Escutámos a leitura da
Paixão de Jesus segundo o Evangelho de São Marcos, uma leitura longa e para a
qual vamos já tendo alguma dificuldade de escuta, pois as novas tecnologias
vão-nos formatando para a velocidade e o imediato.
Contudo, necessitamos
desta pausa, desta lentidão, e até deste cansaço físico de termos permanecido
de pé para escutar a leitura, pois só dessa forma podemos entrar em
profundidade neste grande mistério, podemos partilhar as palavras e as
circunstâncias de cada um dos intervenientes.
E é querendo aprofundar
este mistério que vos convido a olhar a figura de Pedro, este homem que acompanhou
Jesus quase desde o princípio da vida pública de Jesus, que escutou as suas
palavras e testemunhou os seus milagres, que participou até no acontecimento da
transfiguração de Jesus no alto do monte Tabor.
Este homem que nos
momentos em que Jesus fala da sua paixão, em que anuncia o fim trágico que o
espera, se mostra valente e corajoso para acompanhar Jesus, para dar a sua vida
por ele. Este homem que ainda cheio de expectativas é capaz de desembainhar a
espada e ferir o soldado do sacerdote cortando-lhe uma orelha.
No entanto, quando
Jesus está já nas mãos daqueles que lhe desejam dar a morte, quando tudo parece
perdido, Pedro já não tem força nem valentia e deixa-se vencer pela acusação de
uma pobre mulher que o reconhece como um do grupo.
É a traição e a
cobardia, e um inevitável encontro com as suas expectativas infundadas de um
reino de liberdade, que para acontecer verdadeiramente necessitava deste sacrifício
e deste sem sentido que ele não conseguia aceitar.
É neste momento que
percebemos que a fé de Pedro necessitava uma purificação, uma transformação
para poder entrar na lógica do Reino de Jesus. Pedro necessitava passar por
esta perda, por esta traição e a sua consciência, para se encontrar verdadeiramente
com o amor de Jesus, com o verdadeiro sentido da missão de Jesus.
E tal como Pedro
também nós necessitamos muitas vezes fazer esta experiência de purificação, de
transformação, de sair das nossas expectativas e ideias caseiras para nos podermos
aventurar na radicalidade e verdade da pessoa e projecto de Jesus.
Diametralmente oposto
a Pedro encontra-se o centurião romano, que junto à cruz e após a morte de
Jesus reconhece que aquele inocente é verdadeiramente o Filho de Deus.
Profissão de fé
estranha, inesperada, porque aquele homem é não só um pagão mas um ignorante
quanto à vida, palavras e milagres de Jesus. Face ao que tinha diante dos olhos
jamais poderia fazer aquela afirmação, pois aos seus olhos apenas era dado ver
um homem agonizante, sofrido, e sem qualquer poder ou força. Diante dos olhos o
centurião romano apenas tem a aniquilação da pessoa de Jesus.
Contudo, é esta
aniquilação, este sem poder, que leva o centurião à fé, pois aquele agonizante
e quase morto consegue ainda expressar na flor dos seus lábios uma súplica a
Deus, um grito de angústia que o assume e integra também a ele homem da guerra,
soldado da morte.
Jesus na sua
incarnação levou até ao extremo o seu mistério e missão, partilhando não só a
morte de todos os homens, a dor e o sofrimento, mas igualmente a solidão e o
desespero face a um Deus que parece ausente e desinteressado da situação dos
seus filhos.
É todo este
desconcerto, esta situação estranha, violenta, mas simultaneamente tão
carregada de ternura e confiança no silêncio vivido após o grito e o último suspiro,
que que possibilita que este homem pagão reconheça o Filho de Deus.
A cruz e a morte de
Jesus, a sua aniquilação violenta, apresenta-se assim como uma via
incontornável para acedermos ao mistério do Filho de Deus, para fazermos a
experiência do contraste entre as nossas expectativas e a verdade de Jesus.
Ao iniciarmos a Semana
Santa com esta celebração somos convidados a aprofundar o mistério central da
nossa fé contemplando com serenidade e tempo cada momento, cada acontecimento
da Paixão de Jesus.
Procuremos pois
participar e viver cada celebração com este espirito, de modo ao terminarmos
podermos fazer a mesma confissão de fé: “este é verdadeiramente o Filho de Deus”!
“Ecce Homo”, de Luís de Morales, Museu do Prado.