domingo, 19 de setembro de 2021

Homilia Domingo XXV do Tempo Comum - Ano B



A leitura do Evangelho de São Marcos que escutámos apresenta-nos uma situação delicada, constrangedora, pois os discípulos são questionados por Jesus sobre o que conversavam no caminho e nenhum deles lhe responde, nenhum tem a coragem de lhe dar uma satisfação.

Pode parecer-nos, de facto, uma situação estranha, mas se tivermos em conta que pouco antes, uns versículos antes no mesmo capítulo do Evangelho, Jesus coloca a mesma questão, e face à resposta dos discípulos os corrige de forma um pouco ríspida, compreendemos este silêncio.

No momento anterior Jesus desce do monte, após a transfiguração, e encontra os discípulos a discutir devido à incapacidade de curarem um jovem epilético que lhes tinha sido apresentado, agora discutem entre si a primazia entre eles, inconscientes da sua pequenez e limitações, das suas incapacidades, feridos na sua susceptibilidade e no seu ego.

E todos sabemos como as feridas no ego, na nossa susceptibilidade, são bloqueadoras do diálogo, da palavra que liberta e cura. Todos nós já fizemos essa experiência, já passámos por situações que nos encerram no silêncio e no mutismo, algumas vezes bastante expressas nas feições do nosso rosto.

Perante este impasse, este silêncio, simpaticamente Jesus não volta a interrogar os discípulos, mas sentando-se no meio deles apresenta-lhes uma criança e começa a ensiná-los sobre a primazia a partir da humildade e do serviço, ao contrário do poder que eles anteriormente tinham manejado e sobre o qual tinham ancorado a sua discussão. Quem quiser ser o primeiro deverá ser o servo de todos.

Pode parecer estranho, mas nesta narração e no seu desenvolvimento encontramos aquilo que encontramos na prática do boxe, um conjunto de técnicas ou exercícios que Jesus pratica e que ensina aos seus discípulos a praticar, ajudando-os a perceber a necessidade de se esquivar, proteger, de encaixar, aguentar, e responder de forma precisa e com impacto.

Neste sentido, o texto diz-nos que Jesus caminhava pela Galileia, mas não queria que se soubesse, como se Jesus se esquivasse aos encontros e golpes que o poderiam impedir de realizar o bom combate que deveria realizar. Os Evangelhos não deixam de nos apresentar este cuidado de protecção pessoal de Jesus e aos próprios discípulos Jesus recomenda que quando não forem bem recebidos numa cidade ou forem perseguidos devem partir para outro lugar. Como nos recorda o Eclesiastes há um tempo para tudo, para combater e para se preparar para o combate.

Por outro lado, Jesus manifesta de forma perfeita o seu poder de encaixe, de modo particular nas discussões e contendas com os fariseus e os doutores da Lei. Jesus aguenta as questões, faz corpo com os seus adversários, não desarma. E mesmo com os discípulos tão pouco desarma e deixa de fazer corpo, quer interpelando-os sobre o que discutem, quer aguentando o silêncio e a falta de resposta. Por vezes é necessário dar um passo atrás, para dar dois em frente.

E por fim Jesus responde, de uma forma impactante, derrubadora do outro, mas não com violência, nem agressividade, mas tantas vezes de uma forma suave como uma pluma que derruba o peso e a brutalidade da força do outro. Uma criança sem qualquer força ou poder colocada no centro da roda do ávidos de poder é um murro no estômago, um golpe que leva ao tapete.

Por isso, aos discípulos Jesus pede que deixem ser o Espírito a falar por eles, ou seja, que deixem o Espírito gerar as palavras que podem de facto afectar o outro, provocar no sentido de chamar à palavra, de ser um apelo à mudança, porque a sabedoria que vem do alto é pura e pacífica, compreensiva e cheia de misericórdia, como nos recordava a Carta de São Tiago que escutámos na segunda leitura.

Fazer caminho com Jesus, procurar ser fiel e justo à sua imagem, ser o mais pequeno de todos no serviço, provoca inevitavelmente a inveja e a cobiça, maquinações e rivalidades, como nos alertavam o Livro da Sabedoria e a Carta de São Tiago. São frutos das paixões e desejos mundanos que habitam o coração do homem, forças que inviabilizam a paz no coração e a recta apreciação dos dons e graças de cada um, oferecidos por Deus não só para a realização pessoal, mas também para a participação na realização dos outros.

Procuremos pois, como também nos recorda o Mestre Eckhart, ser cada vez mais humildes, na medida em que ao crescermos em humildade crescemos também em espaço para Deus habitar, e consequentemente beneficiamos em maior grau dos seus dons e graças; mas procuremos igualmente estar conscientes que há um tempo para tudo debaixo do sol, um tempo para recuar, um tempo para aguentar, um tempo para responder e dar um passo em frente, e em todos os momentos e para todos os momentos uma necessidade enorme de paz no coração.

 

Ilustração:

Jesus Cristo e a criança, de Carl Bloch, Igreja de São Nicolau, Holbaek, Dinamarca.

 


domingo, 12 de setembro de 2021

Homilia Domingo XXIV do Tempo Comum - Ano B

Queridos irmãos

Uma vez mais encontramos Jesus a norte do território de Israel, uma zona de confluência de povos, culturas e religiões; e uma vez mais em caminho, como se não tivesse um lugar onde reclinar a cabeça e o procurasse.

E é neste caminho, neste processo constante de mudança, que Jesus coloca a questão sobre a sua pessoa, do reconhecimento da sua identidade, porque afinal é num processo em desenvolvimento, é sempre a caminho, que se colocam as questões fundamentais e se encontram as respostas.

Esta itinerância da vida de Jesus é para nós um exemplo e um incentivo a não perder de vista esta necessidade de nos pormos e nos encontrarmos em caminho, porque o sedentarismo e o fixismo acarretam consigo algo de mortal. Sabemos pela medicina como o sedentarismo físico conduz a doenças graves e mortais. O sedentarismo espiritual provoca o mesmo. E se para combater o sedentarismo necessitamos mover-nos, praticar desporto, para o sedentarismo espiritual necessitamos dispor-nos à dinâmica da conversão.

E é desta dinâmica que a leitura do Evangelho de hoje de São Marcos nos dá um bom exemplo, na medida em que apresenta algumas ideias que são populares sobre a pessoa de Jesus, a noção que Pedro tem e apresenta mais ou menos como porta-voz do grupo dos apóstolos, e a verdade que Jesus revela e entra em confronto com o que foi apresentado.

Quando Jesus pergunta aos apóstolos o que a multidão diz dele, não está interessado num resultado de uma sondagem de popularidade, mas podemos dizer que procura definir a base a partir da qual pode avançar para a revelação da sua verdadeira identidade.

Quando pergunta a Pedro e este responde que Jesus é o Messias, dá um passo mais no sentido da verdade dessa identidade, mas porque a afirmação de Pedro pode conduzir a compromissos ambíguos, Jesus imediatamente proíbe que seja revelado a outros o que tinha sido proclamado pela boca de Pedro. Este cuidado de Jesus prende-se com a imagem e expectativas gerais do Messias, uma imagem monárquica, revolucionária, uma espécie de substituto de César.

Quantas vezes tal não acontece connosco e na nossa relação com Deus; procuramos um Deus, um Jesus que nos satisfaça, que responda às nossas expectativas, que nos conforte nas nossas frustrações e desaires, como um analgésico ou um multivitamínico que nos alivia as dores ou colmata as carências vitamínicas.

Mas a verdade da identidade de Jesus, da sua condição de ungido e enviado por Deus Pai, é bastante diferente, uma identidade que se manifesta em processo, em caminho, em encontro e despojamento, e que apenas se revelará na sua total verdade em Jerusalém. E Jesus anuncia e prepara os discípulos para tal, ainda que seja um estrangeiro, um pagão centurião romano que irá proclamar que aquele supliciado na cruz é “verdadeiramente filho de Deus”.

É no desastre total, no aniquilamento total, que acontece a revelação plena da pessoa e identidade de Jesus, quando entrega a sua vida por amor, porque não são os outros que lha tiram, mas é ele que a dá, de forma soberana e plena.

Face a este mistério da revelação da pessoa de Jesus, da sua verdade, também nós somos confrontados com os espaços e os modos de revelação da verdade de nós próprios e das nossas vidas e compromissos. É no despojamento das expectativas, das falsas imagens e das máscaras, que nos encontramos verdadeiramente uns com os outros no que verdadeiramente somos. A verdade da nossa identidade e pessoa passa inevitavelmente pela cruz na qual nos encontramos uns com os outros.

Quanto nos falta descobrir e desvelar de nós próprios e dos nossos irmãos nos encontros e desencontros da vida, e quanto nos falta encontrar da pessoa de Jesus nos nossos irmãos para podermos dizer por nós próprios quem ele é para nós.

E neste sentido não podemos passar ao lado das palavras de São Tiago, que nos confrontam com a necessidade de equilibrarmos a nossa fé com as obras e as nossas obras com a fé. Uma e outras estão profundamente ligadas, na medida em que a fé nos faz descobrir a presença de Cristo nos irmãos, com as suas misérias e fragilidades, que tantas vezes são espelhos das nossas, e com os irmãos descobrimos a presença amorosa de Deus que vem ao encontro das nossas mesmas fragilidades e misérias com a sua misericórdia.

É neste acolhimento mútuo, num caminhar conjunto de descoberta e desvelamento, que somos capazes de dizer quem é o ungido de Deus, o nosso Messias Jesus, numa resposta pessoal e única, numa resposta que não deixa de estar em construção e desenvolvimento constante até vermos Deus face a face.

 

Ilustração:

Jesus conversa com os seus discípulos, de James Tissot, Brooklyn Museum, Nova York.