domingo, 29 de março de 2015

Homilia do Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor

Escutámos a leitura da Paixão de Jesus segundo o Evangelho de São Marcos, uma leitura longa e para a qual vamos já tendo alguma dificuldade de escuta, pois as novas tecnologias vão-nos formatando para a velocidade e o imediato.
Contudo, necessitamos desta pausa, desta lentidão, e até deste cansaço físico de termos permanecido de pé para escutar a leitura, pois só dessa forma podemos entrar em profundidade neste grande mistério, podemos partilhar as palavras e as circunstâncias de cada um dos intervenientes.
E é querendo aprofundar este mistério que vos convido a olhar a figura de Pedro, este homem que acompanhou Jesus quase desde o princípio da vida pública de Jesus, que escutou as suas palavras e testemunhou os seus milagres, que participou até no acontecimento da transfiguração de Jesus no alto do monte Tabor.
Este homem que nos momentos em que Jesus fala da sua paixão, em que anuncia o fim trágico que o espera, se mostra valente e corajoso para acompanhar Jesus, para dar a sua vida por ele. Este homem que ainda cheio de expectativas é capaz de desembainhar a espada e ferir o soldado do sacerdote cortando-lhe uma orelha.
No entanto, quando Jesus está já nas mãos daqueles que lhe desejam dar a morte, quando tudo parece perdido, Pedro já não tem força nem valentia e deixa-se vencer pela acusação de uma pobre mulher que o reconhece como um do grupo.
É a traição e a cobardia, e um inevitável encontro com as suas expectativas infundadas de um reino de liberdade, que para acontecer verdadeiramente necessitava deste sacrifício e deste sem sentido que ele não conseguia aceitar.
É neste momento que percebemos que a fé de Pedro necessitava uma purificação, uma transformação para poder entrar na lógica do Reino de Jesus. Pedro necessitava passar por esta perda, por esta traição e a sua consciência, para se encontrar verdadeiramente com o amor de Jesus, com o verdadeiro sentido da missão de Jesus.
E tal como Pedro também nós necessitamos muitas vezes fazer esta experiência de purificação, de transformação, de sair das nossas expectativas e ideias caseiras para nos podermos aventurar na radicalidade e verdade da pessoa e projecto de Jesus.
Diametralmente oposto a Pedro encontra-se o centurião romano, que junto à cruz e após a morte de Jesus reconhece que aquele inocente é verdadeiramente o Filho de Deus.
Profissão de fé estranha, inesperada, porque aquele homem é não só um pagão mas um ignorante quanto à vida, palavras e milagres de Jesus. Face ao que tinha diante dos olhos jamais poderia fazer aquela afirmação, pois aos seus olhos apenas era dado ver um homem agonizante, sofrido, e sem qualquer poder ou força. Diante dos olhos o centurião romano apenas tem a aniquilação da pessoa de Jesus.
Contudo, é esta aniquilação, este sem poder, que leva o centurião à fé, pois aquele agonizante e quase morto consegue ainda expressar na flor dos seus lábios uma súplica a Deus, um grito de angústia que o assume e integra também a ele homem da guerra, soldado da morte.
Jesus na sua incarnação levou até ao extremo o seu mistério e missão, partilhando não só a morte de todos os homens, a dor e o sofrimento, mas igualmente a solidão e o desespero face a um Deus que parece ausente e desinteressado da situação dos seus filhos.
É todo este desconcerto, esta situação estranha, violenta, mas simultaneamente tão carregada de ternura e confiança no silêncio vivido após o grito e o último suspiro, que que possibilita que este homem pagão reconheça o Filho de Deus.
A cruz e a morte de Jesus, a sua aniquilação violenta, apresenta-se assim como uma via incontornável para acedermos ao mistério do Filho de Deus, para fazermos a experiência do contraste entre as nossas expectativas e a verdade de Jesus.
Ao iniciarmos a Semana Santa com esta celebração somos convidados a aprofundar o mistério central da nossa fé contemplando com serenidade e tempo cada momento, cada acontecimento da Paixão de Jesus.
Procuremos pois participar e viver cada celebração com este espirito, de modo ao terminarmos podermos fazer a mesma confissão de fé: “este é verdadeiramente o Filho de Deus”!

 
Ilustração:
“Ecce Homo”, de Luís de Morales, Museu do Prado.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Sendo homem te fazes Deus! (Jo 10,33)

Uma vez mais as pedras estão nas mãos, um ódio de morte trespassa os olhos daqueles homens que diante das palavras apenas encontram uma blasfémia:
“Tu sendo homem te fazes Deus”!
Que escândalo para os ouvidos e para os corações empedernidos, um homem que se quer fazer Deus, mas que alegria e que paz para aqueles que buscam a verdade, que de coração contrito procuram a fonte que pode saciar a sua sede e aliviar a sua dor.
Sagrada blasfémia que nos abre a porta e nos conduz de regresso à nossa verdadeira identidade, que nos abre os olhos para o Pai que nos espera de braços abertos desde toda a eternidade.
Desta forma não podemos deixar de assumir como nossa e de a procurar viver em toda a sua radicalidade esta blasfémia de Jesus. Também nós temos que assumir diante dos homens e face às pedras que matam que somos deuses, que também a nós o Pai se dirige nos dizendo, “sois meus filhos muito amados”.
Somos deuses porque fomos criados à sua imagem e semelhança, somos deuses porque o seu Espirito habita em nós, somos deuses porque no nosso coração e na nossa vida a força do amor nos conduz, somos deuses porque o Verbo habitou a nossa carne e restaurou em nós a face divina desfigurada pelo pecado, somos deuses porque Deus nos ama infinitamente.  
E na nossa carne limitada e finita, nos nossos corpos tantas vezes desfigurados e abandonados, ultrajados ou violentados, tal como no corpo de Jesus exposto na cruz aos olhares dos algozes, somos desafiados a encontrar-nos com a nossa divinidade, a nossa e a dos nossos irmãos.
O convite a contemplar a cruz na Semana Santa que se aproxima, o rosto desfigurado de Jesus e o seu corpo suspenso na cruz, é um convite a fazer a experiência do esplendor e da vida divina que se esconde sobre os andrajos da nossa humanidade, a vê-la presente quando aos nossos olhos parece ausente.

Ilustração:
“Jesus carregando a cruz”, de Niccolò Frangipane, Museu Carmen Thyssen, Málaga.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Faça-se em mim segundo a tua palavra! (Lc 1,38)

No silêncio da manhã o vento sopra entre as copas dos pinheiros, ondulantes à luz do sol que depois da chuva ilumina a serra.
No silêncio da manhã um roçar de asas enche o quarto, o sussurrar dos damascos luminosos enche o espaço.
No silêncio da manhã, com o coração entregue a Deus, uma saudação perturba os sentidos, Avé cheia de graça o Senhor está contigo.
Um mensageiro especialmente escolhido e destinado a esta missão, Gabriel, apresenta-se ao que vem, uma proposta, uma oferta, uma mudança de vida.
Um vendaval invade o espaço, até o recanto mais escondido, os planos caiem por terra, a incerteza nasce, e o porquê e o como afloram aos lábios.  
E sem se saber de onde, uma multidão invade o quarto, chegam do passado e do futuro, chegam do oriente e do ocidente, do norte e do sul.
No silêncio da manhã, uma multidão expectante no silêncio da esperança aguarda uma resposta.
Homens e mulheres, agrilhoados e amordaçados, presos num sim dado numa manhã de luz radiante à noite mais negra da mentira.
O silêncio pesa, esmaga, nesta expectativa de outra resposta, o silêncio parece nunca mais ter fim.
Sim, Maria, diz-nos que sim, o teu sim é a nossa liberdade, é a nossa glória, é a nossa vida.
No silêncio da manhã, numa outra primeira aurora, o sim nasce como um sol radioso, brota como a fonte mais viva, “eis a serva do Senhor faça-se em mim segundo a tua palavra!”
A Deus nada é impossível, mas foi o teu sim na liberdade, a tua entrega generosa, que nos abriu a porta da passagem da morte à vida, que fez possível o Deus Homem.
Nós te cantamos Maria, humilde serva do sim, mãe da nossa liberdade, rainha da nossa vitória!

 
Ilustração:
“Anunciação do anjo a Maria”, de Orazio Gentileschi, Galeria Sabauda, Turim.

terça-feira, 24 de março de 2015

Eu sou lá de cima! (Jo 8,23)

Haveis de procurar-me diz Jesus aos fariseus, haveis de procurar-me e não me encontrareis, morrereis nos vossos pecados.
Porque eu sou lá de cima, eu não sou deste mundo, vou partir.
Quando levantardes o Filho do homem sabereis verdadeiramente que Eu Sou, porque Aquele que me enviou está comigo.
Sabemos Senhor que és lá de cima, que não és deste nosso mundo.
Sabemos que és um Deus escondido, na nossa carne ocultaste a tua divindade, para vencer a morte e nos resgatar da sua mão.
Sabemos que te fizeste homem para que te encontrássemos, porque sem te encontrar morreremos nos nossos pecados.
E buscamos-te Senhor, buscamos encontrar-te, com os olhos postos no chão buscamos a tua presença, no pó da terra procuramos ver-te.
Mas tu vives lá em cima, no alto, para onde temos dificuldade em olhar.
O sol cega-nos, cansa-nos, faz-nos desviar o olhar, tal é o seu brilho, a sua luz.
E então não vemos, ou quando vislumbramos o que vemos não queremos ver.
O teu alto é a cruz, na qual o teu corpo ferido está exposto ao nosso olhar.
É na cruz que te elevas, que regressas ao Pai que te enviou, mas onde permaneces para o nosso olhar cansado.
A cruz é o sinal da tua presença oculta e visível entre nós, é o lugar da busca e do encontro.
Senhor, que os meus olhos se elevem, e na cegueira da luz divina e do corpo desfigurado te encontrem.
 
Ilustração:
“Jesus é elevado na cruz”, de Charles Le Brun, Museu de Belas Artes de Troyes.

segunda-feira, 23 de março de 2015

E tu que dizes? (Jo 8,5)

No Evangelho de São João apresentam a Jesus uma mulher apanhada em adultério. Os escribas e os fariseus, que trazem a mulher até Jesus, justificam-se com a Lei, a mulher foi apanhada em flagrante delito e a lei manda apedrejar tais mulheres até à morte.
Contudo, há algo mais que está em causa, um outro objectivo; mais que a mulher apanhada em flagrante eles querem apanhar Jesus, e por isso a questão inevitável: e tu que dizes?
Percebe-se imediatamente que os motivos dos fariseus não é a Lei, e o seu cumprimento, o adultério da mulher e a consequente falta à Lei, mas é o ódio a Jesus, o seu desejo de aniquilar aquele homem e mestre que colocava em questão os seus princípios e comportamentos.
Debaixo da aparência, da máscara da fidelidade e do cuidado e amor à Lei, esconde-se a violência do ódio e a mentira da preocupação e do cuidado pela Lei e pelo próximo. Apenas interessa a armadilha a Jesus.
E tu que dizes? E tu? É também e muitas vezes uma pergunta que aflora aos nossos lábios, colocando o outro ou as suas atitudes em questão. Num acesso de puritanismo, tantas vezes hipócrita, colocamos o outro em questão.
Ao compor a sua Regra para a vida comunitária, conhecedor desta problemática e referindo-se à correcção fraterna, Santo Agostinho diz que ela deve ser feita com amor pelo pecador e com ódio ao vício ou mal.
Encontramo-nos assim com um bom critério para os nossos juízos e condenações, para aferir das nossas tantas vezes virtuosas indignações face aos comportamentos dos nossos irmãos. O que me leva a questionar o outro é o amor pelo seu bem?

 
Ilustração:
“Jesus e a mulher adúltera”, de Antonio Molinari, Gemaldegalerie Alte Meister, Kassel.

domingo, 22 de março de 2015

Homilia do V Domingo da Quaresma

À medida que nos vamos aproximando da celebração da Páscoa, nesta caminhada quaresmal, as leituras da Palavra de Deus e nomeadamente o Evangelho vão-nos introduzindo na radicalidade do mistério que celebraremos.
Neste sentido a leitura do Evangelho de São João, confirmada pela leitura da Epístola aos Hebreus, apresenta-nos esse grande desafio que representou para Jesus, como representa para cada um de nós, o cumprimento da vontade do Pai, a obediência.
É inquestionável que o Filho enquanto Verbo estava em plena e total sintonia com o projecto salvífico do Pai, criador de toda a humanidade. O Filho fez-se homem por sua vontade e liberdade, pelo seu amor divino, para reconduzir os homens ao seio do Pai.
Contudo, ao fazer-se homem assumiu também a liberdade humana, essa liberdade que lhe permitia, como permite a cada um de nós, anuir ou rejeitar o projecto de Deus, e que em determinados momentos foi colocada à prova.
O episódio que o Evangelho de São João nos relata neste domingo foi para Jesus a confirmação que a sua obediência, a sua adesão ao projecto de Deus, ia ser consumada, realizada plenamente. A chegada dos gregos, e o seu desejo de verem Jesus, manifestava que a missão de Jesus estava a chegar ao fim, alcançava a sua hora como tão bem o Evangelho nos indica.
A bem da verdade, não podemos deixar de ter presente que este desafio e este combate entre a vontade divina e a vontade humana esteve sempre presente na vida de Jesus, e se para nós é mais fácil recordar o momento das tentações no deserto como confronto com a tentação de não ser fiel, não podemos deixar de ter presente também o momento do encontro de Jesus no templo quando tinha doze anos.
Já nessa altura se colocava a questão da fidelidade e da obediência, e por isso vemos Jesus responder a Maria que deveriam já saber que o seu lugar e a sua missão era estar na casa de seu Pai, cuidar da casa de seu Pai. O baptismo por João no rio Jordão é outro momento de submissão, de completo assumir da vontade do Pai, pois Jesus desce ao rio como a humanidade pecadora, sem que tivesse necessidade disso, para poder resgatar a humanidade com o seu baptismo de penitência.
E são estas submissões, esta consonância da vontade e liberdade humanas com a vontade e o plano divino que conduzem à confirmação divina expressa nessa voz que se faz ouvir do alto tanto no momento do baptismo, como na transfiguração e neste momento do encontro com os gregos.
Face ao compromisso da vontade humana com a vontade divina Deus Pai confirma o seu projecto, o seu amor e fortalece o Filho na sua vontade humana para levar a cabo a missão que tinha assumido desde o princípio.
Diante destes acontecimentos, percebemos que a obediência que Jesus vive e que Deus Pai pede não é uma obediência submissa, cega, passiva, mas uma obediência activa, iluminada, poderíamos dizer dialogante.
Diante deste acontecimento, e desta obediência, somos também nós desafiados a vivê-la, e de uma forma completamente nova, livre, não como uma lei que se nos impõe desde fora, mas como uma lei que está no nosso coração e procuramos fazer vida.
Tal como escutávamos na promessa feita a Jeremias, realizada em cada um de nós pelo baptismo, o Senhor imprimiu já no nosso coração essa lei que nos faz reconhecer que não só somos povo de Deus mas de modo mais significativo e pleno somos filhos de Deus.
Deste modo somos um povo e filhos que já não necessitam ser instruídos no que devem fazer, mas que vivem o que sabem, porque desde o coração têm conhecimento do que lhes foi oferecido com amor e confiança pelo Pai.
E na medida em que o vivermos, em que a nossa adesão for cada vez mais completa, na nossa liberdade, receberemos da parte de Deus Pai a confirmação do seu amor, que é a graça e a força do Espirito Santo para prosseguir com fidelidade e segurança.
Nesta caminhada de preparação para a celebração da Páscoa, o Senhor Deus vem assim ao nosso encontro neste quinto domingo da Quaresma, confirmando-nos nos passos que ainda certamente vacilantes demos, mas que partindo do coração estão em plena sintonia com a vontade de Deus.
Procuremos pois continuar a caminhar com confiança, confirmados pela Palavra do Senhor que não abandona nem desamara aqueles que o procuram e lhe são fiéis.

 
Ilustração:
“Mãe apresentando os filhos a Jesus”, de Mattia Preti, Pinacoteca de Brera, Milão.

domingo, 15 de março de 2015

Homilia do IV Domingo da Quaresma

Estamos a celebrar o quarto domingo da Quaresma e encontramo-nos a meio da nossa caminhada de preparação para a celebração da Páscoa da Ressurreição do Senhor.
Temos consciência que tem sido uma caminhada difícil, dura, muitas vezes aquém dos propósitos que estabelecemos na quarta-feira de Cinzas, no início desta Quaresma.
Pela rotina ou pelo cansaço sentimos as forças a fraquejarem, uma espécie de desânimo que se apoderou de nós e quase nos obriga a cruzar os braços, a atirar a toalha ao chão, e a dizer que não vale a pena mais qualquer esforço.
As leituras que escutámos na Liturgia da Palavra deste domingo atestam-nos no entanto que não podemos ficar nessa situação, que não podemos perder a esperança, mas bem pelo contrário, face à grande tentação do desânimo devemos aferrar-nos ainda mais à esperança que iluminou a nossa caminhada e que nos pôs em marcha.
Neste sentido, a leitura do Livro das Crónicas que escutámos mostra-nos como Deus nunca desistiu do povo hebreu apesar das suas infidelidades e dos desvios cometidos e como se serviu de uma realidade inusitada, neste caso o pagão rei da Pérsia, para reconduzir o povo eleito à terra prometida.
Igualmente Deus não desiste de nós, nem nos abandona, e se por vezes permite que façamos a experiência do exílio, do sentimento de perda e solidão, é para que nos encontremos com a realidade da sua presença amorosa de uma forma mais intensa, renovada e rejuvenescida.
E por estranho que nos possa parecer, Deus serve-se muitas vezes de pessoas ou realidades inusitadas, estranhas ao nosso ambiente e ao nosso quotidiano para nos despertar para a sua presença. Há como que uma necessidade de algo que contraste, uma espécie de reagente, para se perceber a sua presença.
Mas, se esta fidelidade experimentada pelo povo não fosse ainda suficiente para animar a esperança do nosso caminhar quaresmal, o diálogo de Jesus com Nicodemos que escutámos no Evangelho, revela-nos que a fidelidade de Deus deriva do seu amor infinito pela obra da criação e portanto não há qualquer razão para o desespero ou para a tristeza, para o medo de Deus não estar connosco.
Face aos medos e incertezas, e às questões que Nicodemos coloca, Jesus revela-lhe, como nos revela a cada um de nós, que Deus ama o mundo profundamente, de um tal modo exageradamente apaixonado que é capaz de entregar o seu próprio Filho para que esse mundo descubra a sua fidelidade e o seu amor.
Este dom de Deus é assim a nossa garantia, é a nossa segurança, é a fonte da nossa esperança e dos nossos esforços neste peregrinar tantas vezes inconstante e oscilante. Deus ama-nos e oferece-nos a salvação, tal como diz São Paulo aos Efésios, como uma graça que devemos acolher.
Este acolhimento é uma condição fundamental para que os resultados da acção da graça se façam sentir e se tornem presentes, e Jesus deixa-o bem claro no diálogo com Nicodemos, pois a luz veio ao mundo, e aqueles que acolhem a luz são capazes de obras da luz, de palavras e acções que iluminam o mundo.
A história de Nicodemos é neste sentido paradigmática, pois com os seus medos e fraquezas dirige-se ao encontro de Jesus apenas de noite para não ser identificado nem denunciado. Contudo, após o encontro, e a experiência radical do amor de Deus que Jesus lhe manifestou, Nicodemos é já capaz de ir de dia ajudar a sepultar o corpo de Jesus.
A experiência do amor total do Pai leva-nos assim a ultrapassar os nossos medos, as nossas preguiças e desânimos, e por isso é obrigatório que façamos essa experiência, que nos disponhamos sincera e objectivamente a acolher o dom que Deus nos oferece.
A salvação, a experiência do amor, não é obra das nossas mãos, uma conquista dos nossos esforços para que nos possamos gloriar, mas é um puro dom de Deus que nós acolhemos. A nós compete-nos acolher o dom que Deus nos faz.
Procuremos pois abrir o nosso coração ao dom de Deus, de modo a que os nossos desânimos e cansaços sejam convertidos e a nossa esperança permaneça firme e alentadora da caminhada para a glória da Páscoa.

 
Ilustração:
“Cristo e Nicodemos”, de Fritz von Uhde.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Onde te encontro

Meia-noite, em números vermelhos me diz o relógio.

O corpo, pesado do dia, quer deslizar para o descanso.

Contudo, o espirito reclama:

Ainda não! Ainda não!

Uma sede devora-o e busca a fonte.

Entrego-me sem resistir, já sem forças para lutar.

Pai, nas tuas mãos entrego o meu espirito

Pai, no teu regaço deixo o meu corpo exausto.

Neste silêncio da noite entrego-me

E encontro-te!

No silêncio, no sopro leve, de fugaz passagem

Onde não acredito que estás

Aí te encontro!


domingo, 8 de março de 2015

Homilia do III Domingo da Quaresma

O Evangelho de hoje apresenta-nos Jesus a expulsar os vendedores do templo, uma imagem de certa forma violenta e que se opõe à imagem habitual de Jesus, à imagem de Príncipe da Paz que nos é mais querida.
Se tivermos presente a leitura do Domingo passado e a transfiguração de Jesus diante dos discípulos no monte Tabor esta oposição de imagens torna-se ainda mais radical, mais abrupta, pois à serenidade da glória contrapõe-se a violência do zelo pelo espaço sagrado.
Contudo, é da serenidade e da glória vividas na transfiguração que deriva a violência que hoje podemos constatar no templo e nesse gesto inusitado e desmesurado de expulsar os vendedores e cambistas do templo.
O zelo que devora Jesus pela casa de Deus é consequência da experiência e da manifestação divina na transfiguração, pois ao saber-se confirmado no amor do Pai pode avançar com segurança e radicalidade para a missão que lhe está destinada.
A expulsão dos vendedores do templo é assim uma imagem, uma manifestação, do que verdadeiramente Jesus vai realizar com a sua vida, e que tal como São João no Evangelho nos diz só depois da ressurreição vai ser perceptível.
Desta forma, o que está em causa neste episódio violento é a nossa relação com Deus, o comércio com o divino que os homens são constantemente tentados a viver, e que contradiz e se opõe à manifestação de Deus ao longo da história da humanidade e ao seu amor por todas as criaturas. 
Aquela que poderíamos chamar como a tentativa de purificação do templo por parte de Jesus é assim a manifestação da purificação da nossa relação com Deus, da reorientação para a forma correcta e divina do nosso relacionamento com Deus.
Neste sentido, as palavras de Jesus face à contestação da sua autoridade para realizar o que realizou são muito claras, pois ele é verdadeiramente o novo e único templo, o verdadeiro caminho, verdade e vida para se aceder a Deus Pai. Jesus torna-se o único canal para aceder ao Pai, a pedra de toque que permite aferir da nossa sintonia com Deus e com a sua vontade.
E tal como diz São Paulo aos Coríntios, se aos olhos do mundo esta forma que Deus encontrou pode parecer uma loucura ou uma fraqueza, para aqueles que acreditam, para aqueles que acolhem a novidade da proposta, tal forma torna-se poder e sabedoria.
Poder e sabedoria a que corresponde uma grande responsabilidade, pois na liberdade da nossa relação com Deus, na gratuidade dos dons que nos são confiados, sabemos que o nosso corpo é o novo espaço da habitação e da relação com Deus. Também cada um de nós é templo vivo de Deus.
Esta realidade e consciência conduzem-nos a ter presente os preceitos e mandamentos que o Livro do Êxodo nos apresentava na primeira leitura que escutámos neste domingo. Ser habitação de Deus, ser templos de Deus, obriga-nos a um cuidado atento face aos outros, face a nós próprios e face aos ídolos que nos podem desviar do sentido da presença de Deus.
A caridade para com aqueles que necessitam ou são frágeis, a justiça para com aqueles que trabalham ou são difamados no seu nome, o descanso ao domingo são algumas das múltiplas realidades que nos ajudam a manifestar essa presença viva de Deus no corpo de cada um de nós.
Nesta nossa caminhada quaresmal, a Liturgia da Palavra deste terceiro domingo convida-nos assim a fazer um exame da nossa relação com Deus, da nossa oração tantas vezes fundada em mecanismos e esquemas de troca comercial, como se Deus não nos tivesse já dado tudo no seu amor, paralelamente a um exame da nossa relação com os outros enquanto manifestação e presença incontestáveis de Deus, pois fomos feitos à sua imagem e semelhança e o modelo foi o Filho Amado.
São João Crisóstomo perante o desejo dos fiéis de construírem e adornarem a igreja enquanto edifício urbano de ricas decorações e adornos preciosos, convidava os mesmos fiéis e seus ouvintes a adornarem a igreja do coração com a beleza das obras de caridade e da justiça, pois é nele que verdadeiramente Deus habita.
Procuremos pois, também nós, preparar nesta Quaresma uma condigna morada para o nosso Deus no coração de cada um de nós.

 
Ilustração:
“Jesus expulsando os vendedores do templo”, de El Greco, National Gallery, Londres

sexta-feira, 6 de março de 2015

Lançaram-no fora da vinha! (Mt 21,39)

A lua com a sua luz brilhante convida a sair, a temperatura está suficientemente agradável para um passeio pela marginal junto ao mar ou pelo parque onde brotam já as flores que anunciam a primavera.
Saímos, não para um passeio, mas para um encontro, para uma pequena oração. As mensagens partilhadas durante a tarde via telemóvel convidavam-nos para este momento, desafiavam-nos a sair, a ir ao encontro dos irmãos para um encontro com Deus.
Na luz ténue da capela descobrimos que eramos muitos, cinco, esgotados da semana e de um dia difícil de trabalho. Como saberia bem tirar os sapatos, esticar as pernas, descontrair e já não pensar em nada.
Contudo, se o corpo nos pedia repouso, o espirito queria-nos atentos, alerta, numa retrospectiva do que foi a semana, na qual depois de um minuto de silêncio percebemos todos, sem excepção, que tínhamos lançado o Senhor para fora da nossa vinha.
A parábola dos vinhateiros homicidas é lida quase sempre numa perspectiva da história do Povo de Israel, o próprio texto nos deixa essa ideia; mas esta parábola é também a história da nossa vida, a história das vezes que não acolhemos aqueles que o Senhor nos enviou, do não acolhimento do próprio Filho que o Pai nos envia com carinho e devoção.
Esta noite, nesta oração, simples, pobre, cheia do nosso cansaço, descobrimos o corpo fora da vinha e fomos resgatá-lo, o nosso corpo e o do Filho que o Pai nos enviou.
Depois das distracções da semana, das milhentas tarefas cumpridas e por cumprir, da velocidade de tudo o que fizemos, encontrámo-nos com a paz que o Senhor nos traz, com a alegria do silêncio e de estar juntos, com o prazer de estar parados, entregues ao amor do Pai.
Louvado sejas meu bom Jesus por este final de dia e de semana, por encontrar o teu corpo lançado fora da vinha no meu corpo cansado de tantas solicitações e trabalhos. Que o teu corpo ferido cure o meu corpo cansado.

 
Ilustração:
“Cristo Jacente”, de Juan António de Frias y Escalante, Museu do Prado, Madrid.

domingo, 1 de março de 2015

Homilia do II Domingo da Quaresma

A Liturgia da Palavra apresenta-nos hoje, neste segundo domingo da Quaresma, na leitura do Livro do Génesis e no Evangelho de São Marcos, dois acontecimentos marcantes, duas histórias que estão profundamente marcadas e construídas sobre o alicerce da fé. São histórias de fé, tanto o eminente sacrifício de Isaac como a transfiguração de Jesus no monte Tabor.
É incontestável que a história do sacrifício do filho amado de Abraão, que não chega a acontecer, está marcada por uma forte crítica aos cultos que exigiam sacríficos humanos, e neste sentido é um texto profundamente humanista, poderíamos dizer moderno.
Contudo, a história vai para além da crítica religiosa, ela é preponderantemente uma história de fé, da fé de um homem que não recusa sacrificar a Deus o que mais ama, a sua garantia de futuro e de continuidade geracional, e que é o seu filho.
Neste sentido, e face ao pedido feito por Deus, podemos interrogar-nos sobre a validade do pedido de Deus, da sua razoabilidade. Questão esta que nos atormenta ainda hoje quando somos confrontados com o incompreensível de determinadas situações de perda e sofrimento.
E é esta incompreensão e desumanidade que nos coloca diante do que verdadeiramente está em causa na história do sacrifício do filho de Abraão, ou seja, o futuro não nos é garantido por aquilo que temos ou somos, mas pelo que Deus nos oferece, de certa maneira retribui quando temos a liberdade de lhe entregar e confiar o que mais amamos, o que pensamos que é o nosso futuro e a nossa segurança.
Face à fé, e consequente liberalidade e disponibilidade de Abraão para entregar o seu filho amado, Deus não só não aceita esse sacrifício como confia a Abraão a missão de ser pai de uma geração incontável, de todos os homens que não temem entregar a Deus o que mais amam, multiplicando assim a sua paternidade confinada naquele momento a um filho único.
A história do sacrifício do filho de Abraão abre-nos assim para a verdadeira relação de Deus com a humanidade, com cada um dos homens e mulheres que povoam a história e a criação. Deus não está contra o homem, não quer a sua morte ou destruição, e ainda que peça ao homem o que de mais precioso tem, o máximo possível, nada do que pede é contra o homem ou para a aniquilação do homem, uma vez que Deus não pode estar contra a sua mais perfeita e amada obra.
Como afirma Santo Ireneu de Lyon, “a maior glória de Deus é o homem vivo”, o homem com todas as suas condições e faculdades, com a sua liberdade de opção, e portanto Deus não pode estar contra, nem coarctar, a liberdade e identidade do homem na sua singularidade.
A manifestação gloriosa de Jesus diante dos discípulos no alto do monte Tabor, a sua transfiguração, vem confirmar esta prisão em que o Pai do Céu se encontra devido ao seu amor, à sua paixão pela humanidade.
Quando no momento da transfiguração da nuvem se ouve que aquele “é o filho muito amado”, ecoa por toda a humanidade e toda a história da humanidade o amor e a paixão de Deus pelos homens e o seu gozo e alegria em habitar no meio deles, como podemos ler no Livro da Sabedoria.
É evidente que após o escândalo e desânimo provocados pelo anúncio da paixão, momento prévio ao acontecimento da transfiguração, era necessário algo que motivasse a permanência dos discípulos, a continuidade do seguimento nos passos de Jesus e por isso a transfiguração.
Contudo, esta experiência da transfiguração é fundamentalmente uma experiência de fé, pois o texto na sua simplicidade e verdade não deixa de nos transmitir a dificuldade de compreensão e perplexidade dos discípulos face ao experimentado.
O que se seguiu, até à experiência da presença do ressuscitado entre eles, foi um equilibro certamente difícil entre o que que era possível ver, o medo face à tragédia, e a esperança de algo que apenas tinham vislumbrado mas que não deixava de ser uma garantia, uma experiência que cunhava tudo o resto com outro timbre.   
Na declaração do Pai sobre o Filho amado, que devia ser escutado, assentava toda a esperança e toda a fé, pois de certo modo aquelas palavras também se dirigiam a cada um deles que testemunhava o amor do Pai pelo Filho. É esse saber que o Filho é amado que leva a permanecer e tentar perceber como viver também nesse amor.
A ordem de Jesus a descer do monte, face à satisfação dos discípulos em permanecer ali, naquele gozo tranquilo, mostra-nos uma vez mais que não é na nossa satisfação, nos nossos projectos e poder que se realiza a missão a que estamos destinados, o projecto de Deus para todos e cada um de nós. O amor do Pai pelo Filho amado e pelos filhos adoptados em Jesus projecta-nos para fora de nós, para além do nosso sossego e satisfação.
Deus desafia-nos a ir sempre mais além, a deixar de fixar-nos nos nossos projectos e forças, para nos abrirmos ao horizonte de futuro que nos reserva o seu amor. Lançar-nos com fé e esperança nesse amor é garantia de fecundidade e vida.

 
Ilustração:
1 – “O Sacrifício de Isaac”, de Jan Lievens, Herzog Anton Ulrich Museum.
2 – “Transfiguração”, de Meister des Universitats-Altars, Gemaldegalerie Alte Meister, Kassel.