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sábado, 17 de fevereiro de 2024

Podem os amigos do esposo ficar de luto enquanto o esposo está com eles? (Mt 9,15)


 Jesus é interpelado pelos discípulos de João Baptista, podemos dizer um pouco escandalizados, porque os seus discípulos não jejuam, como eles e como os fariseus jejuam.

Jesus responde aos seus interlocutores explicando-lhes que os seus discípulos não necessitam de práticas ou exercícios externos e materiais, mas de relação, de exercícios de relação, pois são amigos do esposo, estão envolvidos numa relação com Ele que é o mestre e esposo e com os outros que são seus irmãos. Não serão os exercícios externos, materiais, que poderão salvar, mas a relação, as relações que se estabelecem com o outro.

Esta resposta de Jesus ajuda-nos a perceber o sentido do jejum cristão e da abstinência, que ao serem vividos à sexta-feira nos colocam antes de mais em comunhão, em relação de solidariedade com a morte e a paixão de Jesus.

Nós não vivemos para comer, mas comemos para viver, e prescindir de comer, jejuar, abster-se de algum tipo de alimento, é como morrer, é uma forma de partilha, de solidariedade com a morte de Jesus, assim como também uma partilha e solidariedade com aqueles que vivem experiências de violência e morte.

Ao jejuar, ao abster-se de algum alimento, experimentamos a fragilidade, a necessidade, sentimos a fome, e torna-nos certamente mais despertos e sensíveis para com aqueles que se encontram em situações de fome, de miséria, e de morte, cria-nos uma relação solidária e íntima com eles. Por esta razão o jejum anda associado à esmola e à oração, uma tríade de relações que somos convidados a viver na Quaresma.

O jejum que nos encerra numa prática isolada, num exercício de luta sobre os nossos apetites, numa exibição orgulhosa de como somos capazes de nos domar, é um jejum sem relação com o outro e por isso sem sentido e cabimento para o discípulo e amigo de Jesus.

Jejuo de alimentos, mas também posso jejuar de palavras e gestos violentos, de maledicência e murmuração e de tantas outras realidades do nosso quotidiano, como nos convida o Papa Francisco; mas faço-o para me orgulhar e estar de bem com a minha consciência de piedade religiosa, ou para verdadeiramente estabelecer relação com outros, e através deles com o outro que é Deus amigo e esposo?

Ilustração:

Bodas de Caná, de Paolo Veronese, Museu do Louvre, Paris.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Se alguém quiser seguir-me, tome a sua cruz! (Lc 9, 23)

 

Iniciámos ontem a Quaresma, quarenta dias que nos devem preparar para celebrarmos com alegria a Páscoa da nossa redenção. E a leitura do Evangelho de São Lucas que escutamos hoje na celebração da Eucaristia deixa-nos este grande convite de Jesus, ou melhor, este grande desafio: “Se alguém quiser seguir-me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.”

Como em todos os convites e desafios Jesus não nos obriga a nada, deixa-nos a liberdade da escolha e opção. Se quiser…, o que significa que podemos não querer, que Deus respeita a nossa liberdade, sabe da nossa capacidade de dizer não.

O convite de Jesus, o seu desafio a segui-lo, não promete facilidades, ele não nos engana como uma publicidade enganosa com resultados mágicos ao primeiro passo; mas, tal como um treinador bem experiente, diz-nos desde o primeiro momento de inscrição no seu ginásio que vai ser difícil, que vai exigir esforço para podermos atingir os resultados, e sobretudo que vai exigir muita liberdade, mas mesmo muita liberdade da nossa parte, para nos vencermos nas nossas dificuldades e incapacidades, nas nossas limitações e fraquezas. Sem esta liberdade não nos venceremos nem venceremos!

Será que tenho consciência desta liberdade que Deus me concede, respeita e exige?

O convite de Jesus a segui-lo assume também que não podemos fugir nem negar a realidade em que nos encontramos, é a cruz que inevitavelmente temos de carregar, esta realidade tal e qual em que nos movemos, com as suas forças e fraquezas, com os seus combates diários pela perseverança e a coerência. Aqueles que se iniciam neste caminho de seguimento, depois da difícil aprendizagem inicial, a cada pequena vitória, a cada superação dos seus limites, experimentam a alegria da vitória final, uma liberdade inédita, a vontade de não desistir até à meta final, que a graça de Deus torna cada dia mais alcançável.

Assumo a realidade em que vivo como uma oportunidade ou procuro fugir e alienar-me dela desperdiçando desta forma a cruz que me levará à vitória final?

 

Ilustração:

Quo Vadis!, de Andrei Mironov.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Jesus questiona! Mt 21,24

Jesus sobe ao templo e começa a ensinar. Uma provocação para os instituídos no cargo, para os detentores da doutrina. Quem te deu a autoridade para ensinar, para fazeres isto, para te sentares no nosso lugar?
Jesus não se acanha nem se acobarda e sai à luta com uma pergunta, novamente com uma pergunta, que destabiliza os seus beligerantes, que obriga a uma resposta. Jesus pergunta, pergunta sempre, até quando é procurado para uma cura. Tu acreditas que eu sou capaz de fazer o que me pedes? Jesus é provocador, questiona, coloca em causa, e destabiliza as seguranças e os egocentrismos.
Se hoje Jesus se nos dirige é para continuar a interpelar, a colocar questões. Pode perguntar-nos pela nossa fé, se acreditamos que ele verdadeiramente pode fazer o que lhe pedimos nas nossas súplicas e orações; mas pode perguntar-nos também pela verdade do nosso coração, pode interpelar-nos no sentido de um discernimento da nossa vida.
Afinal o que acontece e encontramos de bom e de belo é do céu ou é da terra? A alegria e a felicidade que experimentamos é uma graça divina ou meramente fruto dos nossos humores? O sofrimento e a morte são castigos de Deus ou consequência da nossa contingência e condição finita? O que vivemos termina no pó da terra ou tem uma dimensão eterna?
As perguntas que Jesus coloca conduzem-nos ao encontro com a verdade, com a luz que ilumina verdadeiramente a nossa vida, podemos dizer que nos abrem os olhos para um olhar penetrante e os ouvidos para as revelações de Deus, como aconteceu com o profeta Balaão.
Que as perguntas de Jesus não nos intimidem nem nos desesperem, que não as tomemos como uma ofensa, mas verdadeiramente como um caminho, uma táctica amorosa para nos fazer descobrir que Ele caminha connosco, que nunca se impõe, que se oferece e partilha humildemente a nossa busca e as nossas dúvidas sem qualquer julgamento.

 
Ilustração:
Salvador do Mundo, Antonio da Correggio, National Gallery of Art, Washington.

 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

O maior dos filhos de homem! - Mt 11,11


João, o Baptista, está ainda bem escondido no seio de sua mãe Isabel quando Maria a visita. Levando também já Jesus no seu seio, Maria glorifica o Senhor após a saudação de sua prima dizendo que o Senhor derruba os poderosos e eleva os humildes. Maria está já imbuída da lógica do Reino, o Espirito Santo ilumina e fundamenta as suas palavras à luz das velhas promessas feitas ao povo de Israel.
Com Jesus, e assumida já nas palavras do Magnificat de Maria, realiza-se uma revolução, uma inversão radical das hierarquias e por isso quando fala de João o seu primo, Jesus apresenta-o como o maior entre os filhos dos homens, mas ainda assim e apesar disso, o mais pequeno no Reino dos céus é maior que ele. Disparidade de grandezas.
Quando na noite da última ceia Jesus se levanta e coloca aos pés dos discípulos para lhes lavar os pés, como um escravo, um humilde servo, ele mostra a inversão das hierarquias, mostra como no acto humilde do serviço aos outros se realiza a elevação, como os poderosos são derrubados porque estão encerrados no seu poder, na sua auto-suficiência, porque são incapazes dessa humildade que leva ao abaixar-se para elevar o outro.
Com Jesus deitado na manjedoura, cansado junto ao poço de Jacob pedindo água à samaritana, na última ceia lavando os pés aos discípulos, mesmo ao que seria o traidor, aprendemos que a verdadeira grandeza é o serviço aos irmãos, um serviço que os alimenta, que os dessedenta, que os lava e purifica dos seus traumas e os faz participantes de uma vida nova.
Ao colocarmos no presépio a manjedoura, na qual deitaremos a imagem do Menino Jesus na noite de Natal, teremos ainda a coragem de acreditar que não há maior amor que dar a vida pelos amigos?
Ao falar de João Baptista, Jesus diz que são os violentos que se apoderam do Reino, e mais tarde dirá mesmo que não veio trazer a paz à terra mas a guerra, um fogo que deseja que se expanda, que incendeie todos os homens e mulheres.
A coragem do humilde serviço aos irmãos, de dar a vida pelos amigos, é um acto de violência, sobretudo sobre o nosso orgulho e egoísmo. Estaremos nós dispostos a viver essa violência, a conquistar o Reino pelos nossos braços e combates, ou apenas a esperar passivamente que ele nos seja concedido pela misericórdia de Deus?
Se a misericórdia implica colocar-se no lugar do outro, sentir a dor do outro, fazer-se o outro no seu sofrimento, uma atitude passiva de espera não nos deixará viver verdadeiramente essas realidades, não nos permitirá ser misericordiosos. Necessitamos da violência do amor, da violência da inversão das hierarquias e dos valores, de continuar a realizar a revolução de Jesus. O Natal desafia-nos a essa revolução!

 
Ilustração:
Jesus lavando os pés aos discípulos, Palma il Giovane, San Giovanni in Bragora, Veneza.
 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Vinde a mim! Mt 11,28

Vinde a mim! É o apelo de Jesus que o Evangelho de Mateus nos transmite de forma lapidar.
Mas este grito, este apelo, atravessa a história da humanidade, a história da aliança de Deus com os homens. Podemos dizer que é o refrão da música divina, como que uma voz de encantamento que procura seduzir-nos no nosso afastamento.
Desde a criação que Deus nos apela, e este apelo ouvir-se-á até ao fim dos tempos. Deus chama-nos para a sua órbita, para a sua vida, quer-nos com Ele. E em Jesus este apelo é mais premente.
Desde o presépio ao calvário, os gestos, as palavras, a vida plena de Jesus são um apelo constante. No alto da cruz o grito “tenho sede” é a manifestação de um desejo eterno e intimo, de um desejo de saciar a sede no encontro com os homens para que estes possam ter a vida divina.
No seu Filho feito homem Deus revela-se como um mendicante, um pedinte que estende a mão na expectativa e na esperança de uma esmola, de uma dádiva, por ínfima que seja. E esta dádiva feita com doçura e humildade faz com que se torne força, uma força capaz de tornar ligeiro o fardo que carregamos todos os dias.
Depois de ouvirmos do Mestre o apelo, e de termos aprendido com Ele que a resposta humilde e confiante nos fortalece para seguirmos em caminho, que os nossos cansaços e jugos não nos impeçam de lhe responder confiadamente.

 
Ilustração:
Aparição de Jesus a Francisco e companheiros, Jose Benlliure y Gil.

 

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Desgarrar-se para se encontrar - Mt 18,12

Estou a lembrar-me de alguns filmes americanos em que assistimos ansiosos a uma perseguição a alta velocidade e ficamos surpreendidos como os vilões conhecem tão bem as saídas das auto-estradas. Em outros filmes, geralmente catastróficos, vemos as longas filas paradas nas imensas auto-estradas americanas sem nenhum movimento de avanço que permita a fuga.
São surpreendentes as auto-estradas, com os seus painéis de sinalização, com os quilómetros que nos faltam, com as saídas que se aproximam, com a indicação do destino final. Por vezes, gostávamos que a nossa vida fosse como as auto-estradas, com sinais bem precisos de quanto nos falta andar e onde devemos sair. Era tudo tão mais fácil, tudo avançaria impecavelmente.
Mas a nossa vida não é uma auto-estrada, é mais como uma estrada regional, que serpenteia no meio da montanha ou da planície, na qual tantas vezes os sinais desaparecem, nas quais sem nos aperceber já nos perdemos.
Recordo com graça uma viagem para Castelo Branco, no início da década de noventa do século passado; íamos para a ordenação do Padre Marcelino, quando nos deparámos no meio de um caminho rural, apesar de o mapa pelo qual nos guiávamos indicar uma estrada naquele lugar. Ao ver-nos desgarrados do caminho certo alguém nos disse que de facto se podia passar por ali, mas apenas de jipe, e nós tínhamos um pequeno Corsa.
Nas auto-estradas não corremos o risco de nos desgarrarmos, mas nas estradas rurais isso pode facilmente acontecer. Contudo, estarmos desgarrados não significa que estamos perdidos, porque aquele que se desgarrou não perdeu tudo, tem no mínimo a oportunidade de voltar atrás, de refazer o caminho, vai necessitar de estar atento, de ver com olhos de ver e pode até encontrar alguém que lhe indica qual o caminho a seguir.
O risco de nos perdermos acontece inacreditavelmente nas auto-estradas, porque aí, se não estivermos atentos aos sinais para sairmos na saída certa, se não estivermos atentos aos quilómetros que nos faltam e aos litros de combustível que nos restam, podemos perecer no meio do nada, sem possibilidade de voltar atrás e sem alguém para nos dizer o que quer que seja de como prosseguir.
Nos extravios da nossa vida, misteriosamente, vem ao nosso encontro Aquele que nos indica o caminho certo, o que fazer e como fazer, como necessitamos fazer uma estrada no deserto ou aplanar os nossos montes de orgulho. Deus vem ao encontro dos extraviados e desgarrados, porque para eles nada está perdido, há um olhar que se pode apurar, há um caminho que se fez e pode ser refeito, há um desejo de encontro com alguém que nos pode salvar.
Alegremo-nos neste Advento de cada vez que nos desgarrarmos dos nossos propósitos aferrados e firmemente ancorados porque é por esse caminho misterioso que a promessa de salvação chega ao coração das nossas existências imprevisíveis, é por eles que a misericórdia do Pai nos espera.
 
Ilustração:
Sinais em cruzamento, Ithaca, Nova York.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Perdoar os pecados - Lc 5,23

A cena é estranha, inusitada, mas certamente não poderia deixar de ser de outra maneira, pois enquadra uma questão verdadeiramente incomum, paradoxal.
O que é mais fácil dizer: os teus pecados estão perdoados, ou levanta-te e anda?
Para os escribas e fariseus a primeira afirmação era uma blasfémia, mas o que significava para eles a segunda? Se só Deus pode perdoar os pecados poderá qualquer homem dizer ao seu irmão, levanta-te e anda? Qual o peso destas palavras, desta ordem?
Jesus ordena ao paralítico que se levante e ande, que carregue a sua enxerga e volte para casa. Mas tal ordem é apenas para manifestar o poder da primeira afirmação, a sua realidade actuante. É o perdão dos pecados que liberta, que ergue e faz andar, que permite carregar a enxerga e voltar para casa.
Hoje perguntamos muitas vezes porque não acontecem tantos milagres como aconteceram no tempo de Jesus, porque não nos ordena ele também que nos libertemos das nossas paralisias e andemos erguidos.
A tal pergunta, Jesus interpela-nos e questiona-nos sobre o perdão dos pecados, se acreditamos verdadeiramente que ele nos perdoa dos nossos pecados, que tem poder para nos erguer da nossa infidelidade e miséria egocêntrica. Acreditamos que ele tem poder para tal? E se acreditamos, acreditamos que tal verdadeiramente acontece?
A pergunta de Jesus põe de manifesto o que verdadeiramente é mais fácil para Deus, o que está mais de acordo com a sua natureza, que é perdoar. Os milagres que nos podem pôr a andar, a ver, que nos podem curar, são intervenções secundárias para Deus, se assim se pode falar, pois interferem com o movimento natural da matéria de que somos constituídos. No mínimo, e como nos diz o Evangelho de São Lucas, são manifestações para colocar em evidência a misericórdia. Esta é a natural acção de Deus.
No nosso caminhar em ordem à celebração do Natal do Senhor podemos e devemos questionar-nos sobre a nossa fé no perdão dos pecados. Temos consciência das nossas falhas, dos nossos pecados, do que fizemos de mal ou do bem que deixámos de fazer? Acreditamos que Jesus nos perdoa? E acreditando, percebemos como a graça do perdão nos ergue e nos transforma, nos dá uma vida nova, uma vitalidade que nos permite carregar com a enxerga que é a cruz de cada dia?
Que neste Advento escutemos no nosso coração “os teus pecados estão perdoados” e nos sintamos erguidos para procurar viver dignamente como filhos de Deus.

 
Ilustração:
Jesus envia o paralítico para casa, Anthony van Dyck, Royal Collection, Windsor Castle.

 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Acreditais? Mt, 9,28


A caminho da celebração do Natal de Jesus o próprio Senhor coloca-se em caminho connosco. Vem ao nosso encontro, acompanha-nos, passa por nós e desperta-nos o desejo de o seguir. Tal como os cegos do Evangelho seguimos Jesus, gritando ou sussurrando o nosso pedido de misericórdia: Filho de David tem piedade de nós.
Ao entrar em casa, face a face, uma pergunta que nos desconcerta, que nos descoloca no nosso seguimento e no nosso grito: Mas vós acreditais que posso fazer o que pedis?
Acreditamos? Acreditamos verdadeiramente? A questão de Jesus é uma provocação à nossa demanda, à nossa fé, à confiança que depositamos nele. Confiamos verdadeira e plenamente nele?
Face à resposta crente e confiante dos cegos, Jesus responde que tudo será feito segundo a sua fé. E àqueles que tinham pedido piedade Jesus concede-lhes a visão, toca-lhes nos olhos e eles podem vê-lo.
Quando também nós pedimos a piedade e a misericórdia de Deus estamos dispostos a ser tocados na nossa cegueira e a despertar para a visão de Deus?
A nossa fé, expressa na oração de petição, leva-nos à visão do Filho de Deus que é o maior e verdadeiro bem que podemos desejar. Estamos dispostos a tal?
Que a nossa oração deste Advento esteja imbuída deste desejo e desta fé, e então veremos o Filho de Deus fazer-se carne da nossa carne, habitar em nós e entre nós.

Ilustração:
Cegos, de Frantisek Bilek, Citygallery, Praga, República Checa.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Ouvir a Palavra Mt 7


A caminho do Natal uma voz que vem de longe faz estremecer a noite.
Tantas vezes é a minha voz, que na noite grita: “Senhor, Senhor”!
Tu pareces surdo, e não respondes. E o grito ecoa na noite escura.
Mas quando silencio o meu grito, então oiço a voz que vem de longe, a voz que faz estremecer a noite.
Escuta! Escuta! Escuta!
Cada vez que grito no meio da noite, tu respondes “escuta!”
No silêncio, compreendo então que tu me conduzes, que me levas pelo caminho da Palavra.
Escutar a tua Palavra, deixar que ela me ilumine o coração, deixar-me conduzir por ela.
No silêncio da escuta permito que construas em mim a tua obra.
No silêncio consinto que assentes a minha vida e coração sobre a rocha que és Tu.
No silêncio da escuta da tua Palavra o coração recobra vida, a vida que dás àqueles que te escutam.
Podem vir as chuvas e os ventos, a tempestade que abala a casa e o coração.
Tudo poderei e suportarei, no silêncio da escuta estou assente na rocha.
Vivo em ti e tu vives em mim, vivo como Tu, entregando a vida aos meus irmãos entre a chuva e as tempestades.
Vivo já no teu Reino, no Reino inaugurado quando viestes viver entre nós.
Hoje, como sempre, a porta do Reino abre-se pela Palavra.
Que o silêncio se faça em mim neste Advento!
Para te escutar!

Ilustração:
A solidão de Cristo, Alphonse Osbert, Thos. Agnew & Sons Ldt. Londres.


quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Para não desfalecer - Mt 15,


Nunca é demais recordar que estamos em caminho, somos um povo em caminho. Esta é uma realidade intrínseca à nossa condição de crentes, de homens e mulheres de fé. Tal como Abraão somos convidados por Deus a deixar a nossa terra, as nossas seguranças e a ir para a terra nova da sua promessa, a terra nova que é o próprio Deus.
Como povo em caminho podemos desfalecer na caminhada, desesperar das condições em que caminhamos, desanimar face à falta de ver a terra prometida no nosso horizonte, tal como aconteceu com o povo de Israel no deserto e depois de ter visto os grandes sinais realizados por Deus no momento da libertação da terra da escravidão.
E como podemos desfalecer, Jesus o Filho de Deus feito homem não se alheia desta realidade, não lhe é indiferente a nossa situação e o perigo que corremos. Assim, quando a multidão sobe ao monte para se encontrar com ele, para que ele cure os coxos e os cegos, os doentes trazidos em braços, para o escutar na sua palavra iluminadora, Jesus preocupa-se com o regresso da multidão, com a possibilidade de desfalecerem no regresso a casa.
Jesus na sua misericórdia multiplica o pão, e multiplica-o de forma abundante, não quer que ninguém desfaleça, quer aqueles que o procuram bem alimentados. E para tal conta connosco, com aquilo que cada um pode oferecer, com a nossa modesta oferenda, da qual é capaz de tirar a superabundância. Jesus realiza o extraordinário, o milagre, mas a partir do ordinário, do quotidiano, para o nosso quotidiano.
Na nossa caminhada de Advento, o quotidiano, a rotina do nosso dia a dia, o ordinário das nossas vidas, não podem deixar de ser oferta, não podem deixar de ser apresentadas a Deus. É a partir delas, dessa oferta que o Filho de Deus feito homem realiza o milagre, multiplica o pão e nos alimenta para não desfalecermos na caminhada.
Que em cada dia deste Advento sejamos capazes, ao terminar o dia, de apresentar a nossa modesta oferta, tantas vezes miserável oferta, para que no dia seguinte ela seja alimento transformado por Deus para nos fortalecer para novos passos, novos desafios, uma outra e melhor oferta.

Ilustração:
Anoitecer na Beira Alta.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Revelação aos pequeninos - Lc 10,21

O Advento é um tempo de caminhada, de nos pormos em caminho e a caminho para o Natal do Senhor. É um tempo para dar passos, um de cada vez, comos os pequeninos que balançam em cada novo ensaio de um passo, porque afinal é aos pequeninos que são reveladas as verdades que são escondidas aos sábios e inteligentes.
O Advento é um tempo para sermos pequeninos, vivermos humildemente, à semelhança daquele que se fez humilde para se encontrar connosco, porque é pela humildade que somos atraídos[1], é na humildade que Deus se encontra connosco e se une a nós.
Ser pequeno e ser humilde é literalmente ser alguém sem voz, é ser alguém que não sabe como exprimir em palavras o que lhe é dado conhecer e viver, o que lhe foi revelado.
Jesus chama bem-aventurados os seus discípulos porque vêem o que muitos quiseram ver e ouvem o que muitos quiseram ouvir, mas apesar disso falta-lhes as palavras, são incapazes de dizer do mistério que presenciam e vivem. Experimentam qualquer coisa de indizível e para o qual as palavras são demasiado opacas e diminutas.
Felizes seremos quando nesta caminhada de Advento pressentirmos qualquer coisa do indizível, qualquer coisa do mistério de Deus, ainda que as palavras nos faltem ou nos façam sentir ignorantes, apesar da incapacidade de um balbuciar. Nesse rubor da pele ou fremir do coração o Eterno faz-se próximo, toca-nos, Deus humildemente vem ao encontro da nossa pequenez. Deixemos que nos toque e que nos guie nos caminhos que só Ele conhece.

 
Ilustração:
Primeiros passos, Vincent van Gogh, Metropolitan Museum of Art, Nova York.



[1] Cf. Papa Francisco – Admirabile  signum, nº 1.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Ir ao encontro de Jesus - Mt 8,5

Ao iniciarmos o Advento coloca-se diante de nós a figura do centurião romano que São Mateus nos apresenta em Cafarnaum dirigindo-se a Jesus. É um pagão, adorador de outros deuses feitos de metal e barro, homem habituado à guerra e ao domínio sobre os outros, tem subalternos aos quais ordena e lhe obedecem cegamente. Mas apesar disso é um homem com um coração, e um coração bondoso, tem sentimentos e sente o sofrimento do seu servo, que jaz paralítico em casa. Sai para ir ao encontro de Jesus.
Ao iniciarmos o Advento de 2019 somos também convidados a sair, a ir ao encontro de Jesus, “somos convidados a colocar-nos espiritualmente a caminho”[1], a não nos deixarmos prender no que possam ser as nossas dificuldades, as nossas infidelidades, os cultos que prestamos a outros deuses cujos pés de barro os tornam mais frágeis que nós próprios.
Como o centurião romano de Cafarnaum também nós temos coração, também nós sentimos, a nossa dor, a mágoa dos nossos desaires, a dor dos nossos irmãos, os seus sofrimentos, a desordem das nossas vidas pessoais, familiares ou profissionais. Que não sejam elas a impedir-nos de caminhar ao encontro de Jesus, a procurar celebrar dignamente o nascimento do Filho de Deus na nossa humanidade.
Que a nossa dor ou a dor do outro nos leve a dar o primeiro passo, a ir ao encontro de Jesus, para que também nós possamos escutar dos lábios de Cristo que a nossa fé é grande.

 
Ilustração:
Jesus e o centurião, Paolo Veronese, Museu do Prado, Madrid.



[1] Papa Francisco – Admirabile signum, nº 1.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Serei eu Mestre? (Mt 26,25)

Quando no decurso da última ceia com os discípulos Jesus anuncia que um dos presentes o vai entregar às mãos dos inimigos, cada um deles, no seu interior, coloca em pânico a questão, “serei eu?”
Os discípulos são conscientes da sua falta de amor, das invejas existentes, do ciúme que sentem uns pelos outros, são conscientes de não terem entendido muito bem os ensinamentos do Mestre e de algumas vezes lhes ter passado pela cabeça a ideia de voltar ao sossego da sua vida anterior. Mas, dessas fraquezas e incompreensões até ao desejo de o entregar para ser condenado ia uma grande distância, jamais se tinham colocado essa possibilidade.
Judas ousa colocar a questão, verbalizar o que todos pensavam no íntimo do coração, e dessa forma assume a possibilidade que mais nenhum tinha jamais pensado. Ele tinha-o pensado, tinha-o até já falado, ou melhor, negociado, faltava apenas o momento oportuno para o levar a cabo.
Judas como os outros discípulos foi escolhido por Jesus, era um dos que partilhava a sua intimidade. Tal como cada um de nós, tinha sido eleito desde a criação do mundo para ser santo e imaculado na presença do Senhor, como nos recorda a Carta de São Paulo aos Efésios.
E ainda que nos pareça completamente descabido, aquele que vai ser o traidor, Judas, era amado por Jesus, era um dos seus. É um abismo paradoxal face ao qual nos encontramos, Deus não pode mais que amar aquele que o vai trair.
É por essa razão que no momento da ceia lhe estende o pedaço de pão molhado no seu prato. Tal como hoje, também naquele tempo era aos mais próximos que se estendia o pão, era com eles que se partilhava o pão. Ao entregar-lhe o pedaço de pão, Jesus oferece a sua amizade a Judas, sela com ele um pacto, renova-lhe a participação no seu mistério já expressa nos lavar dos pés.
Então Judas sai, e faz-se noite, as trevas adensam-se, porque o amado na entrega do pedaço de pão conduz aos infernos da traição aquele que o alimentou e o serviu. Judas leva-o consigo, em si, ainda que nem tenha consciência disso. Em algum momento terá pensado que naquele pedaço de pão foi configurado ao seu Mestre e Senhor? Que no seu desastre de vida não deixa de ser sua imagem e semelhança?
Mais tarde na oração dirigida ao Pai, Jesus não deixa de manifestar a dor pela perdição de Judas, pois vigiou para que nenhum se perdesse, e nenhum se perdeu a não ser o filho da perdição, e para que se cumprisse a Escritura.
Face ao relato da traição de Judas, a fé é a única resposta possível, a única saída viável, pois foi a fé que faltou a Judas que o levou à traição e posteriormente a colocar fim à sua vida. Se Judas tivesse acreditado que nada estava perdido quando entregou o Mestre, que bastaria um olhar para tudo ser diferente, deixar-se olhar pelos olhos amorosos de Jesus.
E se o olhar já não fosse possível, bastaria acreditar na palavra, acreditar que naquele mesmo instante era por ele, mais que por qualquer outro que Jesus se entregava nas mãos dos verdugos. Aquele que tinha vindo para salvar o que estava perdido, estava a salvá-lo a ele.
Teremos nós hoje esta fé, esta esperança, acreditaremos que o Senhor nos salva porque nos perdemos? Quando é que na nossa perdição ou desaire ousaremos levantar os olhos e cruzá-los com o olhar amante de Jesus?

 
Ilustração:
“Judas Iscariotes”, de Eilif Peterssen, Nordnorsk Kunstmuseum, Tromso, Noruega.

terça-feira, 11 de abril de 2017

Não cantará o galo sem que me tenhas negado. (Jo 13,38)

Estavam reunidos para celebrar a Páscoa, a alegria transparecia no rosto de quase todos, e sem se perceber muito bem como o Mestre sentiu-se intimamente perturbado. O seu semblante alterou-se e sem qualquer preparação psicológica anunciou aos seus amigos ali reunidos que um deles o ia trair.
Podemos imaginar o murro no estômago que todos sentiram, o nó que se formou na garganta e lhes embargou a voz, ao ponto de apenas o discípulo amado ser capaz de perguntar: “quem é Senhor?” Olharam-se uns aos outros numa tentativa de percepção de quem seria o traidor.
Pedro, na sua habitual rusticidade, não aceita o que Jesus diz, e afirma que ainda que alguém possa trair o Mestre ele está disposto a dar a vida, está disposto a seguir Jesus até ao fim, a ser fiel inquestionavelmente. A tal disposição Jesus responde com o anúncio da negação, uma negação tripla ainda antes do galo cantar, ainda antes da noite terminar.
As palavras de Jesus feriram, devem ter sido um outro murro e muito mais forte no estômago e no coração de Pedro. Como era possível que o Senhor dissesse que ele o trairia ainda essa noite? Ele que tinha já deixado tanta coisa para o seguir. O orgulho de Pedro desmoronou-se!
Mas é esta ferida no orgulho de Pedro que lhe permitirá não cair na tentação do desespero, que lhe permitirá reconhecer o amor incondicional de Jesus, a porta aberta por este anúncio de traição. O Mestre sabia já o que ele faria, conhecia as suas fraquezas, e não o condenava nem o excluía, bem pelo contrário anunciava-lhe a realização da sua pretensão de entrega e fidelidade, embora para mais tarde e de outra forma.
Deus conhece as nossas fraquezas e potencialidades de infidelidade, mas não nos condena nem nos fecha a porta, bem pelo contrário, por causa delas oferece-nos a mão estendida do perdão, da misericórdia, para não soçobrarmos nas nossas infidelidades. Não é um conjunto de homens e mulheres perdidos que lhe interessam, mas aqueles que estão dispostos a fazer a experiência do perdão, a retomar o caminho onde foi abandonado.
Neste dia da Semana Santa ousemos apresentar ao Senhor as nossas próprias negações e traições para dessa forma sermos acolhidos por Ele e acolhermos a graça de uma vida nova que é já ressurreição.

 
Ilustração:
“A negação de Pedro”, de Andrey Mironov.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Maria ungiu os pés de Jesus com perfume. (Jo 12,3)

Seis dias antes da Páscoa Jesus encontra-se em Betânia, é convidado da casa de Marta, Maria e Lázaro. Uma vez mais regressa à casa dos amigos, onde sabe que pode repousar, que se pode fortalecer com a amizade que lhe tributam. Os discípulos, íntimos da família estão também ali.
Durante a refeição que é servida aos convidados e amigos, Maria vem até junto de Jesus, ajoelha-se ao seu lado, e sem que ninguém o pudesse prever começa a ungir os pés do Mestre e Amigo. Surpresa geral e até um olhar de escândalo, Judas queixa-se do desperdício, afinal com o dinheiro gasto com aquele perfume podia alimentar-se os pobres.
Mas Maria sabe muito bem o que faz, da intimidade da escuta de Jesus, percebeu que é no tempo presente que podemos e devemos cuidar daqueles que futuramente serão defuntos. É no tempo presente, no aqui e no agora, enquanto estão vivos que convém amá-los, que convém perfumá-los, cuidar do seu corpo divinamente.
Celebrando desta forma requintada o corpo do Senhor, ungindo Jesus com um perfume de alto preço, Maria anuncia profeticamente que o corpo não está destinado à destruição, anuncia a ressurreição, anuncia a habitação divina no corpo de cada homem e mulher.
Num outro encontro, há já algum tempo, uma mulher da Samaria tinha perguntado a Jesus sobre o lugar onde se deveria adorar a Deus. Maria, irmã de Lázaro, responde-lhe neste gesto desmesurado da unção dos pés de Jesus, nesta atitude de prostração aos pés do amigo.
Horas mais tarde o próprio Jesus vai repetir a cena, não ungindo os pés dos discípulos, mas também ele inclinando-se aos pés de cada um para os lavar, para os libertar do pó da terra e confiar-lhes a graça divina, a participação na sua glória. O gesto de Jesus ao lavar os pés aos discípulos confirma o gesto e a unção de Maria em Betânia, o templo de Deus é a carne do homem, é o homem vivo.
Face a estes gestos de Maria e de Jesus não podemos deixar de olhar para a nossa vida, para os nossos gestos e tentar perceber como eles são ou não gestos de unção, gestos que perfumam a vida daqueles com que nos cruzamos. Não se trata de saber se somos melhores ou piores que os outros, se somos exemplares nas nossas atitudes, mas de perceber se compreendemos verdadeiramente que o corpo do homem e da mulher é habitação de Deus, é templo do Espirito Santo.
Se o compreendermos verdadeiramente trataremos o corpo do outro com um respeito e uma doçura infinitas, quer no assento do transporte público quer na intimidade dos lençóis de linho, quer na cadeira do tribunal quer na cama do bloco cirúrgico. O cuidado e o respeito serão manifestações de que acreditamos que a morte não tem a última palavra sobre nós, sobre o nosso corpo. Ele ressuscitará uma vez que é habitado por Deus.

 
Ilustração:
“Maria ungindo os pés de Jesus”, de Daniel Gerhartz.     

sábado, 8 de abril de 2017

Decidiram dar-lhe a morte. (Jo 11,53)

O cerco vai-se apertando, os ânimos vão ficando mais exaltados e nas veias circula o ódio contra Jesus. O medo apodera-se dos corações, é preferível um homem morrer, um inocente, a perder-se o poder que se tem. As autoridades decidem a morte de Jesus, é um perigo para eles e para o poder que possuem.
Jesus aceita a morte, ainda que distante de toda esta trama de violência que se gera à sua volta, Jesus aceita o papel que lhe compete, aceita entregar a sua vida nas mãos dos homens, ser julgado por homens sem qualquer sentido de justiça, condenado por eles sem escrúpulos a uma morte ignominiosa.
Ele morre por ter anunciado aos homens o amor sem medida de Deus, o amor eterno que desde o primeiro momento da criação Deus mantém pela sua obra, e de modo particular pela obra que é sua imagem e semelhança. Ele morre por ter revelado um Deus que se apaixona, que perdoa, que sente as dores da maternidade por um filho que se perde. Ele morre por ter apresentado Deus humano.
A cruz elevada no alto do Gólgota revela-nos esse amor abissal de Deus pela humanidade, o seu coração amante para que todos os homens o saibam e possam amar sem medo. A cruz revela-nos que o amor vence o mal, o ódio, a violência, que Deus se entrega para vencer o mal que nos corrompe.
Quando traçamos sobre nós o sinal da cruz, no início de cada oração, de cada celebração da Missa, era bom que nos recordássemos desse amor, de como estamos e fomos mergulhados na mesma cruz em que Jesus esteve pregado, como ao traçá-la sobre nós estamos a assinalar a habitação do amor de Deus. Pela sua cruz Jesus deu-nos a vida divina que nos habita, fez de nós habitação de Deus.
Que o saibamos cuidar e assinalar dignamente, que descubramos todo o significado e poder deste gesto tantas vezes banalizado no seu traçar desajeitado e sem sentido.

 
Ilustração:
“O pagamento de Judas pela traição”, Giotto di Bondone, fresco da Capela dei Scrovegni, Pádua.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Quem é que pretendes ser? (Jo 8,53)

A discussão entre Jesus e os seus interlocutores vai subindo de tom, ao ponto de o acusaram de ser um demónio. A tensão é extrema e as pedras que procuram para apedrejar Jesus mostra a gravidade da situação, a tensão a que se chegou.
Tudo isto porque a palavra de Jesus os provocou em todos os sentidos, mas de modo mais incisivo quando lhes disse que se guardassem a sua palavra não veriam a morte. Afinal quem é que ele era? Ou melhor, quem é que ele pretendia ser? Porque ninguém pode escapar à morte!
E contudo, as palavras de Jesus não podem ser mais verdadeiras, porque guardar a sua palavra é guardar a Palavra de Deus, é guardar a Palavra que está presente desde o primeiro momento da criação, que faz as coisas surgirem do nada e à imagem e semelhança da qual o homem foi criado.
Guardar a palavra de Jesus é guardar fidelidade a uma palavra que não pode mentir, é permanecer numa palavra que se mantém fiel apesar de tudo o que o homem pode fazer ou duvidar, dos ouvidos que pode fechar.
Na nossa vida existe por vezes também esta tensão entre a Palavra de vida que recebemos e que nos é oferecida e as certezas que vamos construindo e nos impedem de acolher a palavra, a vida divina que ela nos traz.
É muito mais fácil acreditar nas palavras dos homens, ainda que o vento as leve como o pó, que acreditar numa Palavra que se encarna, que ama até à morte, que se entrega para ser crucificada. Paradoxo de uma palavra viva, de vida, que se deixa matar, aniquilar.
Nesta caminhada da Quaresma rezamos ao Senhor para que nos liberte das palavras vãs, do ruido de fundo das palavras que circulam e nos enredam num vazio sem sentido, e que saibamos acolher a Palavra viva de vida que nos liberta da nossa morte e finitude, que nos assume na sua imortalidade divina.

 
Ilustração:
“Ecce homo”, de Mihály Munkácsy, Museu Déri, Debrecen, Hungria.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Então sabereis que Eu Sou! (Jo 8,28)

Visão de São Tomás de Aquino, de Santi di Tito
No trecho do Evangelho de São João, que nos é proposto hoje, encontramos por três vezes a expressão “morrereis nos vossos pecados”. Sentença sem apelação.
Mas que nos quer dizer Jesus com estas palavras, com esta sentença, ele que veio não para julgar mas para salvar o mundo?
Para compreender o que nos quer dizer, o porquê desta sentença, temos que olhar para a chave que nos apresenta para a sua compreensão: “vós sabereis que Eu Sou!”
Este “Eu Sou” ressoa fortemente nos ouvidos dos escribas e dos fariseus que o escutam, pois sabem que tal afirmação diz respeito a Deus na revelação a Moisés.
Foi a Moisés que Deus se revelou como “Eu Sou”, é o nome de Deus, é a sua identidade. Este homem de Nazaré, este Jesus, proclama para ele próprio aquilo que pertence a Deus, proclama-se Deus.
Jesus revela aqui e desta forma a sua identidade verdadeira, ele é o enviado do Pai, e este “Eu Sou” ficará totalmente patente aos olhos de todos quando ele for levantado na cruz.
Na cruz ficará visível o seu ser de amor, a entrega feita ao homem desde o primeiro momento da criação quando lhe conferiu a imagem e semelhança, ficará patente a descida à habitação humana na sua maior fragilidade para que ela pudesse subir à divindade.
Na cruz todos ficamos a saber que Deus é um Deus activo, um Deus do presente, um Deus de amor, um Deus da vida, um Deus que perdoa quando se entrega, que confia no homem mesmo quando ele o crucifica.
Como são fortes as palavras de Jesus, como nos revolucionam os sistemas estabelecidos, as concepções idolátricas. Por essa razão, não podemos mais que balbuciar esta oração: “Senhor eu acredito em Ti, acredito na tua palavra, mas aumenta a minha fé, de modo que eu viva da tua vida, afim que eu seja em ti.


Ilustração:
“Visão de São Tomás de Aquino”, de Santi di Tito, Museu de São Marcos de Florença.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Vai e não voltes a pecar. (Jo 8,11)

Jesus estava no templo a ensinar e trazem-lhe uma mulher, dizem os escribas e fariseus seus acusadores que apanhada em flagrante delito de adultério.
É uma armadilha para ver se apanham Jesus, se lhe encontram mais matéria para o poderem acusar, para fundamentar a trama que se concebe no segredo para o eliminar.
Jesus percebe a intenção e sem grandes declarações, sem entrar em discussões teológicas ou morais começa a escrever no chão, reenviando aqueles homens acusadores ao seu próprio crime e pecado. Afinal estavam a servir-se da mulher para o apanhar a ele em flagrante, há má intenção no que pretendem.
Saindo um após outro deixam a mulher sozinha com Jesus, os que a tinham trazido presa abrem-lhe uma porta de saída, oferecem-lhe sem o saber uma oportunidade de futuro e de esperança.
Ninguém te condenou, perguntou Jesus; e face à resposta negativa da mulher, diz-lhe, vai que eu também não te condeno.
Vai, pequena palavra, uma ordem simples, mas cheia de força e de futuro, plena de liberdade e confiança. Vai, é ainda hoje a ordem que Jesus nos dá. Vai e faz o bem, não voltes a pecar.
Que confiança que o Senhor deposita em nós, e que paz habita o nosso coração quando ouvimos esta palavra de Jesus. Não necessitamos temer, não ficamos presos, não nos tornamos escravos.
Podemos ir, o Senhor confia em nós, como o pai da parábola do filho pródigo não teme confiar-nos os seus bens, o seu património, a vida nova da graça. O seu amor por nós é imenso.
Senhor, que eu não tema abeirar-me de ti nesta Quaresma, de pedir-te perdão das minhas faltas. Também tu me vais dizer pela voz do sacerdote, vai em paz. Vais abrir-me um futuro, uma esperança nova de que a minha vida pode ser diferente, pode ser melhor.
Senhor, que eu vá até ti cheio de confiança!

 
Ilustração:
“Jesus e a pecadora”, de Andrey Mironov.