sábado, 31 de março de 2012

É melhor morrer um só homem pelo povo (Jo 11,50)

É o sumo-sacerdote Caifás que, na discussão sobre o que fazer face aos milagres de Jesus, nomeadamente à ressurreição de Lázaro, e ao número crescente de judeus que acreditavam nele, propõe como solução a morte de Jesus, pois é preferível a morte de um só homem à destruição de todo o povo, de toda a nação.
Ainda que o autor do Evangelho tente desvalorizar a culpa de Caifás, dizendo que esta proposta não era propriamente da sua autoria, mas que se tratava de uma profecia em virtude do cargo de sumo-sacerdote que desempenhava, a verdade é que nos deparamos com uma solução carregada de tremenda hipocrisia e desonestidade.
Aqueles homens são capazes de reconhecer os milagres que Jesus realiza, são capazes de perceber que há algo de extraordinário nele, mas como aceitar isso é perder o seu estatuto, a sua autoridade, optam por um crime, por matar um inocente para, com a desculpa da salvação do povo, se salvarem a eles próprios enquanto senhores do poder e da autoridade sobre os outros.
Ao decidirem a morte de Jesus, a morte de um homem inocente, estão a esquecer-se que os milagres de que eles tinham conhecimento deixava em aberto a possibilidade dessa morte não acontecer, ou vir a ter consequências inusitadas, extraordinárias. Portanto ao optarem pela morte de Jesus estavam a optar por uma solução cujas repercussões eram incontroláveis.
Ao optarem pela morte de Jesus o grande conselho dos fariseus e príncipes dos sacerdotes estavam a esquecer-se que a vítima se apresentava como Filho de Deus, e a ser verdade, como tudo parecia indiciar, não tinham qualquer poder sobre a sua vida.
Tal veio de facto a verificar-se, porque depois da sua morte e pelo poder da sua vida entregue, Jesus levantou-se do túmulo, ressuscitou, retomou a vida que lhe pertencia e permitiu a todos os homens que a retomassem também, que a voltassem a adquirir na relação com Deus através do Filho ressuscitado, mesmo aqueles que o tinham condenado.
Ao entrarmos na Semana Santa, e ao aproximarmo-nos da Páscoa da ressurreição, somos convidados a viver e a fazer memória dos acontecimentos da paixão e morte de Jesus assumindo a vida que nos está destinada e nos foi alcançada por intermédio de um crime ignominioso contra o mais inocente dos inocentes que era o Filho de Deus, o senhor da vida.

Ilustração: “Conspiração dos judeus”, de James Joseph Jacques Tissot, Brooklyn Museum.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Acreditai nas minhas obras (Jo 10,38)

Jesus não deixa de nos surpreender nos seu amor, na sua capacidade de se entregar pelos homens para que estes tenham uma relação com o Pai.
No templo, e depois de os fariseus terem pegado em pedras para o lapidarem, como estava previsto na lei para aqueles que se assumissem como deuses, Jesus continua a insistir, continua com toda a paciência a mostrar àqueles homens que não era nada de especial assumir-se como Filho de Deus, que era algo que eles próprios podiam fazer uma vez que estava enunciado na Lei.
Jesus continua pacientemente a querer ensinar aqueles homens que podiam ter uma relação com Deus, uma relação filial, de amor e amizade, e podiam libertar-se da relação de serventia e escravatura em que se tinham colocado pela sua teimosia, pela fixação a um código que era apenas um meio, um caminho para a vivência dessa filiação, dessa relação pessoal.
Enfrentando uma barreira de obstinação na mesma ideia e preconceito por parte dos fariseus, Jesus humilha-se ainda um pouco mais na sua dignidade para que aqueles homens acreditem e portanto sejam salvos.
Não os conseguindo fazer acreditar na sua pessoa, Jesus prescinde dela, aniquila-a, e pede que pelo menos acreditem nas obras que realiza. Jesus sujeita-se às obras, desce a essa miséria, para que os homens acreditem no Pai, acreditem que ele veio até aos homens para revelar a verdadeira face do Pai.
Há assim um desviar de atenção do verdadeiramente importante e significativo, da sua própria pessoa, para algo que é secundário como as obras, prescindíveis face à presença daquele que as realiza, que tem poder para as realizar.
A tanto chega o amor de Jesus e o seu compromisso para que os homens tenham acesso e conhecimento do Pai, para que possam estabelecer uma relação com ele, uma relação que os tornará também filhos de Deus.
Recusar-se a aceitar as obras como manifestação da divindade é colocar-se naquela situação de cegueira que conduz à condenação, pois as obras são manifestas, estão visíveis aos olhos de todos e testemunham a autoridade e o poder daquele que as realiza, como os fariseus reconhecem a determinado momento.
Também nós estamos convidados a reconhecer as obras, mas sobretudo a reconhecer o grande amor que Jesus manifesta pelos homens e pela possibilidade de eles estabelecerem uma relação com o Pai. Jesus prescinde de si mesmo para que os homens se encontrem com Deus.
Neste sentido é oportuno perguntar, como testemunhas de Jesus e do amor de Deus Pai, até que ponto, ou de que modo, nos anulamos e colocamos perifericamente para que os nossos irmãos se encontrem verdadeiramente com Deus? Como permitimos que estabeleçam uma verdadeira relação?
Quantas vezes não somos mais o centro, do que a seta que indica o centro!

Ilustração: “Ecce Homo”, de Abraham Janssens. Museu Nacional de Varsóvia.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Antes de Abraão existir, Eu Sou! (Jo 8,58)

A conversa de Jesus com os fariseus de Jerusalém aproxima-se do fim e consequentemente da radicalidade e do abismo intransponível. Pelo lado de Jesus a revelação da sua identidade, da sua natureza e da relação de intimidade e filiação com Deus Pai, pelo lado do fariseus a oposição total à novidade do que escutam, o ancoramento nas interpretações reducionistas da mesma revelação de Deus feita ao longo da história.
No contexto desta conversa e nessa evolução natural para o mais profundo e significativo da questão em discussão, não podia deixar de aparecer o tema de Abraão, o tema da aliança estabelecida entre Deus e Abraão, afinal a filiação pela fé.
Face ao nascimento de Abraão muitos séculos antes de Jesus, a forma como são interpretadas, por parte dos fariseus, as palavras de Jesus provoca um verdadeiro e inevitável absurdo. Uma vez mais, os interlocutores não compreendem, ou não querem compreender o que Jesus quer dizer.
E tal incompreensão não podia deixar de conduzir à violência e à tentativa de lapidação de Jesus face à proclamação e identificação com o nome de Deus “Eu Sou”. Tal não chegou a acontecer porque Jesus se escapou entre a multidão, mas sobretudo porque como nos diz São João ainda não tinha chegado a sua hora.
Contudo, para eles e para nós a questão é de suma importância e reveste-se de desafios e consequências extremamente significativas.
As palavras de Jesus colocam em relevo a existência de Deus anterior a qualquer revelação e aliança, a qualquer manifestação de fé. Antes de Abraão existir, Deus já é, já existe e portanto não é o homem que lhe dá existência, mas Deus que dá existência ao homem.
Existência que ultrapassa e está para lá de qualquer aliança, de qualquer culto ou código normativo. Todas essas realidades são consequências, exercícios de uma realidade prévia e muito mais significativa em termos de consequências, a relação com Deus.
Ao referir o nome de Deus “Eu Sou”, Jesus coloca a ênfase nessa dimensão relacional, nesse encontro com Deus que se mostra e revela como ser e convida a ser. A sua intimidade com o Pai, a sua relação é disso testemunho, e portanto exemplo e convite a ser seguido.
E se Abraão foi o pai da fé e pode ser invocado como o pai do povo, é porque também nas suas limitações, fragilidades e capacidades humanas foi capaz de estabelecer uma relação com Deus, perceber e viver o seu ser, a sua identidade, à luz do ser de Deus que se lhe revelou e o interpelou.
Neste sentido somos também nós convidados a viver essa interpelação de Deus, a acolher a revelação que Jesus nos fez, a concluir uma aliança pessoal com Ele, assumindo a nossa identidade e o nosso ser em perfeita e intima relação com a identidade e ser de Deus que nos foi revelada na sua perfeição e plenitude por Jesus Cristo.

Ilustração: “Trindade”, do Altar da igreja de Nossa Senhora da Assunção de Torun. Museu Diocesano de Pelplin, Polónia.

quarta-feira, 28 de março de 2012

A verdade vos fará livres (Jo 8,32)

Jesus continua o seu debate com os judeus, com o povo de Jerusalém, e inevitavelmente enfrenta a recusa e a desconfiança face a si mesmo. Mesmo aqueles que tinham acreditado nele necessitavam fortalecer e fundamentar a sua adesão e a sua fé.
É a estes que Jesus se dirige dizendo-lhes que na medida em que permanecerem na sua palavra serão verdadeiramente seus discípulos e a verdade os fará livres. Não podemos esquecer que Jesus se apresenta como o caminho, a verdade e a vida.
Esta questão da liberdade é no entanto uma questão sensível e, como seria de esperar, os que escutam Jesus imediatamente o contestam afirmando a sua liberdade, a inexistência de qualquer necessidade de libertação.
Resposta falsa, hipócrita, não só porque como Jesus lhes diz, não reconhecem o Filho de Deus que lhes é enviado, e portanto estão presos no erro e no pecado, mas sobretudo porque de facto e em termos políticos estavam sob o domínio dos romanos, eram de alguma forma escravos do império. E nisto, como diz o povo, não há pior cego do que aquele que não quer ver.
A fé em Jesus e a vida vivida em coerência com essa fé é assim fonte e forma de libertação, uma libertação que não está na nossa mão nem é nossa conquista, mas que nos é oferecida na própria pessoa de Jesus e no seu sacrifício de amor. A liberdade de Jesus é um dom que nos é feito e na medida do seu acolhimento seremos verdadeiramente livres.
Procuremos pois acolher a verdade de Jesus, a verdade de Filho de Deus e Filho do Homem, a verdade do seu sacrifício de amor e a libertação da morte eterna alcançada pelo mesmo, a verdade de que o dom da vida, a desapropriação como processo nos alcança mais plenitude de vida que o egoísmo e a avareza. Procuremos acolher Jesus para encontrar a liberdade da verdade que nos revela.

Ilustração: “Jesus coroado de espinhos”, de Georg Pencz, Museu Nacional de Wroclaw.

terça-feira, 27 de março de 2012

Hino de Louvor

Como cantar Senhor o teu Amor?
Que versos ou que hinos nestes lábios?
E o querer cantar-te…
A obra que fazes e vais fazendo, em cada dia.
E as palavras que não surgem…
Apenas esse desejo de cantar-te,
de mergulhar no oceano,
nos teus braços recolhido.
Um abraço da brisa quente,
na noite desta primavera.
Um arrepio à flor da pele,
e a vida que pulsa em batidas ritmadas.
Tudo te faz presente,
traz à memória a alegria,
a paz e o carinho, um abraço fraterno.
A mesa posta com esmero,
a música da ternura,
e as palavras presas no silêncio.
O amor que baila e nos extasia,
e desperta em nós o desejo,
a sede, a fome,
o horizonte da fidelidade.
E vens, como sempre, disfarçado
transfigurado em carne e sangue,
em cada um dos irmãos
despertar o amor que semeaste em nós,
para que frutifique e ilumine.

Ilustração: Rosa chá, fotografia feita no jardim do Convento de São Tomás de Ávila em Maio de 2011.

Perguntaram a Jesus: “Quem és tu?” (Jo 8,25)

A identidade de Jesus, bem como a de cada um de nós, é uma questão sempre em aberto.
No que diz respeito a Jesus, vemos ao longo dos Evangelhos como foi difícil perceber quem ele era. Na anunciação do Arcanjo Gabriel confronta-se uma promessa de glória e poder com uma realidade de humildade e pobreza; na vida familiar com Maria e José uma paternidade e obediência que se encontra no templo de Jerusalém; na vida com os discípulos um equilíbrio entre as expectativas de poder e o convite ao serviço e à humildade; na vida pública uma oposição entre o Filho do homem e o Filho de Deus, entre o ser e o não ser.
E contudo, todas estas dimensões, todas as percepções possíveis são incompletas, pois Jesus não pode ser reduzido, condicionado apenas à sua dimensão histórica, ao homem que viveu há dois mil anos. Tal concepção ou definição colocar-nos-á sempre numa resposta errada, distante da verdadeira e real identidade.
À pergunta dos fariseus “quem és tu”, Jesus responde com a sua identidade divina, uma identidade de Filho, mas uma identidade que se funda e fundamenta na relação do ser.
Eu sou, Filho de Deus, lá de cima, de outro mundo, sou, quando levantado me entregar, porque não faço nada por mim mas pelo Pai que me enviou e está comigo. Jesus é assim aquele que está próximo, visível, o irmão, mas é também o Outro, o inacessível totalmente Outro.
A identidade de Jesus constrói-se assim nessa relação de intimidade com o Pai, uma relação de confiança e total pertença, de obediência, que vai acontecendo em cada momento e permite ser como o Pai é; mas constrói-se também na relação que cada homem estabelece com ele na intimidade e na confiança dessa mesma relação invisível com o Pai que é possível através dele.
Neste sentido também a nossa identidade, como homens e ainda mais como cristãos, se vai construindo e constituindo nessa dimensão relaciona, num ser que acontece e vai acontecendo. Não sou homem, nem sou cristão, vou sendo homem e vou sendo cristão, porque me situo em relação, me vou descobrindo e identificando pela relação com os outros e o totalmente Outro a que Jesus me dá acesso.
A nossa vida não se joga assim nem no passado nem no futuro, não vivemos ao sabor de determinismos ancestrais ou destinos fatais, mas em cada instante, no hoje e no ser agora, nas relações possíveis que neste momento estabeleço e na intensidade e profundidade com que as vivo.
Se o Filho de Deus assumiu a nossa condição humana, se fez carne da nossa carne e experimentou a nossa condição relacional limitada, as nossas fragilidades humanas, assumiu a nossa identidade, foi para que nós, cada um de nós, pudesse fazer a experiência da verdadeira relação, vislumbrar a identidade divina que nos é natural e que está ao nosso alcance na medida das relações verdadeiras que estabelecermos com os outros e com Ele.
Procuremos pois encontrar a identidade de Jesus buscando a nossa identidade, ou vice-versa, encontrar a nossa identidade buscando a identidade de Jesus, sabendo sempre que quanto mais intensa e profunda for a relação na busca, mais as identidades estarão próximas da verdade.

Ilustração: “Cristo com São Sérgio de Radonezh, de Mikhail Nesterov.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Anunciação do Arcanjo Gabriel à Virgem Maria

O arcanjo Gabriel é enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré para anunciar a uma virgem chamada Maria que conceberá e dará à luz um filho.
Anúncio surpreendente e envolto num conjunto de circunstâncias e promessas que acentuam ainda mais a fragilidade e a incerteza em que estão envoltos naturalmente todos os nascimentos.
Se cada nascimento, cada esperança de nascimento, é sempre uma incógnita, o anúncio do nascimento de Jesus leva essa incógnita a valores completamente desproporcionados.
O arcanjo Gabriel anuncia a Maria que o seu filho, esse menino a quem colocará o nome de Jesus, será grande, pois receberá o trono de seu pai David e reinará eternamente na casa de Jacob. Mas por outro lado será apenas uma criança, uma frágil criança, que nascerá numa pequena gruta, admirado por pobres pastores e cujo pai, estranho ainda a todo este processo, é apenas um humilde carpinteiro.
Como conciliar essas promessas vertiginosas de grandeza, poder e glória, com a humildade do seu nascimento e da sua procedência? Como ser rei e reinar vivendo na pobreza e na humildade?
E contudo, é neste paradoxo que de facto se desenvolverá a vida daquele que hoje se anuncia como vindo ao mundo, como desejando vir ao mundo para viver a condição humana. Sendo Deus, o Filho de Deus, humildemente se despoja da sua transcendência divina, para habitar entre os homens, para na humildade e na obediência realizar a maior obra de glória, o resgate dos homens da sua condição de pecado.
Afinal a grandeza deste menino que vai nascer reside na sua mesma fragilidade, porque ao tornar-se frágil, ao assumir a fragilidade humana e a sua vulnerabilidade, proporciona ao homem o acesso à sua glória, a todo o seu poder, ao amor divino em que vive e o homem necessita para viver e que de outra forma seria sempre inacessível e intocável.
A incarnação do Filho de Deus, cujo anúncio é feito a Maria pelo arcanjo Gabriel, coloca-nos assim perante o desafio de vivermos a nossa grandeza, a nossa glória, que não se pode fundar na força nem nas nossas próprias conquistas, seria sempre limitada e finita na medida da nossa condição, mas se deve fundar na humildade e na entrega, na oferta à semelhança do dom de Deus, que por isso se torna ilimitada e perene.
Neste sentido, como Maria de Nazaré, somos convidados a deixar humildemente Deus nascer na nossa vida.

Ilustração: “Anunciação”, de Fra Bartolomeo, Catedral de Volterra.

domingo, 25 de março de 2012

Homilia do V Domingo da Quaresma

A leitura do Evangelho de São João deste quinto domingo da Quaresma narra-nos o pedido que um grupo de gregos, presentes em Jerusalém por ocasião da Páscoa, fez no sentido de se encontrar com Jesus, de o ver em privado.
Para compreender este pedido, de um grupo de estranhos, não podemos esquecer que pouco antes Jesus tinha entrado triunfalmente em Jerusalém, aclamado pela multidão como rei, e que junto dos grupos política e religiosamente influentes havia um grande desconforto face a essa mesma entrada triunfal, pelo que já tinham decidido a sua morte.
O pedido dos gregos, formulado certamente por razões pouco consentâneas com a missão de Jesus, uma vez que o evangelista não nos diz que se encontraram, é por isso para Jesus o momento da revelação da sua hora, da eminência da sua morte e glorificação, enquanto que para o autor do Evangelho é a oportunidade e o momento de colocar fim ao processo dos sinais reveladores de Jesus, de modo a apresentar o último e grande sinal, o que dá sentido a todos os outros, a morte na cruz.
Para o autor do Evangelho de São João é também a oportunidade de aglutinar num único acontecimento dois momentos significativos e de extrema importância na vida de Jesus e que ao contrário dos outros evangelistas não relata separadamente, como são o momento da transfiguração no monte Tabor e o momento da agonia de Jesus nos jardim das oliveiras.
Não fazendo o relato em particular de cada um destes acontecimentos, o Evangelho de João, integra-nos neste momento em que os gregos pedem para ver Jesus, assumindo a oração angustiada de Jesus e a manifestação do Pai face a essa oração de Jesus.
Por outro lado, este momento é também a oportunidade para o autor do quarto Evangelho nos colocar face a face com a humanidade de Jesus, com o seu dilema face à eminência da sua morte, e a decisão tomada livre e conscientemente de a aceitar sem reservas.
Neste sentido, e mostrando que Jesus não era nenhum super-homem ou um anjo insensível, uma realidade virtual, ou um ser desprovido da verdadeira natureza humana, o Evangelho diz-nos que Jesus se perturbou, que a eminência da sua morte o afectou ao ponto de, como nos diz a Epistola aos Hebreus, ter dirigido preces entre clamores e lágrimas àquele que o podia livrar da morte.
Perante a eminência da sua morte Jesus interroga-se sobre o que fazer, sobre a atitude a assumir face a esse desafio radical, um desafio que aparentemente parece colocar em causa toda a missão até ali realizada.
Esta apresentação da humanidade de Jesus e do seu dilema não pode deixar de nos interpelar, não pode deixar de nos questionar face aos desafios que a vida nos vai colocando e que tantas vezes tentamos superar sem que nos afectem, sem que nos perturbem ou deixem marcas.
Jesus viveu a nossa condição humana nos seus limites de fragilidade, de questionamento de sentido, e portanto também nós os podemos viver e superar, uma vez fortalecidos na esperança da vitória que o mesmo Jesus ali alcançou.
Vitória alcançada, como nos diz a Epistola aos Hebreus, na obediência, na conformidade ao projecto e à vontade do Pai, pois assim o assume Jesus ao dizer que foi para isso que chegou àquela hora, que todo o seu projecto de vida se desenvolveu.
A obediência permite a Jesus compreender e aceitar a hora difícil que lhe chega, uma hora que faz parte do projecto de salvação desenhado pelo Pai e anunciado pelos profetas ao longo da história.
E uma vez que assume na obediência a sua hora, face ao consentimento na colaboração na obra salvadora que glorifica o nome do Pai, o mesmo Pai lhe garante a vitória, porque nada está na sua mão, mas na mão do Pai ao qual se entrega livremente.
Não nos pode por isso estranhar que a obediência a Jesus, a obediência aos seus mandamentos e à sua palavra, seja causa de salvação eterna, oportunidade de glorificação para cada um dos que lhe obedece, porque na obediência se experimenta essa exterioridade a nós próprios, a transferência da nossa vontade para a vontade de Deus, que é uma vontade salvadora, glorificante.
Confirmada a vitória, revelada a promessa de vitória por parte do Pai, Jesus volta-se para a multidão que tinha escutado a voz do Pai mas não a tinha percebido, para profetizar e anunciar que o príncipe deste mundo ia ser expulso. A sua obediência, plasmada no cumprimento da hora desde toda a eternidade programada, tinha assim um alcance muito mais vasto e profundo do que aparentemente poderia parecer. A obediência de Jesus vencia aquele que tinha sido desobediente e tinha envolto o mundo na sua desobediência.
Na nossa caminhada quaresmal, o encontro com a humanidade de Jesus, com a sua fragilidade, com os seus dilemas, é para nós um alento, um despertar de vontade, pois percebemos que também na nossa fragilidade e nos nossos dilemas podemos fazer a experiência da obediência e alcançar a vitória sobre o mal.
Face à obediência de Jesus na sua fragilidade aprendemos ou podemos aprender a também a ser obedientes na nossa fragilidade.

Ilustração: “Cristo confortado por um anjo”, de Paul Troger, Museu Diocesano de Bressanone.

sábado, 24 de março de 2012

Nunca ninguém falou como esse homem! (Jo 7,46)

Apesar de todos os perigos que ameaçam a vida de Jesus, ele continua a ensinar no templo, continua a manifestar a Palavra de Deus, fazendo confiança na promessa do Pai de que ainda não tinha chegado a sua hora.
Certamente não tem ilusões sobre o futuro que o espera, mas também não deixa de ter confiança de que Deus, o Pai, está do seu lado e portanto o protege e o suporta na sua causa e missão.
A sua atitude e o seu ensinamento no templo provocam inevitavelmente comentários, questões sobre a autoridade para o fazer, uma vez que não sendo um mestre, alguém da orgânica do templo, não tinha direito a tal.
A ousadia de o fazer, e de alguma falta de resposta enérgica da parte dos chefes religiosos e políticos do templo, provocam também a discussão sobre a sua identidade e origem, pois não sendo da hierarquia religiosa, só a natureza messiânica possibilitava tal ousadia.
Surgem assim as questões sobre a sua procedência, sobre a sua origem, e a constatação de que alguém vindo da Galileia não podia ser o Messias, uma vez que as profecias e a Lei de Moisés, a tradição religiosa, apontava o Messias como da descendência de David e da terra de Belém.
Esta discussão inviabiliza o conhecimento e reconhecimento de que Jesus vem de Deus, que o Messias viria antes de mais de Deus, e era isso que se tornava necessário verificar, confirmar, pela mesma acção de Jesus, pelas suas palavras e gestos, pela sua atitude e vida.
A tentativa da descoberta da identidade messiânica de Jesus pela sua procedência geográfica ou genealógica apenas poderia conduzir a um beco sem saída, a um desconhecimento e desencontro.
É pela sua palavra, pela sua mensagem de amor e misericórdia, que Jesus se dá a conhecer como Messias e Filho de Deus, que se pode conhecer a sua origem e o seu fim, a missão a que está destinado, apesar de todos os obstáculos e imprevistos, e do não reconhecimento por parte daqueles a quem é enviado.
E para tal é necessário tempo, é necessário predispor-se a escutar o que ele diz, fazer essa pausa que permite a escuta e dar esse tempo necessário para que o outro fale.
Curiosamente e contra todas as expectativas, na passagem do Evangelho de São João em que os soldados são enviados ao templo para o prender, são estes mesmos soldados que realizam a tarefa da escuta. São eles que são capazes de o escutar na sua simplicidade e na sua liberdade, e a partir dessa escuta estabelecer uma relação com Jesus, ainda que inconsciente.
Enviados pelos chefes do templo e dos escribas, os soldados não colocam qualquer questão, não se encerram em debates teológicos sobre a origem ou identidade de Jesus, deixam isso para os outros, para os que se dedicam a tal, os seus chefes.
Os soldados apenas escutam, e numa circunstância perfeitamente normal, quotidiana, pois é o facto de esperarem que Jesus termine o seu ensinamento para o prenderem, de modo a não provocarem tumultos ou qualquer rebelião, que possibilita a escuta.
É verdade que o têm debaixo de olho, que não o podem perder de vista, e tal como eles também Jesus os tem debaixo de olho, mas o que provoca a alteração, o fracasso da missão para que tinham sido enviados é a palavra que escutam a Jesus.
Uma palavra que os seduz, como se confirma pela acusação de que vão ser alvo, uma palavra de paz que lhes entra no coração e permite que se estabeleça a comunhão, uma relação, traduzida na boca dos chefes como sedução.
Ao contrário dos chefes que os enviam, eles não estão cegos pela inveja ou pelo medo de perderem o seu estatuto, o seu poder ou o seu lugar, não há qualquer interesse e por isso podem ouvir a palavra de forma independente e perceber que nenhum homem falou como aquele, que não há ali nada de mal nem de mentira, qualquer oportunismo ou tentativa de exploração.
Tal como estes soldados também nós somos colocados perante a palavra de Jesus, uma palavra que nos chega pelas Escrituras Sagradas, mas também pela palavra dos irmãos que nos solicitam ajuda, que apelam à manifestação e ao exercício do mandamento do amor.
E assim como acontece o encontro dos soldados com a palavra de Jesus, também acontece na banalidade das nossas tarefas, das nossas funções profissionais, familiares ou sociais o encontro com essa mesma palavra; também aí Deus nos dirige a sua palavra, nos confronta com ela, e nos convida a deixarmo-nos seduzir, a reconhecermos que há de facto uma palavra que de nenhum outro modo foi proferida ou podia ter sido proferida, pois é palavra de amor, de alguém que nos ama ao ponto de se entregar por nós, em resgate das nossa faltas de amor.

Ilustração: “Nenhum soldado lhe deitou a mão”, de James Joseph Jacques Tissot, Brooklyn Museum.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Nós sabemos de onde é este homem! (Jo 7,27)

Jesus sobe a Jerusalém e ainda que num primeiro momento se encontre incógnito rapidamente se deixa vencer pela necessidade de proclamar a Palavra do Pai, de ensinar as multidões.
É nesta circunstância que se levanta a discussão não só sobre a autoridade e a sua formação para ensinar, pois não era um letrado, um mestre formado nas escolas do templo, mas sobretudo sobre a sua identidade, uma vez que não sendo um mestre escolar tinha que haver uma razão superior para ele poder fazer o que fazia.
Naturalmente, a justificação para tal ousadia é encontrada na missão e autoridade do Messias, mas Jesus não se enquadra nos parâmetros reconhecidos para a vinda do Messias. A multidão conhece a sua origem, sabe de onde provém, enquanto que para o Messias a sua origem seria desconhecida, e neste sentido a multidão fecha-se e recusa-se ao reconhecimento de Jesus como o Messias anunciado e esperado.
É perante esta discussão, este conjunto contraditório de afirmações e atitudes, que uma vez mais, e jogando com a situação de equivoco, Jesus revela a sua origem e a sua natureza divina.
Assim, se a multidão sabe de onde Jesus provém em termos geográficos, da pequena vila de Nazaré e da família do carpinteiro, desconhece a sua verdadeira procedência do Pai, a sua origem divina, porque tal conhecimento só é possível àquele que estabelece uma relação, que partilha da sua intimidade.
Conhecer o outro significa acolher o seu mistério, deixar-se tocar pela profundidade da sua interioridade, estabelecer uma relação que transforma, e aquela multidão não está disposta a tal, não se predispõe a tal.
Jesus apenas quer dar a conhecer a relação única com o Pai, essa relação desenhada num nome divino que se diz “EU SOU”, e que portanto exige do outro, de cada um que entra em relação um também ser. E aqueles homens, aquela multidão não está disposta a isso.
Será junto à cruz, um centurião romano, um estanho pagão, que assumirá de forma radical esse conhecimento profundo e portanto a verdadeira relação quando disser “este era verdadeiramente o Filho de Deus”. Será esse pagão que verdadeiramente reconhecerá a origem e procedência de Jesus, a sua naturalidade do seio do Pai.
Hoje, Jesus continua a propor-nos a mesma relação e a desafiar-nos no mesmo conhecimento, na nossa capacidade de identificar e dizer a sua origem. Para tal necessitamos continuar a aprofundar a nossa relação com ele, a aprofundar o mistério do seu ser divino no nosso ser humano.

Ilustração: “Ícone da Paternidade Divina”, Museu Militar do Kremlin.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Não é de um homem que eu recebo testemunho (Jo 5,34)

O milagre que Jesus opera junto da piscina de Betsatá é um acontecimento que tem grandes repercussões, pois não só desperta a ira e o desejo da sua morte por parte das autoridades religiosas judaicas de Jerusalém, como também confronta a identidade de Jesus com as imagens que dele e sobre ele se tinham construído.
Este confronto dá-se antes de mais na formulação da identidade, nessa consciência que Jesus tem de si mesmo como Filho de Deus e vivendo em profunda intimidade com o Pai. Tal consciência e identidade entram em choque com a concepção religiosa vigente, uma concepção que concebe Deus como uma autoridade, como uma realidade que se protege no santo dos santos, e cuja ira se aplacava através de sacrifícios sangrentos executados por uma classe especialmente destinada a tal.
Mas o confronto dá-se também na leitura e interpretação dos gestos que transmitem e explicitam aquela mesma intimidade, essa identidade e natureza que Jesus reclama para si. Aquele milagre e tantos outros apenas manifestavam a natureza e missão de Jesus, a sua íntima relação com o Pai do céu, e portanto nada mais era necessário para o acreditar.
Contudo, e tendo conhecimento da missão de enviados a João Baptista, Jesus reclama o testemunho que foi dado por aquele que tinha vindo preparar o caminho, que tinha vindo endireitar as veredas para que o povo se pudesse encontrar com Deus.
Ainda que o testemunho de um homem fosse insignificante, face à verdadeira e original fonte da identidade e autoridade, o próprio Deus Pai, Jesus aceita e reclama aquele testemunho de João, pois era uma oportunidade mais para que a salvação acontecesse para aqueles homens.
E isto é que é importante, porque afinal é nesta questão que tudo se joga, é a salvação que importa, é essa a missão de Jesus e portanto tudo o que contribui e colabora com ela é passível de aceitação, de integração no processo.
Para nós, que vivemos também de testemunhos, o que nos foi deixado pelos Apóstolos, e por todos os homens e mulheres que construíram a história da Igreja nestes dois mil anos, há um desafio importantíssimo que se nos coloca, uma vez que necessitamos fundar e fundamentar nesse mesmo testemunho a nossa experiência relacional com Deus.
Hoje, como há dois mil anos, a nossa relação de intimidade com Deus passa pela fé nos gestos e palavras de Jesus, na natureza e identidade da sua pessoa, mas tal só acontece pela intermediação testemunhal daqueles que o experimentaram e experimentam. E neste sentido, só outros homens e mulheres tentarão a mesma experiência na medida em que encontrarem hoje com um testemunho, com o nosso testemunho.
Peçamos a Deus Pai que sejamos capazes, pela graça do Espírito Santo, de testemunhar a salvação que nos foi alcançada e aquele por quem essa salvação nos chega, Jesus Cristo nosso Senhor e Redentor.

Ilustrução: “Santíssima Trindade com São João e Maria Madalena”, de Sandro Botticelli, Courtauld Institute of Art.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Eu não posso fazer nada por mim próprio (Jo 5,30)

Depois de Jesus ter curado o paralítico junto à piscina de Betsatá, segundo o que nos conta o Evangelho de São João, muitos judeus escandalizaram-se com Jesus e procuravam maneira de lhe tirar a vida, pois não só não guardava o sábado, não respeitava os preceitos religiosos instituídos, como também se intitulava filho de Deus, ou seja, fazia-se igual a Deus na medida em que o dizia seu Pai.
Tal afirmação e todo o discurso que Jesus constrói para justificar a realização dos milagres revela a natureza profunda do ser de Jesus, a intimidade e relação que mantém com o Pai, e que lhe permite fazer todas as obras que realiza.
Jesus faz àqueles homens e a cada um de nós a sua confidência mais secreta, revela o seu segredo de vida, a forma como se encontra totalmente dependente do Pai, do qual recebe a vida e a missão salvadora.
Com esta revelação nós tomamos conhecimento do mistério da intimidade divina, mas se tal acontece é para que tomemos consciência de como tal mistério e tal intimidade se deve produzir também na nossa vida.
Ao revelar-nos que vive em doce intimidade com o Pai, em totalmente dependência, Jesus revela-nos também a necessidade de vivermos da mesma forma para não só gozarmos da filiação divina mas para também podermos realizar a missão a que o Senhor nos envia e convida.
Neste sentido a oração, a escuta atenta da Palavra de Deus, a Eucaristia, em que nos alimentamos do Corpo e Sangue do Senhor, e o amor fraterno vivido com verdade e justiça, são meios em que a nossa experiência se pode alimentar, fortalecer, e transformar. De sedentos de água viva podemos passar a fontes que saciam a sede.
Que o Senhor nos cative cada vez mais para vivermos na sua intimidade e a partir dela a nossa missão seja cada vez mais divina e salvadora.

Ilustração: “Trono de Misericórdia”, porta de sacrário, pintado por Franz Anton Maulbertsch.

terça-feira, 20 de março de 2012

Jesus perguntou-lhe: “Queres ser curado?” (Jo 5,6)

Ao chegar a Jerusalém, por ocasião de uma das festas, Jesus passa junto da piscina de Betsatá e ali descobre, entre o conjunto de cegos, enfermos, coxos e paralíticos, um homem que jaz enfermo há trinta e oito anos.
Jesus enche-se de misericórdia pela sua situação, pela sua doença que o impossibilita de entrar nas águas da piscina quando estas se agitam com as águas provenientes do templo.
E então coloca àquele homem, àquele doente paralítico, a pergunta mais surpreendente que se podia colocar em tal situação, “queres ser curado?”. Um pergunta cuja resposta era óbvia, pois quem não desejaria ser curado em tal situação?
Mas como acontece em tantos outros episódios do Evangelho de São João, as palavras de Jesus não são verdadeiramente compreendidas pelo paralítico. A oferta de Jesus é entendida pelo paralítico como uma ajuda para entrar nas águas, enquanto que Jesus lhe oferece verdadeiramente a salvação para a sua situação.
Contudo, e apesar do equivoco, é significativa a pergunta de Jesus, porque revela que toda a acção de Jesus, toda a salvação, é feita na base da oferta e portanto há sempre a necessidade de colaboração da parte do homem, há sempre necessidade de uma resposta da nossa parte.
Deus oferece-se e oferece a sua salvação a cada um de nós, e espera e conta com a nossa liberdade e resposta para que ela se efective, aconteça em cada um de nós, nas nossas mais diversas situações que necessitam de cura ou remédio.
E tal como aconteceu com o paralítico da piscina de Betsatá também nós muitas vezes, muito frequentemente, respondemos de forma equivocada à pergunta de Jesus. Muitas vezes buscamos uma ajuda, um apoio que não é propriamente aquele que Deus nos oferece, que Deus pergunta se queremos. Centrados na nossa necessidade mais imediata não tomamos atenção à oferta que Jesus nos faz.
Necessitamos por isso de estar atentos, de escutar a nossa realidade e vida para podermos responder correctamente à pergunta de Jesus, ou, ainda que respondendo equivocadamente, manifestar-lhe o nosso empenho em alcançar uma resposta, uma solução, pois também o enfermo disse a Jesus que todos os dias tentava entrar na água, embora fosse sempre ultrapassado.
A resposta à oferta de Jesus depende assim da nossa colaboração e liberdade, mas perceber a oferta implica também algum esforço da nossa parte, um colocar-se em situação de acontecer, porque se aquele enfermo não se tivesse dirigido à piscina com alguma esperança de entrar na água não se teria cruzado com Jesus.
Que a nossa fé nos conduza e nos coloque em processo de escutarmos as propostas de Deus para nossa salvação.

Ilustração: “Jesus curando o enfermo de Betsatá”, de Carl Heinrich Bloch.

segunda-feira, 19 de março de 2012

São José, o guarda silencioso dos mistérios

É impressionante, ao percorrermos os Evangelhos, não encontrarmos uma única palavra de José, o esposo de Maria e pai de Jesus. E sobre a sua vida, pouco mais que o incidente da paternidade de Jesus. José é assim o grande justo silencioso, aquele que vive totalmente para fora de si, para o mistério que lhe é dado participar pelo serviço da vigilância.
José possui o mistério de Deus em sua casa, o Filho de Deus feito Homem habita sob o seu tecto e no entanto da sua parte nem uma palavra, nem um comentário, ou recomendação. Todos os mistérios de que toma conhecimento pelo anjo são guardados no seu silêncio, sem qualquer divulgação, como se não houvesse palavras para expressar o que lhe era dado viver.
José vive silencioso, mas vive presente e vive de uma forma activa, pois é convidado por Deus a agir, a aceitar Maria que vai ser mãe, a levar a família a recensear-se em Belém, a fugir com o Menino para o Egipto, a regressar quando o perigo de morte já desapareceu. José tudo faz, sem uma palavra.
E por fim desaparece, depois desse incidente em que se esquece do Menino no templo e descobre, quando o encontra, que ele se tinha confrontado com a sua verdadeira filiação. Ali estava a casa do seu verdadeiro Pai.
José apaga-se assim face ao mistério que tem diante de si, um mistério que o abraça e ultrapassa e por isso é apenas passível de contemplação. Não há palavras para o dizer.
Neste sentido José é o modelo mais radical que se nos apresenta em termos de contemplação, pois adora e contempla em silêncio aquele que alterou definitivamente e de forma insuspeita a sua vida e todos os seus projectos. Na sua acção e no seu silêncio José sabe que Deus o quer ali, e o quer ali actuante e silencioso, elemento da história e totalmente estranho à história.
José é aquele que sabe que nada lhe pertence, que não é dono de nada, nem do seu filho tão desejado, mas que tudo lhe foi confiado naquele que é o único Filho, o filho muito amado.
Que São José interceda por nós, por cada um de nós, na contemplação silenciosa a que somos chamados e na casta liberdade de nada possuirmos para além do Mistério que também nos é confiado.

Ilustração: “São José com o Menino”, Escola Veneziana, Altar de São José na Basílica de São João e São Paulo, Veneza. Fotografia de MOtty.

Funeral de Frei Carlos Furtado


Como uma das perguntas que mais nos tem sido colocada é a da hora do funeral do frei Carlos Furtado, aproveitamos este meio acessível a tantos para informar que o funeral se realiza amanhã, dia 20 de Março, pelas 11.30 horas na sua terra natal de Cabaços, Alvaiázere.

Aproveitamos também para informar que a partir do final desta tarde os seus restos mortais estarão já no Centro de Cabaços para serem velados e últimas homenagens.


 
Que descanse em paz e a fé em Jesus Cristo ressuscitado conforte a nossa dor.


 
Ilustração: “Jesus Cristo Cruz Vermelha”, de Evelyn de Morgan.

domingo, 18 de março de 2012

Homilia do IV Domingo da Quaresma

Celebramos hoje o domingo da alegria, o domingo “laetare” e com ele somos convidados a fazer uma pausa no nosso caminhar quaresmal e a colocar os nossos olhos no prémio que nos espera no final do percurso, para tomar um novo fôlego nesta caminhada de conversão que comporta toda a vida.
Um prémio que nos é anunciado e enunciado no diálogo que Jesus tem com Nicodemos e que assume como referência histórica e teológica o acontecimento da serpente de bronze elevada por Moisés no meio do deserto. Tendo diante de si alguém conhecedor da lei, das tradições e da história do povo de Israel, Jesus revela como também a sua vida e a sua morte estão prefiguradas nesse acontecimento e nesse símbolo.
Se para o povo que peregrinava no deserto a serpente de bronze elevada no poste e olhada com fé era motivo de cura, de remédio contra a mordedura das serpentes do deserto, também ele, quando fosse elevado no madeiro da cruz, seria remédio para os males dos homens, cura contra as mordeduras da serpente que desde Adão ataca o homem.
A cruz, olhada com fé, percebida como manifestação da entrega do Filho pelo Pai, como realização suprema do amor de Deus pelos homens, é assim o remédio para os males do homem, a possibilidade que se abre de uma cura, a passagem para a vida eterna.
Na nossa caminhada quaresmal, e na nossa caminhada de vida, é importante que não percamos de vista esta realidade, este dado, uma vez que a partir dele todas as coisas e todos os acontecimentos adquirem uma outra dimensão, outra relevância.
Como nos diz Jesus ao terminar a conversa com Nicodemos, a partir deste dado, desta fé, as nossas obras deixam de ser obras das trevas e inserem-se no percurso das obras da luz, são verdadeiras manifestações da salvação divina.
Contudo, e nesta questão não podemos deixar de ter presente também aquilo que São Paulo diz aos Efésios na sua carta, ou seja, que não são as obras que nos alcançam a salvação, mas que a salvação é um puro dom de Deus.
Podemos e devemos então interrogar-nos sobre as obras que praticamos, sobre o seu sentido, e porque continuamos a insistir nelas quando a salvação nos é oferecida, quando não pode ser conquistada pelo nosso esforço nem pelas nossas obras. Cabe perguntar porque nos esforçamos neste percurso da Quaresma a rezar um pouco mais ou com mais atenção, a prescindir de determinados bens ou satisfações para satisfazer outros, para podermos partilhar com aqueles que não têm ou têm pouco?
Não podendo garantir a salvação pelas nossas obras, é contudo com as nossas obras que podemos garantir a sua adequação à nossa vida e à nossa pessoa. É pelas nossas obras que vamos permitindo que a salvação de Deus se vá permeando na nossa realidade, se vá fazendo actualidade e vitalidade.
Assim, quando na Quaresma somos convidados a uma oração mais intensa, esse convite surge no sentido de uma consciencialização da acção de Deus junto do homem, de cada homem e de cada um de nós, ajuda a centrar-nos na nossa necessidade relacional com um centro que dinamiza toda a nossa vida e lhe dá orientação que é Deus.
Por outro lado o jejum e a partilha dos bens colocam-nos nessa dimensão relacional com os nossos irmãos, ajuda-nos a perceber que o mandamento do amor se vive em pequenos gestos, que o amor de que fomos objectos se deve traduzir em amor e cuidado para com os outros.
E se estes gestos, estes exercícios são difíceis, como tantas outras realidades da nossa vida, como o sofrimento ou a perda de alguém, a doença ou a violência, a sua dimensão e dificuldades são reequacionadas quando lidas e traduzidas à luz do mistério da cruz, do prémio que nos espera e se perfila no horizonte.
É a salvação que nos é oferecida na cruz que nos alimenta e alenta na caminhada, é a salvação que alcança as nossas obras e as transfigura, integrando-as na dimensão divina e na realização do projecto de Deus.
E neste sentido, do nosso coração deve brotar a alegria, esse dom que nos é oferecido por Deus em sintonia e complemento com a esperança que albergamos face à salvação que nos foi alcançada na cruz, no corpo elevado no madeiro por amor.
É a riqueza e a abundância do amor de Deus que nos anima, e assim tudo o que fazemos e sofremos, tudo o que prescindimos e abdicamos, não é uma perda ou uma limitação, mas uma requalificação real à luz do mesmo amor de Deus.
Que iluminados por esta esperança e a garantia da promessa do Senhor sigamos o nosso percurso de conversão, sempre com um novo fôlego e um novo ímpeto, de olhos fixos na cruz que é o nosso prémio.

Ilustração: “Crucifixão com São Domingos, Maria Madalena e a Virgem Maria”, Fra Angélico, Mosteiro de São Marcos, Florença.

sábado, 17 de março de 2012

Frei Carlos Manuel Furtado dos Santos (1961-2012)

É com uma grande tristeza que escrevemos este texto, neste ambiente de comemoração do aniversário da Restauração da Província Portuguesa da Ordem dos Pregadores em Portugal, pois perdemos hoje num aparatoso acidente de automóvel um dos nossos irmãos, frei Carlos Furtado, alguém de quem ainda se esperava muito.
Há uma semana atrás recebeu-nos com imensa alegria no Convento de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, do qual era Prior desde Outubro passado, para ali comemorarmos o cinquentenário da Restauração da Província. Hoje recebeu-o o Pai celeste nos seus braços, após um acidente de automóvel quando se dirigia para casa da família.

Frei Carlos Manuel Furtado dos Santos nasceu no dia 1 de Janeiro de 1961 em Alvaiázare, diocese de Coimbra, filho de Higino dos Santos e de Cecília da Conceição Furtado.
Entrou na Ordem dos Pregadores em 1996, tendo feito o Noviciado no ano lectivo de 1996/1997 em Sevilha, e professou a 5 de Outubro de 1997 na companhia de frei José Manuel Correia Fernandes e frei Herlânder Joaquim Pala Alves Meda Limão. Professou solenemente a 5 de Outubro de 2000.
Realizou os estudos teológicos na Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Lisboa e foi ordenado de presbítero pelo Cardeal Patriarca de Lisboa a 1 de Dezembro de 2002 no Mosteiro dos Jerónimos.
Enquanto estudante de teologia residiu no Convento de São Domingos de Lisboa, passando depois da ordenação de diácono a residir no Convento de Fátima. Desde o seu tempo de estudante esteve sempre ligado à pastoral juvenil, tendo ocupado nos últimos anos o cargo de responsável pela Pastoral Juvenil e Vocacional da Província Dominicana Portuguesa e colaborado nesta área no conjunto da Família Dominicana.
Entre 2001 e 2005 foi membro do Conselho Provincial durante o governo de frei Miguel dos Santos e desde Outubro passado era Prior do Convento de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, do qual também já tinha sido Ecónomo.
Hoje, 17 de Março de 2012, ao fazer uma das suas já habituais visitas semanais a casa dos pais, por quem nutria um grande carinho e respeito, foi o Senhor servido chamá-lo para a sua companhia. Partilhando da glória do Pai pedimos que o seu trabalho em prol das vocações e juventude dominicanas seja agora recompensado.

Ilustração: Frei Carlos Furtado nas comemorações da Restauração da Província a 11 de Março de 2012 no Convento de Fátima.

O publicano desceu justificado a sua casa e o outro não. (Lc 18,14)

São Lucas situa-nos a narração da parábola do fariseu e publicano que sobem ao templo para orar dizendo-nos que Jesus a contou para confrontar alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros. Estamos assim perante uma parábola que parte da nossa relação com os outros e se espelha na relação com Deus.
O fariseu que sobe ao templo, e dá graças a Deus, perde todo o mérito do bem que fez na medida em que se compara com o que os outros fizeram, ou fazem. O seu ponto de referência não é Deus, mas são os outros e os seus comportamentos mais ou menos correctos.
Neste sentido, para além de se colocar como juiz dos seus irmãos, cai na tentação de perceber o coração dos outros homens, daquele publicano que se aproximava como ele junto do altar de Deus. Percepção e conhecimento que só é possível a Deus, porque só Deus conhece verdadeiramente o coração do homem e de cada homem.
O fariseu coloca-se assim como centro, como deus das coisas boas que faz, dos preceitos que cumpre rigorosamente, não reconhecendo que são dom da generosidade e bondade de Deus, e coloca-se orgulhosamente como ponto de referência mesmo para aquilo que os outros não fazem ou não vivem.
Por esta razão Jesus diz que ao regressar a casa não regressou justificado, porque no fundo e ainda que dirigindo-se a Deus não tinha deixado de estar centrado em si mesmo, não tinha deixado de se assumir como deus das suas próprias realizações, não se tinha libertado da sua auto-suficiência.
Pelo contrário, o publicano não estabelece outra relação senão com Deus, não tem outro ponto de comparação senão o próprio Deus, diante do qual se descobre e confessa pecador. Ao apresentar o seu pecado, as suas fraquezas e infidelidades não despreza ninguém, nem se compara com ninguém, mas expõe-se unicamente ao que era dom de Deus e não tinha sabido acolher.
Como nos diz Jesus, ele regressou justificado a sua casa, e regressou porque se apresentou para ser curado por Deus, para ser erguido por Deus, para viver diante de Deus como pecador, como nos convida o Senhor através do profeta Oseias. Porque ainda que o nosso amor seja como o nevoeiro da manhã que logo desaparece, se nos apresentarmos nessa humildade e simplicidade, o senhor virá a nós como aguaceiro de Outono, encharcando-nos da sua graça.
Apresentemo-nos por isso diante do Senhor sem juízos e sem desculpas, como Adão nu na sua miséria e infidelidade, para que os senhor nos revista da sua graça e possamos voltar libertos e fortalecidos para os novos combates que sempre se desenham no caminho da fidelidade a Deus.

Ilustração: “O publicano e o fariseu”, fresco da Basílica de Ottobeuren, Alemanha.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Não estás longe do reino de Deus (Mc 12,34)

Um escriba aproxima-se de Jesus para lhe colocar uma questão sobre o primeiro dos mandamentos. Ainda que um pouco ousado não é estranho e insere-se dentro da lógica da aproximação dos escribas e doutores da lei a Jesus, sempre com o objectivo de o testarem, de o interrogarem e colocarem à prova.
Conhecedor das manhas e objectivos, Jesus responde ao escriba apontando-lhe aquele que era o primeiro mandamento da Lei dada por Moisés, mas que se completava com o mandamento do amor aos irmãos expresso no conjunto dos outros mandamentos que compunham a lei e diziam respeito ao relacionamento humano e comunitário.
É perante esta resposta que o escriba revela também a sua compreensão da lei, fazendo eco das palavras de Jesus, manifestando a novidade que tinha sido trazida pelos profetas como complemento e aprofundamento da Lei dada por Moisés.
Os profetas, face à Lei e ao seu rigorismo e desumanização, tinham anunciado como por esses caminhos ela se tinha desvirtuado, se tinha afastado do primeiro objectivo da Lei, que era potenciar e desenvolver o amor por Deus e pelos irmãos.
Desta forma e com esta afirmação o escriba encontra-se com a verdade de Jesus, com a sua palavra salvadora e por isso Jesus lhe diz que não está longe do reino de Deus, um reino que se constrói no amor e não na exterioridade de sacrifícios e holocaustos.
O reino de Deus manifesta-se assim como um reino de amor, uma realidade na qual o homem é convidado a amar com todo o seu ser, com toda a sua inteligência, com todo o seu espírito e com toda a sua alma. O homem é convidado a amar em todas as suas dimensões Deus e os irmãos, porque o amor de um se reflecte no amor do outro, há como que uma cadeia natural entre ambos.
Também nós somos convidados a viver este amor total, um amor que deve trespassar mesmo as nossas paixões, purificando-as, de modo a também nelas e através delas nos irmos aproximando do reino de Deus.
Que o Senhor Jesus nos conceda a graça do amor.

 
Ilustração: “Cristo Pantocrator”, Ícone Russo.

quinta-feira, 15 de março de 2012

A propósito de Mapas da presença Dominicana em Portugal


Quando em 1962, aquando da restauração da Província, foi feita uma pequena brochura pelo frei Raul de Almeida Rolo, e na qual se expunha uma pequena síntese da história da presença dos Dominicanos em Portugal, foi elaborado um mapa indicando os conventos constituídos ao longo da história em todo o território nacional.
Tendo conhecimento desse mapa, foi com bastante surpresa que ao desfolhar a obra “O Esplendor da Austeridade, mil anos de empreendedorismo das ordens e congregações em Portugal: Arte, Cultura e Solidariedade”, editada na Imprensa Nacional Casa da Moeda sob a direcção de José Eduardo Franco, me deparei com o mapa que nesta obra se encontra sobre a presença dominicana em Portugal.
Confesso que na altura fiquei surpreso e um tanto desconcertado, pois o mapa não assinalava os mais antigos e importantes conventos, como os de São Domingos de Lisboa, de Évora ou do Porto, e o Convento da Batalha. Só com um pouco mais de atenção me apercebi que o mapa dizia apenas respeito aos conventos constituídos no século XVI, tanto masculinos como femininos.
Com ainda um pouco mais de atenção, dei-me também conta que o mesmo acontecia com a Ordem Franciscana, e que afinal o século dezasseis tinha sido o critério para a elaboração dos mapas relativos às nossas duas Ordens.
Contudo, não posso deixar de me interrogar sobre este mesmo critério, e a sua validade, uma vez que a obra se apresenta como dizendo respeito a mil anos de empreendedorismo, e nesta lógica e face ao critério adoptado foram deixados de parte os mais importantes e historicamente significativos conventos, pelos menos dominicanos.
Neste sentido, e para repor um pouco da verdade e evitar que alguém caia no mesmo erro que eu caí, ao desfolhar o livro pela primeira vez, deixo os dois mapas para confronto.

Nota Histórica da Notícia sobre a Restauração da Província do jornal “Novidades”

A notícia da Restauração da Província Portuguesa da Ordem dos Pregadores no jornal “Novidades” de 11 de Março de 1962 é acompanhada por uma pequena resenha histórica e apologética. Divulgamo-la como mais um testemunho histórico daquele momento tão significativo para os dominicanos portugueses.

A ORDEM DOMINICANA ANDOU SEMPRE LIGADA AOS FASTOS DA NACIONALIDADE
Os fastos da nacionalidade portuguesa andam intimamente ligados aos acontecimentos da Igreja. A fundação da nacionalidade foi abençoada pela Igreja e os grandes momentos da vida nacional andaram ligados a ela e às suas instituições. É esta uma asserção que escusa prova, basta-lhe a lição da História de Portugal.
Uma das instituições da Igreja em Portugal que mais influiu na vida nacional foi sem dúvida a Ordem de São Domingos que, após cento e vinte e oito anos de interrupção, se restaura hoje organicamente numa cerimónia que ficará histórica para a Igreja e para a nação Portuguesa.
Por decreto de 28 de Maio de 1834 D. Pedro IV extinguiu, em Portugal e seus domínios, todas as casas das Ordens Regulares do Reino. Com as demais desapareceu a benemérita Ordem Dominicana. Hoje, numa cerimónia emocionante por um decreto da Santa Sé que o Eminentíssimo Cardeal Browne, Mestre Geral da Ordem de São Domingos vem pôr em execução, fica organicamente constituída a Província de Portugal da Ordem de São Domingos.
A Ordem Dominicana estabeleceu-se em Portugal logo desde o seu início. Um grande português que a História conhece por frei Soeiro Gomes, foi companheiro do próprio São Domingos, fundador da Ordem.
O Papa ao aprovar a nova Ordem deu-lhe uma modalidade diferente de todas as antigas ordens monásticas. Chamou-lhe o Papa “Ordem dos Pregadores” e de facto a finalidade primária dos nossos religiosos era o apostolado doutrinal através de todos os meios de ilustração dos espíritos para criar nos homens convicções mais profundas.
Frei Soeiro Gomes chegou a Portugal em 1271 e traçou imediatamente um vasto programa de acção para toda a Península Ibérica que o fundador São Domingos confiara à sua prudência e zelo.
A nova Ordem respirava um espírito novo e bem depressa se propagou maravilhosamente com plena aceitação dos reis e das sociedades. Ainda no século XIII, para falarmos só do território português, se estabeleceram os Dominicanos em Santarém, Coimbra, Porto, Lisboa, Elvas, Guimarães e Évora.
Bem depressa o saber e prudência dos novos religiosos foram postos à prova nas grandes crises nacionais como na substituição de El-Rei D. Sancho II e mais tarde na própria independência da Pátria como confessores e conselheiros do Mestre de Avis.
O Doutor João das Regras e D. João I por estima e reconhecimento ofereceram à Ordem Dominicana os dois históricos conventos de São Domingos de Benfica, onde floresceram dominicanos da envergadura do Santo Arcebispo de Braga Venerável D. Frei Bartolomeu dos Mártires e frei Luís de Sousa, e o Mosteiro de Santa Maria da Vitória ou da Batalha, pérola e relicário das gestas heróicas e da arte portuguesa.
A Ordem de São Domingos afirmou-se sempre cada vez mais em Portugal e principalmente no século de oiro da nossa história.
Podemos dizer que a história dos Dominicanos em Portugal tem um paralelismo quase perfeito com a história nacional. Como na consolidação da Independência estiveram e acompanharam os Dominicanos a gesta ultramarina portuguesa. Em Ceuta e nas primeiras conquistas africanas estiveram os Dominicanos estabelecendo convento naquelas cidades. Por isso o século XVI que foi o grande século português foi também o grande século da Ordem de São Domingos em Portugal. Além de se terem estabelecido durante o século XV em Aveiro, Azeitão, Abrantes e Pedrógão, estenderam os dominicanos a sua acção apostólica mais profunda e fundaram novos conventos durante o século XVI em Almeirim, Vila Real, Coimbra, Amarante, Alcáçovas, Ancede, Montemor, Viana do Castelo, Setúbal e Almada. E nos séculos seguintes, embora mais lentamente, continuou a expansão dominicana. Uma carta geográfica mostrando-nos as zonas onde estavam presentes os dominicanos é impressionante.
Para restaurarem a sua antiga e gloriosa Província têm os Dominicanos portugueses no presente três conventos e mais de cem religiosos. É essa restauração que hoje se realiza no Convento de Nossa Senhora do Rosário de Fátima em actos soleníssimos presididos pelo Eminentíssimo Cardeal Browne, Mestre Geral da Ordem de São Domingos vindo propositadamente de Roma para proceder a tão notável e histórico acto.

Notícia da Restauração da Província Portuguesa da Ordem Dominicana no “Novidades”

O jornal “Novidades”, na sua edição de 11 de Março de 1962, publicava na primeira página, em letras garrafais, a notícia da Restauração da Província Portuguesa da Ordem dos Pregadores.
Para os minimamente familiarizados com a história da presença dominicana em Portugal é flagrante o erro do título da notícia, pois a Província Portuguesa da Ordem dos Pregadores tinha sido criada em 1418 por uma Bula do Papa Martinho V, duzentos anos após a chegada a terras lusitanas de frei Soeiro Gomes.
O erro foi contudo corrigido no corpo da mesma, pois ao relatar os acontecimentos a ocorrer nesse dia em Fátima o autor da notícia já se refere à restauração da Província. Pela notícia saída a público no dia seguinte, 12 de Março, no "Diário de Notícias" e já apresentada sabemos que o programa das cerimónias anunciado no "Novidades" e "O Século" sofreu alterações, tendo-se realizado todos os actos da parte da manhã.
Com estas alterações, o Mestre da Ordem Michael Browne pôde participar à tarde numa procissão no Santuário de Nossa Senhora de Fátima.
No âmbito das comemorações do cinquentenário e da divulgação do espólio documental do Arquivo Histórico Dominicano, divulgamos a notícia.

O CARDEAL BROWNE ONTEM CHEGADO DE ROMA PRESIDE HOJE EM FÁTIMA À SOLENE CRIAÇÃO DA PROVÍNCIA PORTUGUESA DA ORDEM DOMINICANA
No convento dominicano de Fátima proceder-se-á hoje às cerimónias da restauração da Província de Portugal da Ordem de São Domingos.
Para o efeito veio de Roma o Eminentíssimo Cardeal Miguel Browne, Mestre Geral da Ordem Dominicana.
O programa das cerimónias é o seguinte: às 11 horas, Sua Eminência procederá à leitura dos documentos para a restauração da Província e nomeação do novo Provincial.
Às 12, haverá missa solene no convento celebrada por sua Eminência.
Às 14, a comunidade dos dominicanos cantará solenes Vésperas presididas pelo Cardeal Browne que dará o hábito dominicano ao engenheiro Octávio Rabaçal Martins e receberá a profissão solene dos religiosos frei Gabriel Andrade Gonçalves e frei Daniel Maria Coelho.
Aos soleníssimos actos estarão presentes os senhores Arcebispo de Cizico e Bispos de Leiria e do Algarve.
Vieram expressamente a Portugal para participar nos actos da erecção da Província Dominicana o Vigário Geral da Ordem frei Esteban Gomez e os Provinciais Dominicanos das Províncias de São Domingos do Canadá, Padre Rondeau, de Espanha, Padre Aniceto Fernandez, de Toulouse, Padre Sebastian Tauzin.
Enviaram seus representantes os Provinciais Dominicanos das Províncias de Filipinas e da Irlanda.



O mudo falou logo que o demónio saiu (Lc 11,14)

O milagre que Jesus realiza com o mudo, e que nos é contado por São Lucas, é motivo de discussão e conversa sobre o poder da operacionalidade de Jesus, sobre a fonte de onde provém o poder para fazer o que faz.
É em resposta a esta questão que Jesus revela aos seus opositores e aos discípulos, que quem não está com ele está contra ele e quem não junta com ele dispersa.
Estamos assim perante um acontecimento que nos coloca uma vez mais em questão sobre a nossa vida relacional, sobre quem e com quem estabelecemos verdadeiras relações, sobre quem devemos estabelecer a verdadeira relação.
E a cura do mudo é neste sentido a porta de entrada para a questão, uma que vez que ao devolver a palavra ao mudo, ao devolver-lhe a capacidade de falar, Jesus devolve-lhe também a capacidade de relação, e de uma relação que comporta uma dimensão divina, a dimensão da palavra.
Deus revela-se como Palavra, e toda a obra da criação é uma consequência da sua Palavra, um reflexo da sua Palavra de vida que cria, recria e se desenvolve no sentido da plena realização.
Ao homem foi dada a mesma capacidade da palavra, de através da articulação física de sons, com sentido e ordem, provocar a criação, colaborar na mesma criação através da sua palavra. Pela palavra o homem é capaz de manifestar a natureza divina, uma vez que estabelece relações com os outros homens, é capaz de estabelecer uma relação com o seu criador, é capaz de construir o mundo em conceitos lógicos.
Contudo, esta capacidade do homem, este poder pode levar à divisão, pode levar à dispersão e à consequente destruição do reino, da concepção em que se estruturou toda a realidade e a vida. A palavra, que tem poder de vida, solta e desenfreada, desligada da sua fonte primordial, pode de facto levar à destruição e à morte.
E por isso, Jesus nos convida a estar com ele, a juntar com ele, a Palavra do Pai, a Palavra feita carne, a Palavra primordial, para que a nossa palavra não se torne destruição mas continue a ser fonte de vida, veiculo de crescimento para a plena realização.
Quantas vezes na nossa vida e nas nossas relações não nos votámos ao silêncio, não recusámos a palavra a alguém, mesmo a palavra da saudação diária, para manifestar a nossa indignação, o nosso corte de relações, e dessa forma nos colocámos fora da dinâmica divina da vida e do sentido último e verdadeiro da palavra que nos foi oferecida?
Que o Senhor ilumine o nosso coração para que não nos deixemos entregar ao silêncio e ao mutismo que inviabiliza a vida e a força criadora da Palavra.

Ilustração: “Conversação”, de Camille Pissarro, Museu Nacional de Arte Ocidental, Tóquio.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Notícia da Restauração da Província Dominicana Portuguesa no jornal “O Século”

No âmbito da comemoração dos cinquenta anos de restauração da Província de Portugal da Ordem dos Pregadores, e da divulgação do espólio do Arquivo Histórico Dominicano Português, apresentamos hoje os recortes da notícia publicada a 11 de Março de 1962, no jornal “O Século”, sobre a restauração da Província. A fotografia que ilustra a notícia diz respeito ao encontro do Mestre da Ordem, futuro Cardeal, Michael Browne com o Cardeal Patriarca de Lisboa D. Manuel Gonçalves Cerejeira.

O FUTURO CARDEAL MIGUEL BROWNE QUE SE AVISTOU COM S.E. O CARDEAL PATRIARCA PRESIDE HOJE, EM FÁTIMA, À INAUGURAÇÃO OFICIAL DA PROVÍNCIA DOMINICANA PORTUGUESA
Vindo de Roma, chegou ontem por via aérea a Lisboa o reverendo Miguel Browne, Mestre Geral da Ordem de São Domingos, que vai ser elevado ao cardinalato, conforme noticiámos, no próximo Consistório por Sua Santidade o Papa João XXIII, e que se deslocou ao nosso País a fim de presidir à inauguração solene da Província Dominicana Portuguesa, que se realiza hoje em Fátima.
O reverendo Miguel Browne, de nacionalidade irlandesa, que vem acompanhado do seu secretário, reverendo Gomez, era aguardado, no aeroporto, por numerosas individualidades, entre as quais Monsenhor Adriano Meile, representante do senhor Núncio Apostólico, e os senhores ministros da Irlanda, Arcebispo de Cizico, Bispo do Algarve e Conde de Merillon, Camareiro de Capa e Espada do Sumo Pontífice; Monsenhor Ferreira da Silva e os reverendos Vigário Geral da Ordem Dominicana em Roma, Sylvain e Rondeau, respectivamente, Provinciais da mesma Ordem em Portugal e no Canadá, e Alves Pereira em representação das missões franciscanas.
Ao falar aos representantes da imprensa e da rádio, o futuro purpurado, depois de confessar a sua satisfação por se encontrar mais uma vez no nosso país, que muito admira, recordou a história da Ordem de São Domingos em Portugal e enalteceu o significado da cerimónia marcada para hoje, em Fátima. E, a concluir, fez o elogio de Sua Eminência o Cardeal Patriarca, do episcopado e do clero português e pediu “a Deus bênçãos abundantes para o povo da grande Nação Portuguesa”.
Após haver estado no novo convento dominicano de São Tomás, em Queluz, o novo membro do Sacro Colégio esteve no Paço Patriarcal e na Nunciatura Apostólica, a apresentar cumprimentos, respectivamente aos senhores D. Manuel Gonçalves Cerejeira e D. João Panico, com os quais conversou demoradamente.
O reverendo Miguel Bowne, que seguiu depois para Fátima, donde deve regressar hoje à tarde, parte amanhã para Roma.
As cerimónias de hoje, em Fátima
O programa das cerimónias de hoje, em Fátima, é o seguinte: às 11, leitura dos documentos relativos à restauração da Província Dominicana em Portugal e nomeação do novo Provincial; às 12, Missa solene, no convento dominicano, celebrada pelo futuro Cardeal Browne, e às 14 a comunidade dos dominicanos cantará solenes “Vésperas” sob a presidência do mesmo futuro purpurado, que dará o hábito dominicano ao senhor engenheiro Octávio Rabaçal Martins e receberá a profissão solene dos religiosos freis Gabriel Andrade Gonçalves e Daniel Maria Coelho. Aos actos estarão presentes os senhores Arcebispo de Cizico e Bispos de Leiria e do Algarve.
Vieram expressamente a Portugal para participarem nos actos da erecção da Província Dominicana o Vigário Geral da Ordem de São Domingos, reverendo frei Estêvão Gomez, e os Provinciais Dominicanos das Províncias de São Domingos do Canadá, eeverendo Rondeau; de Espanha, reverendo Aniceto Fernandez; e enviaram representantes os Provinciais Dominicanos das Províncias de Filipinas e da Irlanda.”
O novo provincial dominicano de Portugal
Foi nomeado Provincial da Ordem de São Domingos em Portugal o reverendo frei Luís Maria Sylvain, que trabalha em Portugal há catorze anos e que já exercia o cargo de Vigário Geral da mesma Ordem no nosso país desde 1953. O reverendo Sylvain fez os seus estudos de ciências na Universidade de Laval, Quebec, no Canadá, e os estudos filosóficos e teológicos em Roma, doutorando-se em Direito Canónico no Ateneu Internacional Angelicum.

Não vim revogar mas completar (Mt 5, 17)

Ao ouvirmos dizer a Jesus, que não tinha vindo abolir ou revogar a lei e os profetas, mas completá-los e levá-los à perfeição, não podemos esquecer que ele profere estas palavras depois de ter proclamado as Bem-Aventuranças e de ter dito aos seus discípulos e àqueles que o ouviam que eram o sal da terra e a luz do mundo.
No pensamento de Jesus as Bem-Aventuranças eram assim o desenvolvimento da lei e dos profetas e na medida em que os discípulos as vivessem podiam ser uma luz no mundo, podiam dar outro sabor à vida.
Esta concepção de Jesus mostra que a lei, a sabedoria e prudência como é apresentada por Deus ao povo de Israel no Livro do Êxodo, é uma realidade dinâmica, uma realidade em constante busca de realização em direcção à perfeição.
Perfeição manifestada no momento em que Jesus diz na cruz que tudo está consumado, tudo se cumpriu, tudo o que compunha a lei e os profetas foi levado à perfeição.
Diante de tal acontecimento é fácil compreendermos que a perfeição da lei que Deus nos revela é a loucura, a loucura do amor vivido até à total generosidade, a loucura do amor desbordante por todas as criaturas.
Por isso o ensinamento dos mandamentos e a sua vivência, como diz Jesus, não podem ser desvirtuados, não podem ser relativizados às medidas dos nossos caprichos ou gostos pessoais, porque tal seria inviabilizar a sua força processual, a sua dinâmica que conduz à perfeição, a sua capacidade de mediatização, na medida em que são meios que conduzem à plenitude.
Neste sentido, assumimos humildemente que, ainda que procuremos cumprir os mandamentos na sua radicalidade, não somos perfeitos, estaríamos a cair na auto idolatria uma vez que a nossa radicalidade nunca será igual à loucura amorosa de Deus, e assumimos que estamos em caminho, em processo, e desejamos alcançar a plenitude, e neste caminho e neste processo manifestamos que o nosso Deus é um Deus próximo, um Deus que caminha connosco.
Abre-nos Senhor o coração à percepção do amor dos teus mandamentos e dá-nos força para nas nossas fraquezas e infidelidades nunca desistirmos de os procurarmos viver em ordem à plenitude que nos espera.

Ilustração: “Cristo ensinando”, António Allegri Correggio, National Gallery of Art, Washington.