este insulto o pensamento judaico sobre os estrangeiros e de modo particular sobre o povo da terra de Canaan, um poço idólatra, infiel, impuro, pelo qual a consideração não era maior que a dos cachorros. Uma vez mais a predilecção e a eleição de Israel como povo eleito joga aqui a sua contradição e infidelidade, porque um povo que devia ter sido conquistado para Deus foi pelo contrário ostracizado e abandonado à sua situação de infiel.
Contudo, é perante esta realidade e desprezo que a mulher revela a sua grande fé, a sua esperança naquele profeta que se refugia na terra infiel. Se o povo eleito não os tinha reconhecido, não os considerava no plano divino de salvação, ela como imagem do povo infiel acolhia a salvação que podia advir desse povo. E assim, já não é o pão que está em questão, o pão dos eleitos e dos filhos que é importante, mas as migalhas que podem sobrar e cair da mesa, o dom que pode ser dispensado a todos, mesmo àqueles que são indignos.
A cananeia revela assim uma fé mais pura e universal que a dos escribas e fariseus, revela uma consideração pelo dom do pão, ou pelas migalhas do pão, enquanto sinal de salvação, que aqueles mesmos que tinham sido alimentados não tinham sido capazes de ter.
“É grande a tua fé mulher e portanto faça-se como desejas”, respondeu Jesus à cananeia. É grande a fé desta mulher porque universal, porque aberta a todos, e porque humilde na capacidade de assumir a imagem negativa e desprezível que os mesmos judeus tinham dela.
Assim, desaparecem os eleitos e os excluídos, os fiéis e os infiéis, os puros e os impuros, sobrando apenas o homem, representado nesta cananeia como ser necessitado de apoio divino, que se alcança na medida em que humildemente se reconhece igual a todos os outros e sem qualquer direito de predilecção.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Porque não lavam as mãos? (Mt 15,2)

A pergunta que os fariseus e os escribas colocam a Jesus não é de todo descabida face à necessidade de higiene, ao cuidado que todos devemos ter de lavar as mãos antes de comer. Contudo, não é essa a verdadeira preocupação dos escribas e fariseus, eles não estão preocupados com qualquer infecção alimentar que os discípulos possam apanhar.
Bem pelo contrário, a pergunta encerra em si uma armadilha que é consequência da própria vinda dos fariseus. Eles estavam ali antes de mais para aferir da doutrina daquele que o povo já apelidava de Filho de David e Filho de Deus, e por isso confrontam Jesus com a doutrina da tradição, os preceitos religiosos que enquadravam a relação com a divindade.
E é face a esta armadilha que Jesus responde, não entrando em discussão sobre o cumprimento dos preceitos, mas invocando a autoridade da lei, uma lei que os preceitos afinal tinham agrilhoado e inviabilizado na sua dimensão libertadora.
Jesus sabia o que os seus discípulos faziam, tinha certamente consciência da falta de higiene, mas aos deixá-los nessa liberdade, e até certa irresponsabilidade, mostrava e mostrava-lhes o quanto longe tinham chegado os preceitos em termos de segregação. Porque de facto, se para os escribas e fariseus havia a necessidade de lavar as mãos, não era porque elas pudessem estar sujas, mas porque podiam estar contaminadas enquanto tivessem tocado algo impuro ou estrangeiro.
A ablução das mãos, a pureza para a refeição, era afinal um sinal de uma rejeição do outro, do incumprimento da verdadeira missão de povo eleito enquanto instrumento para trazer todos os homens ao convívio de Deus. Lavavam-se as mãos porque se considerava que os outros não eram puros, não eram dignos de serem também povo de Deus.
Lavar as mãos para quê, se à mesma mesa não se podiam sentar estrangeiros e judeus, ricos e pobres, se havia alimentos que não se podiam comer, se havia uns que eram puros e outros impuros em função dos ritualismos e dos preceitos cumpridos ou não cumpridos.
Perante tal incoerência e infidelidade à lei e à verdadeira missão do povo eleito, Jesus mostra aos seus discípulos, e ao povo que se tinha afastado por medo das autoridades religiosas, que o que verdadeiramente necessita ser limpo e purificado é o coração do homem, porque é aí que nasce o que verdadeiramente perturba o homem e o infecta, que o faz considerar o outro diferente e inferior, impuro.
E diante daqueles que defendem os preceitos, esquecendo-se do homem e como a lei foi feita para o homem, face aos fariseus e escribas, Jesus recomenda que não se lhes dê atenção, que não se tenham em conta, porque como cegos conduzem outros cegos para o abismo. Antes de mais, está a liberdade de cada um, a liberdade da consciência de procurar ser fiel à lei enquanto meio para a perfeição a que Deus nos convida e o nosso espírito nos impele.
Que o Senhor nos conceda a graça da pureza de coração, para podermos viver em fraternidade com todos e cumprirmos também a missão de congregar todos os homens à mesma e única mesa do Senhor Jesus.

Beata Joana de Aza, Mãe de São Domingos

A Ordem dos Pregadores celebra neste dia dois de Agosto a memória da Beata Joana de Aza, a mãe de São Domingos. Para os habitantes de Caleruega, onde viveu e esteve sepultada, é a Santa Joana, celebrada a dezoito de Agosto com tanto brilho como o seu filho Domingos. Para os dominicanos, filhos de São Domingos, é a “abuela”, a avó de todos nós.
A Beata Joana nasceu em 1140 na fortaleza de Aza, um pequeno castelo da província de Burgos. Foram seus pais Dom Garcia Garcés e Dona Sancha Pérez, que tiveram ainda mais cinco filhos e quatro filhas. Sendo seu pai Senhor da Casa de Aza e Alferes Mor de Castela não surpreende que Joana Garcia de Aza, a Beata Joana, tenha contraído matrimónio com um homem ligado também à defesa e à conquista mourisca, Dom Félix Ruiz de Guzman, filho do Conde Dom Rodrigo Nuñez de Guzman.
A data deste matrimónio passou despercebida na documentação que chegou até nós, bem como a data da instalação da família em Caleruega, local onde passariam certamente a maior parte das suas vidas, cuidando das terras e vigiando a fronteira que nessa época estava ainda bem próxima dos reinos mouriscos. Tão pouco a documentação nos deixou o número exacto da prole que Joana de Aza alcançou, e para os dois irmãos mais velhos de Domingos, António e Manés, referidos na História de São Domingos, as datas de nascimento são também desconhecidas.
Assim, os poucos dados que conhecemos da Beata Joana decorrem da narração da vida de SãoDomingos. Antes de mais, e ainda antes do nascimento do filho, é a história do sonho, esse sonho de um cão incendiando todo o mundo, que a deixa assustada e a leva ao mosteiro beneditino de Silos, do outro lado da serra, para obter uma explicação do abade para tão estranho presságio.
Outra história, e na qual a Beata Joana assume o papel principal, é-nos narrada por Rodrigo de Cerrato, que esteve em Caleruega por volta de 1272 para obter informações sobre a infância de São Domingos. Por ele sabemos que um dia a grande senhora e dona de casa, na ausência do marido, e tendo-lhe chegado à porta um grupo de necessitados, esgotou um tonel de bom vinho que o marido tinha para si.
Regressado entretanto a casa, e sabendo da história por vozes desejosas da ruína familiar, Dom Félix pede à esposa que lhe sirva desse vinho. Confiante na misericórdia do Senhor, D. Joana solicita fervorosamente a intervenção de Deus, que lhe proporciona um vinho tão excelente como o das bodas de Caná, para grande surpresa do marido e daqueles que intentaram destruir-lhe a harmonia conjugal e a alegria da caridade feita aos pobres.
À semelhança dos outros dados biográficos também se desconhece a data da morte da Beata Joana. Apenas se sabe que quando o filho Manés regressa a Caleruega em 1234, já depois da canonização do irmão São Domingos, encontra a sepultura da mãe junto da igreja paroquial. É possível que tenha sido por essa data, e face ao projecto de construir uma igreja em honra do novo santo, que os restos mortais da Beata Joana tenham sido trasladados para o Mosteiro de São Pedro de Gumiel de Izan, no qual repousavam os demais membros da família no panteão que ali tinham instituído.
Será deste panteão familiar que em meados do século XIV, o Infante Dom João Manuel, os trasladará para a igreja do convento de São Paulo de Peñafiel, fundado por ele nessa vila para os frades dominicanos. Ali repousaram numa bela capela dentro da igreja durante seis séculos, regressando em 1970 a Caleruega e ao Mosteiro das Monjas Dominicanas, onde hoje se encontram.
No dia 1 de Outubro de 1828, o Papa Leão XII, a pedido da Ordem Dominicana e dos grandes de Espanha, incluído o rei Fernando VII, aprovou o culto da Beata Joana, um culto que era já bastante popular na zona de Caleruega e povoados vizinhos, em grande medida devido à protecção alcançada de Dona Joana, Mãe de São Domingos, aquando de graves pestes e fomes ocorridas ao longo dos séculos.
Apesar da neblina dos tempos e da ausência dos dados documentais, a Beata Joana não pode deixar de nos aparecer como um exemplo de mãe de família, que o foi, como um exemplo de mulher preocupada com os outros, o incidente do vinho o prova, e como um exemplo de mulher de Igreja que soube face aos sinais perturbadores de um sonho procurar uma explicação junto e dentro da Igreja.
Que a Beata Joana interceda por nós, pelos filhos do seu filho Domingos, e nos alcance a graça de novos filhos, a fertilidade da água do pocito de Caleruega que a tradição popular advoga.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Pedro disse: se és tu Senhor, manda-me ir ter contigo! (Mt 14,28)

Ao isolarmos a figura de Pedro no Evangelho de São Mateus fica-se com a sensação que não era uma personagem querida do autor do Evangelho, ou pelo menos este não tem qualquer pudor em revelar as suas fraquezas, as suas incoerências, deixando a figura de Pedro numa posição de alguma forma incómoda.
Antes de mais é o episódio da negação, da tripla negação quando Jesus é interrogado pelas autoridades antes da sua condenação à morte. Pedro é aquele que se opõe a ser reconhecido como um dos seus discípulos.
Algum tempo antes desse acontecimento fundamental, e quando Jesus já o anuncia como eminente, Pedro aparece como aquele que se propõe desviar Jesus da sua missão, e de uma forma tão intensa que Jesus se vê obrigado a chamá-lo de Satanás.
No caso da possibilidade de caminhar sobre as águas, à semelhança de Jesus, e depois de ter pedido ao Mestre que lhe ordene ir ter consigo, Pedro aparece como aquele que não foi capaz de ter a fé suficiente e por isso diante das vagas e do vento se afunda no mar.
No Evangelho de São Mateus, Pedro é assim uma personagem com uma estrutura bastante complexa de fragilidade, uma estrutura que se aproxima de cada um de nós enquanto crentes e enquanto caminhantes no seguimento de Jesus.
Também nós lançamos o mesmo pedido a Deus, também nós pedimos que o Senhor nos mande ir ter com Ele, caminhando sobre as vagas da nossa inconstância e da nossa história errática. Habita em nós esse desejo, embora muitas vezes não com força suficiente para saltarmos da barca e colocarmos os pés sobre o abismo das águas.
E quando por vezes os colocamos, olhamos o fundo, as vagas e o vento, e esquecemo-nos de elevar os olhos e fitar o olhar naquele que nos mandou ir ter com ele e nos espera confiante de braços abertos.
Como nos questiona São Paulo, o que nos poderá separar do amor de Cristo? Mas a verdade é que deixamos muita coisa separar-nos do amor de Cristo e impedir-nos de caminharmos confiantes sobre as águas dos nossos mares revoltados.
Resta-nos assim pedir ao Senhor que Jesus que nos mande ir ter com ele, mas que ao mesmo tempo nos fortaleça na fé, para que não desfaleçamos no meio das vagas e do vento e não sejamos acusados como Pedro de homens de pouca fé.
Aumenta Senhor em nós a fé, bem como a audácia de nos lançarmos sobre o vazio dos abismos que nos separam de ti.