quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Batei e abrir-se-vos-á! (Mt 7,7)

Já não é comum entrarmos numa carpintaria ou marcenaria, fazer a experiência do cheiro da madeira, do aveludado do pó, dos sons sincopados do serrote ou do martelo sobre as tábuas. Tal falta de possibilidade acontece, não só porque elas foram desaparecendo dos nossos bairros, mas sobretudo porque fomos comprando móveis que nos chegam empacotados e como um quebra cabeças temos que montar na privacidade das nossas casas.
E quantas vezes esses móveis acabam num canto ou porque perdemos a paciência para o montar, ou porque não terminam de ficar perfeitos como os vimos na exposição e na fotografia do catálogo. Outras vezes ficam de pé e permanecem mas há uma peça que sobra.
Apesar disto, ainda bem que estes móveis nos chegam a casa, porque nos permitem fazer a experiência da oração. Tal como Jesus nos recomenda no Evangelho, podemos fazer a experiência do que significa bater para que se nos abra.
Muitas vezes percebemos este bater das palavras de Jesus como um preceito de força, de intensidade, de quantidade, quanto mais melhor, e colocamos a perspectiva na linha das obras que devemos intensificar e reforçar.
E contudo, tanta na carpintaria como nos momentos em que montamos um móvel que nos chega em peças, a questão não se coloca tanto do lado da força, da quantidade, mas da qualidade e disposição. Como tantas vezes dizemos, não é uma questão de força mas de jeito.
Bater à porta na oração exige assim de nós, mais que uma intensidade, uma adequação, um limar, um toque de jeito, a escolha da peça correcta, uma verdadeira ascese que coloca em sintonia a nossa vontade com a vontade de Deus.
É tempo pois de procurarmos montar o móvel da nossa oração, com paciência, com jeito, mas sobretudo com amor, porque só ele nos dá a verdadeira qualidade da força a usar.

 
Ilustração:
“Jesus na carpintaria de São José”, de Matteo Pagano.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O rei sentou-se sobre a cinza. (Jn 3,6)

Iniciámos o tempo da Quaresma com esse rito tão simples mas tão sugestivo da imposição das cinzas. Com um pouco de cinza e o sinal da cruz recordávamos que somos pós e ao pó voltaremos e que o Senhor nos convida a arrepender-nos e a acreditar no Evangelho.
Passada uma semana de caminhada quaresmal encontramos no Livro de Jonas o rei de Nínive sentado sobre a cinza, sugerindo-nos que não basta recebermos a cinza na cabeça, temos que nos sentar sobre ela.
É estranho, desconfortável, e poderíamos dizer tão pouco higiénico. E contudo é necessário sentar-se sobre as cinzas, depois de descer do trono, tirar o manto e cobrir-se de saco como fez o rei de Nínive.
Nesta Quaresma somos convidados também nós a descer do trono do nosso orgulho, da nossa vaidade, a despir o manto da auto-suficiência ou até da arrogância, e a cobrir-nos com o saco pobre e esfarrapado das nossas limitações.
Então, poderemos e sentar-nos-emos na cinza da nossa condição humana, no nosso pó e na sua fragilidade, no que verdadeiramente somos como homens e mulheres, e perceberemos que diante do nosso nada e do nosso pó, só o sopro da vida tem sentido, só Deus nos pode erguer e manter de pé.
Hoje, num qualquer momento do dia, vou sentar-me sobre a cinza que eu próprio sou e vou clamar ao Senhor: Compadecei-vos de mim pela vossa bondade, não desprezeis um espírito humilhado e contrito, fazei nascer dentro de mim um espírito firme, criai em mim um coração novo, criai-me de novo no vosso amor!

 
Ilustração:
“Figura ajoelhada em oração”, aguarela de Francois Barthelemy Marius Abel.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Pai nosso… (Mt 6,9)

Entro neste espaço que já me é habitual, uns passos em frente, e no primeiro banco ajoelho-me. Diante de mim o altar, a cruz, o sacrário para o qual uma luz trémula ma chama a atenção. Está ali presente de uma forma particular o meu Senhor e o meu Deus, na forma como quis ficar connosco para ser pão de vida, alimento para a caminhada dos seus filhos.
Sem pensar traço sobre o peito o sinal da cruz, renovo em mim o sinal da vitória sobre o mal, e elevo o meu pensamento, vim rezar, colocar diante do altar as minhas preces.
Sem pensar, apresento as minhas necessidades, as minhas preocupações, as minhas quedas e fraquezas, a força que peço ao Senhor para não deixar de acreditar nem desanimar. E rezo a oração que Jesus nos ensinou.
Pai Nosso que estais nos céus… um travão obriga-me a parar, o Espirito leva-me mais longe, para lá de mim e das minhas palavras e preces. Como é difícil Pai passar do meu “eu” para o nosso “nós”, do “Meu Deus” para o “Nosso Pai”, dessa relação tão vertical que me liga a Deus para a relação mais horizontal que me une aos outros homens e mulheres.
E a oração que Jesus nos deixou não faz outra coisa senão recordar-nos que não somos nada sozinhos, que falar verdadeiramente com Deus implica obrigatoriamente reconhecer os outros como parte de mim, como membros vivos do mesmo corpo em que existo, participantes das mesmas minhas necessidades.
Novamente traço o sinal da cruz sobre o peito, e de um ombro ao outro ombro alargo o horizonte e passo a ter presentes todos os meus irmãos, aqueles homens e mulheres que conheço e desconheço, os mais próximos e os mais distantes, e recomeço… Pai Nosso!

 
Ilustração:
“Oração”, de Ernst Hildebrand.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Quando é que te vimos irmão pequenino, Senhor? (Mt 25,37)

Nesta manhã de inverno um tom de cinza cobre o firmamento; dos ramos despidos dos velhos plátanos da avenida as gotas de chuva tombam grossas sobre o vidro do carro. No passeio alguns transeuntes, homens e mulheres que acorrem aos seus postos de trabalho, mas antes têm que deixar os filhos no colégio.
Que azáfama logo de manhã, e com este tempo tão pouco convidativo a qualquer movimento. Uma irritação aflora nos movimentos, pois o filho parece não perceber que a chuva mansinha o molha e o coloca novamente em perigo face à gripe. O guarda-chuva parece que encravou e um pensamento negativo fulmina a mente.
Vamos passando, uns e outros, transeuntes de passeio, fechados nos nossos abrigos e escondidos sob os nossos guarda-chuvas, e a pobre mãe aflita porque o tempo urge e o filho ainda quer o brinquedo que está no assento de trás do carro.
Quando o fizeste a um dos meus irmãos mais pequeninos a mim o fizestes, diz o Senhor! E contudo não vemos o irmão mais pequenino, nem na criança, nem na mãe, nem na idosa que carrega o seu saco pesado de compras, e muito menos na pessoa que temos diante de nós no balcão do nosso serviço de atendimento.   
Hoje, e ainda que seja apenas hoje, vou elevar o guarda-chuva, vou soltar o botão da gabardina, vou abrir o coração e estender a mão ao irmão mais pequenino que Deus coloca diante de mim, no meu caminho.
O Irmão Pequenino é essa criança que nos atrapalha o passo, essa mãe aflita sem tempo, o pai esgotado de um dia de trabalho, a avó que já não sabe onde deixou a sua carteira, o colega de trabalho que está sem paciência, o idoso que entrou no autocarro e não tem lugar, o desconhecido que se cruza connosco na rua e merece um sorriso, um voto de bom dia.
Hoje, vou encontrar o meu irmão pequenino e ter um gesto que marque a diferença, hoje vou encontrar-me com o Senhor no rosto de um daqueles que se cruzar comigo.

 
Ilustração:
“Deixai vir a mim as criancinhas”, de Fritz von Uhde.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Homilia do I Domingo da Quaresma

A sobriedade da igreja sem flores e decoração, a cor roxa dos paramentos, recordam-nos que estamos num outro tempo litúrgico, numa outra sintonia, se assim podemos falar. É a Quaresma, que iniciámos na quarta-feira passada com o rito da imposição das cinzas, mas que para maior parte de nós apenas começa hoje, apenas hoje se torna evidente nesta materialidade distinta dos despojamentos decorativos e da cor.
Quaresma que nos prepara para a celebração da Páscoa, do grande mistério da vitória de Jesus Cristo sobre a morte; Quaresma que representa e nos desafia para um combate, para uma viagem através do deserto.
A leitura do Evangelho de São Marcos que escutámos mostra-nos de uma forma sóbria e sucinta como Jesus fez também a sua experiência de deserto, como viveu o seu combate pela fidelidade ao amor que o Pai lhe tinha manifestado após o baptismo no rio Jordão.
Contrariamente aos Evangelhos de São Lucas e Mateus, que nos relatam a experiência da tentação em modo tripartido, o Evangelho de Marcos apenas nos relata que Jesus era tentado por Satanás nos quarenta dias que permaneceu no deserto.
Esta simplicidade tem como objectivo colocar-nos diante de uma outra realidade que está para além das tentações na sua particularidade, dos desafios particulares que representam, e que São Lucas e São Mateus descrevem em termos de idolatria, auto-suficiência e poder.
No Evangelho de São Marcos o que verdadeiramente importa é a participação de Jesus Cristo nessa experiência profundamente humana da tentação, e por isso a referência do deserto é compaginada com referências ao jardim do paraíso.
Tal como o primeiro homem que vivia em paz com os animais e era servido pelos anjos, também Jesus vive a mesma realidade, unindo-se dessa forma e de modo total à situação do homem na sua condição de criatura livre para optar e decidir sobre quem servir.
Jesus e Adão assemelham-se e distanciam-se nessa semelhança face à liberdade de optar pelo amor que lhes é manifestado pelo Pai e de acolher o projecto que lhes é proposto no sentido da construção de um mundo diferente
O mistério da Encarnação do Filho de Deus alcança assim a totalidade da condição humana, quer na experiência da tentação quer na experiência da morte. Jesus não foi uma realidade virtual, nem um privilegiado que esteve isento das nossas experiências mais radicais e potenciadoras de sofrimento; bem pelo contrário, assumindo a nossa condição humana sofreu os desafios da sua liberdade e fez a experiência da nossa finitude.
Face a esta realidade, e que o texto do Evangelho nos apresenta, somos convidados a viver a Quaresma como esse tempo oportuno e propício para a experiência da nossa liberdade, poderíamos dizer, para a requalificação das nossas respostas e opções face à liberdade que temos e nos é concedida por Deus.
Esta requalificação das respostas não pode inevitavelmente deixar de ter presente a grande mensagem de confiança que nos é dada pela leitura do Livro do Génesis. Deus estabeleceu uma aliança com a humanidade, uma aliança que erradicou a destruição, a condenação total, mas que exige de todos nós uma fraternidade e um compromisso de boa consciência para com Deus, como nos recorda a Carta de São Pedro.
Procuremos pois aproveitar este tempo propício que o Senhor nos concede e através de uma oração mais intensa, de uma esmola mais diligente, e do jejum das realidades de injustiça e mentira, se abra a porta do nosso coração e da nossa vida ao Verbo que elevou a nossa condição humana à dignidade divina.

 
Ilustração:
“A Tentação de Cristo”, de Ilya Repin, Bukowski Leilões, Estocolmo.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Homilia do IV Domingo do Tempo Comum

Os Evangelhos dos domingos anteriores apresentaram-nos a convocação dos primeiros discípulos de Jesus, o convite e a busca daqueles homens que foram capazes de ver em Jesus um mestre, alguém que podiam seguir e no qual podiam fazer confiança.
O Evangelho de hoje insere-se nessa mesma perspectiva, nesse mesmo contexto, mas sofre uma inflexão, faz como que uma curva de cento e oitenta graus para nos mostrar e mostrar aos discípulos que havia algo mais em jogo.
O milagre que o Evangelho hoje nos relata e a autoridade que Jesus manifesta e todos são capazes de reconhecer, é o pretexto para nos colocar a todos diante de uma realidade fundamental, e que é esta: não podemos procurar, seguir Jesus, reconhecer a sua autoridade pelos meros gestos exteriores.
Neste sentido, e num exemplo do que vai permanecer de uma forma constante ao longo dos Evangelhos e portanto da própria vida de Jesus, confrontamo-nos com a discrepância entre o que vemos e nos atrai e a verdadeira realidade e natureza de Jesus.
No caso do acontecimento que o Evangelho nos relata hoje, vemos como o espirito impuro reconhece a divindade de Jesus, a proclama publicamente, e como todos os outros presentes na sinagoga não se apercebem disso e apenas reconhecem e comparam as palavras de Jesus e a sua autoridade com os escribas.
Todos os presentes deveriam ter ficado mais chocados com as palavras do espirito, que atribui a Jesus uma natureza exclusivamente divina, reservada pela lei e pela fé a Deus, que surpreendidos pelos gestos de Jesus, gestos ao alcance de qualquer mestre curandeiro.
Este desfasamento, esta discrepância é contudo desejada por Jesus e por isso o vemos neste caso a mandar calar o espirito impuro, tal como o veremos mais tarde a recomendar aos discípulos que não revelem nada do sucedido no alto do monte no momento da transfiguração. É necessário um silêncio, porque há necessidade de uma outra abordagem.
Este silêncio, esta discrição que Jesus exige face a todos os que cura ou vivem com ele algum momento excepcional deve-se à necessidade de nos encontrarmos verdadeiramente com aquele que temos diante. É a presença de Deus, o Santo de Deus, que necessitamos encontrar e ao qual necessitamos aderir.
Este processo de descoberta e adesão tem inevitavelmente consequências na nossa vida, na nossa relação pessoal com Deus e com Jesus Cristo, a quem podemos recorrer como a um mestre de magia, a uma solução instantânea para todos os nossos problemas, ou pelo contrário, com quem estabelecemos uma relação que necessita de tempo, que se compõe de altos e baixos, que se vai construindo amorosamente e atingirá um dia a plenitude.
Se ficarmos pelo externo e pelo imediato, pelo excepcional, perderemos a possibilidade de nos encontrarmos com aquele que verdadeiramente é o milagre que transforma a nossa vida, com a oferta da santidade que Deus nos faz na pessoa de Jesus Cristo, porque como nos recorda São Paulo nós fomos feitos para a santidade.
É este encontro pessoal, esta caminhada ombro a ombro, feita tantas vezes na escuridão ou na penumbra de uma luz ténue, que nos permite alcançar aquela autoridade, dimensão profética e excelência de vida que compõem a santidade e de que nos falam também as leituras de hoje.
Foi este processo que os discípulos viveram, algumas vezes em completa desordem entre as suas expectativas, o que viam fazer a Jesus e o que intuíam desses gestos. Contudo, foi esta mesma experiência desordenada que lhes permitiu após a paixão e a morte reconhecer o Mestre presente nas margens do lago aguardando-os no regresso da pesca com a refeição pronta.
O extraordinário tinha-se de tal modo transfigurado, adquirido a sua verdadeira dimensão, que era já possível reconhecer a presença do Santo de Deus na mais simples das realidades e a partir dela encetar uma outra vida mais excelente, com uma autoridade fundamentada e uma dimensão profética insuspeitável.
Também hoje somos convidados a encontrar-nos intimamente com Jesus, para que as nossas palavras e os nossos gestos não sejam apenas um proforma, uma mera encenação teatral, mas fruto de uma santidade que nos advém do encontro com o Santo de Deus.
Procuremos pois, tal como nos recomenda São Paulo, encontrar e viver as realidades que mais nos convêm e nos unem mais perfeitamente e sem desvios ao Senhor que nos santifica.

 
Ilustração:
“Jesus em Cafarnaum”, de Rodolpho Amoêdo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil.