domingo, 21 de junho de 2009

Homilia Domingo XII do Tempo Comum

O Evangelho deste domingo coloca-nos diante dos olhos um episódio da vida de Jesus que se prende e relaciona mais com os discípulos que propriamente com Jesus, ainda que Jesus seja o protagonista da acção e os discípulos apenas espectadores dessa mesma acção poderosa.
Depois de um dia de pregação e caminhada, de encontro com pessoas, doentes e pecadores, depois de um dia de cansaço Jesus repousa na barca de Pedro. Sabemos pelo testemunho da paixão, pelos quarenta dias passados no deserto, que Jesus era um homem forte, com uma boa constituição física. A profissão de carpinteiro exige alguma força e constituição física para o exercício das tarefas. Contudo, depois de um dia de trabalho, de um dia de andanças, quem não se sente cansado, quem não inclina a cabeça sobre uma almofada, ainda que dura, para repousar e retemperar as forças? Jesus está nesta situação, cansado e necessitado de retemperar as forças. Ele é Deus todo-poderoso mas é também homem e sofre as nossas limitações.
E é nesta situação que se levanta uma forte tempestade que abala a barca onde segue com o grupo dos discípulos, homens que estavam habituados ao mar e portanto às tempestades e às situações em que a vida se coloca em perigo. Não era certamente uma novidade para eles e saberiam como agir perante tais desafios. Contudo, desta vez a tempestade é mais forte e por isso são obrigados a recorrer a Jesus, que de tão cansado ainda não se dera conta do perigo.
Este recurso a Jesus não deixa de ser estranho, ou pelo menos a reacção posterior à acção de Jesus de acalmar a tempestade. Tendo recorrido a Jesus, mostravam alguma fé, alguma confiança numa resposta, de certa forma acreditavam no seu poder para colocar fim àquele perigo. Mas não era uma fé suficiente, ou total, e por isso foram repreendidos por Jesus, questionados da forma como os questionou. “Ainda não tendes fé?” Porque de facto, se tivessem fé não haveria razão para estarem assustados, ou pelo menos para terem ficado perplexos perante a ordem de Jesus para que o mar se acalmasse. Havia neles uma ambivalência entre a fé e a dúvida que era necessária clarificar e resolver. E por esta razão são eles o centro deste episódio do Evangelho de São Marcos.
Neste sentido nós estamos também com eles, partilhamos da mesma situação, da mesma ambivalência, porque Jesus vai a dormir na nossa barca, mesmo nos momentos de maior dificuldade e perigo, mas muitas vezes, e mais frequentemente do que devia ser, duvidamos dessa presença e da possibilidade de Ele acalmar as tempestades que nos patenteiam a nossa fragilidade e incapacidade de dominar tudo e todos.
Acreditamos em Deus e em Jesus como essa força que nos eleva e salva, como a resposta para as nossas dificuldades e questões. Acreditamos que Ele está connosco e nos acompanha e protege. Contudo, quando na vida se levanta algum problema, quando somos colocados em causa pela nossa própria condição de finitude, essa fé da presença de Jesus entra muitas vezes em colapso, em derrocada.
Quantas vezes já perante a morte, a dor e o sofrimento, perguntámos a Jesus, não te importas? Não te preocupas connosco? Onde estás quando mais preciso de ajuda, da tua ajuda e presença? Estamos perante a ambivalência dos discípulos na barca e face à tempestade. Sabemos que Jesus vai connosco, que tem poder para agir, mas nós não temos total confiança e fé para nos deixarmos levar até ao fim.
Santa Teresa de Ávila dizia que é no coração das tempestades que Jesus mais nos procura. Embora, verdade seja dita, que é no coração das tempestades quando menos procuramos Jesus, ou pelo menos como o devíamos procurar. Porque no meio das tempestades devemos procurar Jesus como São Paulo nos indica na Segunda Carta aos Coríntios, como Aquele que morreu por todos e portanto todos morremos com Ele.
Em Jesus fizemos já a experiência da morte, da finitude e da incapacidade, das limitações e do sofrimento, e fizemo-lo de uma forma total e redentora. Não podemos perguntar a Jesus como perguntaram os discípulos na barca “ não te importas connosco?”, porque a verdade é que Jesus se importa connosco, se importou imenso e por isso mesmo se fez um de nós e fez a experiência das nossas limitações. E fê-lo quando não merecíamos, sem o merecermos, e antecipando-se a qualquer possibilidade da nossa parte de o merecermos.
Este episódio da barca na qual Jesus vai a dormir convida-nos assim à fé, mas a uma fé fortalecida com essa convicção de São Paulo de que “se alguém está em Cristo é uma nova criatura” e portanto todas as suas experiências possíveis foram já vividas em Cristo e estão resgatadas do mal e da morte. Vivamos confiantes de que Jesus está connosco e no seu silêncio nos convida a acalmarmos para o sentirmos presente e vivo em nós.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Sonetos de Diogo Bernardes a São Jacinto da Polónia

SONETOS E EPIGRAMAS EM LOUVOR DE SÃO JACINTO DA POLÓNIA[1]
Em louvor do glorioso São Jacinto da Ordem dos Pregadores agora novamente canonizado
SONETO
Polónia deu ao mundo, e deu ao céu
Domingos, Patriarca glorioso,
Este Jacinto belo, e precioso
Que entre seus novos filhos floresceu.
Foi milagroso enquanto cá viveu,
Desde que vive no céu mais milagroso;
Vida, por ele, o Senhor piedoso
A trinta e nove mortos concedeu.
A mancos pés, vista a quem não via,
Ouvir a surdos, fala a mudos deu,
A capa ponte fez de um bravo rio.
Fez passar, e passou, como Eliseu,
Por ir pegar as chamas em que ardia
Na fera gente daquele orbe frio.

EPIGRAMA
Jacinto, digo o que sinto:
O mais diga quem mais sente:
Digo que nunca Oriente
Criou mais rico Jacinto.

Ao mesmo Santo
SONETO
O Jacinto entre pedras preciosas
Sempre por seu valor foi estimado:
Outro Jacinto em flor foi transformado
Entre as flores do campo mais formosas.
Mas este nosso de celestes rosas,
De rubis, e de pérolas coroado
Só deve ser no mundo celebrado;
Dos mais os versos calem, calem prosas.
E de ambos o louvor a gente mude
Neste mais rico, e belo, e peregrino
Nele por quem tal foi mais acrescente.
Foi flor que deu a Deus fruto divino;
E foi pedra a que Deus deu tal virtude,
Que curou almas, corpos não somente.

EPIGRAMA
Jacinto, o que já sinto
É razão que o não cale,
Sinto já que nunca o vale
Criou mais lindo Jacinto

[1] BERNARDES, Diogo – Várias Rimas ao Bom Jesus, e à Virgem Gloriosa sua Mãi, e a santos particulares…, Por Diogo Bernardes, natural de Ponte de Lima. Lisboa, Officina de Miguel Rodrigues, 1770, 92-93.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Meditação do Evangelho do dia - Mt 5,38

O discurso de Jesus na montanha é um discurso arrasante, deita por terra todas as nossas concepções mais egoístas e egocêntricas. Oferece a outra face, dá-lhe também o manto e acompanha-o uma milha mais.
Era tão fácil, é tão fácil, recusar e fugir com a face, ficarmos com o manto e a capa, andar uma milha apenas e se possível ainda menos. É tão mais fácil responder com o punho cerrado à mão aberta, querer o que é do outro e que nem é melhor que o nosso, obrigar o outro a fazer por nós o que devia ser nossa obrigação fazer. É o olho por olho e dente por dente, ou melhor o teu olho e o teu dente por apenas nada.
Jesus propõe algo diferente, o que viveu e nos deixou como exemplo, a humildade da livre entrega. Só desta forma poderemos pôr um ponto final no círculo vicioso da violência, da destruição, do mal que se apodera de nós e nos faz querer ter tudo e ser tudo. Como Jesus, não sendo nada, não tendo nada, entregando tudo e entregando-nos totalmente, somos livres para ter tudo e ser tudo, em Deus, verdadeiro e único bem que nos pode saciar e satisfazer.

domingo, 14 de junho de 2009

Homilia Domingo XI do Tempo Comum

O Evangelho de São Marcos que escutámos neste domingo é bastante sugestivo nas parábolas e comparações que Jesus utiliza, ainda que hoje em dia, e face à cultura urbana em que a maior parte de nós vive, e sobretudo os mais novos, se tornem parábolas estranhas e por vezes até incompreensíveis. Contudo, e por causa dessa mesma possibilidade de abrirem os nossos olhos e horizontes para outras realidades, não podemos passar ao seu lado nem deixar de correr esse risco de falarmos de algo que pode não ser compreendido.
A ideia do crescimento de uma planta, de uma árvore, seja ela a mostardeira ou o cedro de que ouvíamos falar na leitura da Profecia de Ezequiel, é bastante sedutora e acertada para falar do Reino de Deus, para falar de cada um de nós enquanto membros desse Reino. É uma ideia grandiosa, porque as árvores são grandiosas, mas simultaneamente terrível porque nos coloca perante essa inevitabilidade de que como todas as sementes e plantas estamos destinados a crescer, a desenvolver e a dar frutos. Até os bonsais precisam crescer para poderem ser talhados artisticamente.
Seguindo a parábola de Jesus podemos dizer que cada um de nós é uma árvore, mais ou menos desenvolvida, mais ou menos selvagem, mas todas e cada uma consequência dessa semente de graça que nos foi colocada no dia do nosso baptismo. Foi no nosso baptismo que, podemos assim dizer, foi plantada a semente que nos transforma em árvores de fruto.
Com o passar dos anos essa pequena semente germinou, deitou raízes, os primeiros ramos e cresceu. Por vezes, ou até muitas vezes, sem darmos por isso, em silêncio como o fazem também as árvores que povoam as nossas florestas e jardins. Por esta razão, por não nos darmos conta do seu crescimento, ou enfezamento, porque também acontece, muito frequentemente não nos apercebemos do cuidado que lhe é devido. E assim encontramos árvores minúsculas, cristãos tão envergonhados da sua fé que não são capazes de se apresentarem, outras vezes árvores tão frágeis que não sabemos se resistirão aos ventos fortes do inverno, cristãos que se esqueceram de crescer para os lados, de esticar os ramos da solidariedade e da fraternidade, braços esses que fortalecem o tronco e encorpam a árvore e fazem com que resista aos embates da vida.
Nesta vasta floresta do Reino de Deus encontramos ainda aquelas árvores que de tão magníficas e fortes que são já não olham as outras que estão à sua volta e necessitam que lhes deixem um espaço para crescer; são os cristãos orgulhosos e senhores da verdade que apenas crescem a pensar em si próprios e sem olharem para a beleza da diversidade do conjunto.
Como baptizados e discípulos de Cristo temos que nos consciencializar desta nossa condição de árvores, de estarmos destinados a crescer, para o alto, buscando o sol que nos dá a vida, que nos eleva da nossa condição de finitude; mas, ao mesmo tempo que crescemos para o alto, temos que estender os ramos para os lados abraçando as árvores nossas companheiras, permitindo que à sombra dos nossos ramos se abriguem aqueles que andam cansados e buscam uma sombra refrescante.
É este crescer horizontal que nos fortalece e nos permite elevar-nos com maior capacidade de resistência aos embates do vento forte das provações e aos momentos de sequia e escuridão das noites sem sentido. Um crescimento consubstanciado exige esse elevar-se e alargar-se, assim como o aprofundar das raízes na terra, sem a qual não sobreviveremos.
E aprofundamos as raízes do nosso crescimento na medida em que vamos dando conta da nossa condição humana, das suas riquezas e fragilidades, e de como a partir delas e só a partir delas é que podemos alimentar o que somos e o que Deus quer que sejamos. Para dar-mos frutos para o Reino de Deus temos assim que aprofundar as raízes da nossa humanidade, alargar os ramos da nossa fraternidade e solidariedade e nunca deixar de ter os olhos postos no sol que nos eleva e faz crescer sem que demos conta disso. Há um crescimento triplo que faz com que a árvore, com que cada um de nós progrida e chegue a dar bons frutos.
Peçamos ao Senhor, neste domingo em que São Paulo também nos diz que cada um de nós será julgado pelo bem ou pelo mal que tiver feito nesta vida, que nesta nossa condição de árvores nos alimente da seiva da sua graça para chegarmos ao juízo da nova vida carregados de frutos de bem, de verdade, de justiça e de amor.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Homilia da Solenidade do Corpo de Deus

Celebramos hoje a Solenidade do Corpo de Deus, do Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue de Jesus.
Para muitos de nós e à semelhança do teólogo medieval Berengário de Tours, que viveu no século XI, a Eucaristia pode ser apenas um símbolo, uma realidade espiritual com a qual nos relacionamos ou na qual participamos. Pode ser também uma realidade incompreensível, incomportável pelos nossos esquemas mentais empíricos e por isso uma realidade distante e cada vez mais ausente das nossas vidas e da nossa fé.
Se por um lado é assustadora a diferença que há entre o número dos fiéis que comungam e dos fiéis que se reconciliam pelo sacramento da penitência, por outro lado é assustador o número de fiéis que não se aproximam do sacramento da Eucaristia. Há aqueles que abandonaram a celebração eucarística, aqueles que podemos dizer que abdicaram do seu direito de ser, e há depois aqueles que, mesmo vindo à celebração, abdicam do ser direito de ser mais alguma coisa.
Há muitas e diversas razões para que isto tenha acontecido e continue a acontecer. Uma delas creio que se prende com a compreensão teológica do próprio sacramento, com essa errada ideia que construímos que a Eucaristia é algo simbólico, apenas uma realidade espiritual. A verdade é que a Eucaristia é uma realidade muito concreta, muito visível, e que não pode deixar de ser tida em conta, na sua tridimensionalidade de passado, presente e futuro, na nossa vida espiritual.
Não podemos esquecer ao celebrar a Eucaristia que ela é memória, e não apenas memória de uma ceia de Jesus com os seus amigos e discípulos. A Eucaristia tem uma dimensão histórica, uma dimensão de passado que em cada dia actualizamos e fazemos presente, essa dimensão é a da vida de Jesus, da sua paixão e morte, da sua ressurreição e ascensão aos céus. A Eucaristia, o Corpo e o Sangue de Cristo, são o corpo e o sangue de Jesus, do Filho de Deus, o resultado do seu amor e da sua obediência.
Neste sentido a Eucaristia é celebração da Encarnação, do mistério do Deus que não quis ficar distante nem invisível, mas que se fez um de nós e próximo para que não tivéssemos que buscar longe o que estava e está ao nosso alcance. Ao celebrarmos a Eucaristia, ao alimentarmo-nos do Corpo e Sangue de Cristo, estamos a celebrar a nossa humanidade naquilo que ela tem de mais sublime, a sua origem divina e a sua possibilidade de divinidade.
E é aqui que se joga a dimensão presente, actual, da Eucaristia, do Corpo e Sangue de Cristo, porque de cada vez que comungamos, que respondemos ámen sempre que o sacerdote nos distribui a comunhão, estamos a afirmar a nossa vontade e convicção de sermos membros vivos daquele Corpo de Cristo, outros Cristos na terra, e portanto de continuarmos a realizar a sua missão entre os homens. Comungar o Corpo de Cristo é comungar o seu projecto de comunhão com todos os homens e mulheres.
Neste sentido a comunhão do Corpo de Cristo significa transformar-se em pão para alimentar os outros, é aceitar que a nossa vida só pode ser uma vida de entrega gratuita e amorosa, uma doação muito concreta porque sem obras não há entrega, não há amor, e o Pão e o Corpo são amor concretizado.
E porque não é fácil esta entrega, bem pelo contrário é difícil e é penosa, foi-nos deixado o remédio, o viático para que nos fortaleçamos no caminho e na conversão. É o pão e o vinho, matérias do sacramento, mas que pela acção do Espírito Santo se transformam para aqueles que o recebem com fé em Corpo e Sangue de Cristo. A caminho da casa do Pai, no processo de divinização é necessário alimentar-se frequentemente deste Pão e deste Vinho, de contrário a caridade esfriará, o desejo também e a caminhada tornar-se-á lenta e penosa.
A Eucaristia é portanto e também um motor de futuro, tem uma dimensão projectiva de uma realidade que nos espera, é desde já a fruição possível à nossa condição de seres finitos dessa beleza e grandeza que é o próprio Deus. Por debaixo das aparências de pão e vinho esconde-se a realidade do próprio Deus, esse Deus que ninguém pode ver e ficar vivo, mas que um dia veremos na sua glória e eternidade. Agora e aqui vemo-lo como Elias viu na brisa suave que passava ao final do dia, submergido no que há de mais simples e acessível a todos.
Perante este facto, este mistério, só podemos dizer como é grande o amor de Deus pelos homens, que não só quis ser um como eles, como quis depois permanecer com eles através de uma realidade tão frágil e tão comum, para que ninguém se possa desculpar de O não encontrar.
Para que tal não aconteça, para que tal não nos aconteça, é necessário recuperar o gosto pela Eucaristia, pela celebração e pela adoração, pela comunhão espiritual e material, mas tal só se pode fazer com o hábito, com a prática regular e continuada. Plotino, filósofo pagão, diz que “cada alma é e transforma-se naquilo que vê, que contempla”, que saibamos com a graça divina transformarmo-nos neste pão que recebemos para sermos verdadeiramente Corpo de Cristo.

domingo, 7 de junho de 2009

Homilia Solenidade da Santíssima Trindade

Celebramos neste domingo a Santíssima Trindade, mistério central da nossa fé, mas simultaneamente mistério desconcertante para a nossa racionalidade. Como é possível que Deus, que o nosso Deus, seja um e ao mesmo tempo três, seja um único Deus em três pessoas distintas?
Na análise mais básica, de índole psicológica ou psiquiátrica, parece que estamos diante de um processo complexo de esquizofrenia, alguém que se desdobra em personalidades para realizar a sua existência. Contudo, e não sendo um processo de esquizofrenia, é de facto um processo de revelação pessoal, da revelação do ser de Deus.
Deus que se revela a Moisés como aquele que é, o Deus dos pais, o Deus Pai que se compadece dos seus filhos, dos seus eleitos e os socorre no momento de aflição e angústia. Deus que se revela novamente e novamente resgatando da aflição e da morte quando encarna em Jesus Cristo, aquele que é Filho e um com o Pai. Deus que se revela em línguas de fogo no dia de Pentecostes e é a memória projectora do amor do Pai e do Filho.
Este é o mistério, ou melhor, a imagem do mistério que nos é possível e dado contemplar e compreender, porque como diz Santo Agostinho nas suas “Confissões”, “rara é a alma que falando da Trindade sabe o que diz, pois ninguém é capaz de compreender mistério tão profundo”. Contudo, e ainda assim, apesar da inacessibilidade e incompreensibilidade, é possível falar das imagens que a revelação nos transmitiu e nos permitem uma aproximação ao mistério.
A primeira dessas imagens é a da paternidade. Deus revela-se como Pai, não só porque tem um Filho, mas porque é fonte e origem de tudo o criado, é Pai de toda a obra da criação. E no coração de qualquer homem, mais sublinhada ou mais difusa, a paternidade está presente, habita esse desejo de gerar uma vida, de criar uma obra para a eternidade. No coração de todo o homem habita essa faísca geradora e criadora da paternidade divina e por isso é possível compreender Deus como Pai. Todos herdamos da sua paternidade.
A outra imagem é a da verdade, a da revelação da verdade. Há algo inato no homem que propicia a verdade e por isso se começa bem cedo a dizer às crianças que devem dizer sempre a verdade. Ainda que depois os adultos sejam suficientemente infiéis a este conselho. Mas há uma verdade que buscamos, que esperamos, uma verdade às vezes indefinida, mas que nos foi revelada em Jesus Cristo de uma forma muito concreta e por isso até inaceitável. A verdade de Jesus Cristo é a verdade da humanidade, da sua potencialidade divina e por essa razão é tão frequentemente rejeitada. De cada vez que negamos verdade da humanidade negamos a verdade da divindade.
A terceira imagem da Trindade é a do dom do amor, a da paixão que como a pomba tem asas para elevar o homem sobre as suas próprias limitações e mesquinhezes. O amor eleva-nos, aquece-nos como um fogo, faz-nos brilhar como as estrelas mais luzentes da noite escura, faz com que Deus aconteça e se realize em nós.
Apesar de tudo isto o mistério continua inacessível, desconhecido, e cada vez mais indizível, pois na medida em que nos afastamos da nossa condição humana fazemos com que seja cada vez menos possível dizer o mistério de Deus uno em três pessoas distintas.
Hoje muitas crianças e jovens não sabem o que é um pai, o que significa a paternidade. E não é porque sejam órfãos, bem pelo contrário, frequentemente têm até mais que um pai. Muitas destas mesmas crianças e jovens não sabem onde está a verdade, o que ela significa, pois a mensagem que lhes entra pelos olhos e pelos ouvidos é que vale tudo para se atingir os fins, mesmo a negação da sua consciência. E quando o amor é apenas uma satisfação dos seus desejos físicos, uma compensação do vazio relacional, como poderão experimentar o dom do amor, a elevação jubilosa provocada pela entrega e pela dádiva de si próprio?
Somos seres criados à imagem de Deus, ou seja à imagem da Trindade; de cada vez que atentamos contra a nossa humanidade, contra esta imagem de Deus, atentamos conta a Trindade e a sua possibilidade de revelação e compreensão. É necessário refazer o homem, a verdade da humanidade, para se poder traçar de novo o caminho para a Trindade e para o seu conhecimento e compreensão.
Tal graça só nos pode ser dada pela própria Trindade, pelo próprio Deus. Peçamos-lhe assim como pedia Santa Teresa do Menino Jesus: “Ó Face adorável de Jesus, única Beleza que arrebata o meu coração, digna-te imprimir em mim a tua divina semelhança, para que não possas olhar a alma da tua pequena esposa sem Te contemplares a Ti mesmo[1].
[1] SANTA TERESA DO MENINO JESUS – Oração 16, in Obras Completas. Paço de Arcos, Edições Carmelo, 1996, 1091.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Meditação da Parábola dos Vinhateiros Assassínos

Cada vez que leio a parábola dos vinhateiros homicidas do Evangelho de São Mateus (Mt 21,33) fico surpreendido com a ingenuidade do senhor e dono da vinha. É a primeira ideia que me vem à cabeça; como é possível que depois de ter perdido tantos servos enviados até junto dos vinhateiros o dono da vinha se decida a enviar o seu filho? Não era mais que previsível o resultado de tal envio? Como podia ele acreditar que não tendo respeitado os servos enviados, iriam respeitar o seu filho amado e único?
À luz da lógica humana o filho nunca teria sido enviado, ou se enviado iria acompanhado com um exército para destruir aqueles vinhateiros homicidas e recuperar a vinha para o seu verdadeiro dono.
Mas a lógica de Deus é diferente, a lógica de Deus é a lógica da misericórdia e o envio do filho é o sinal mais evidente e revelador dessa misericórdia. O senhor da vinha, Deus, dispõe-se a perder tudo, até o próprio Filho, para que os vinhateiros reentrem na sua amizade e na sua paz, para que seja possível uma relação entre uns e outros.
Esta lógica supera-nos, mostra-nos as nossas limitações e mesquinhez, e por isso só podemos pedir a Deus que tendo enviado o seu Filho nos disponhamos a acolhê-lo e com Ele a misericórdia do Pai e Senhor da vinha.

Os Dominicanos para Thomas Merton

Dizem que não é bonito falar de nós, que pode até ser pecado porque nos atrai ao orgulho. Não sei se é por essa razão, mas nós, os Dominicanos, não temos por hábito falar de nós, é como se tivéssemos um certo pudor em apresentar-nos, em dizer quem somos e o que fazemos. Podíamos quase afirmar que somos pouco sociáveis, que estamos distantes ou ausentes da galáxia de comunicação em que hoje todos nós vivemos e onde é comum e natural falar de si.
E depois, verdade seja dita, quando falamos de nós não sabemos muito bem o que dizer, raramente o fazemos bem, e algumas vezes não nos assenta nada bem o que dizemos. Há como que qualquer coisa em nós de indizível, de inclassificável e certamente por isso se torna tão difícil falar sobre nós.
Assim, quando encontramos algumas palavras que nos expressam ou apresentam não devemos desperdiçá-las, não as devemos deixar esquecidas na nossa memória pessoal ou nas notas das nossas leituras. As palavras que se seguem são de Thomas Merton, monge Trapista, e encontrei-as no seu livro “O Sinal de Jonas”, e transmitem alguma coisa do que somos.
Penso no espírito de São Domingos. É um espírito que tem pouco ou nada a ver com o nosso, mas é importante e hoje significa muito mais para mim do que significava há quatro anos atrás. Queria ter iniciado os meus estudos de teologia mais imbuído do espírito de São Domingos. Precisamente o que mais me falta são as características dominicanas da concisão, definição e precisão em teologia.
Admito que a sua precisão é às vezes o fruto de uma simplificação extremada, mas em qualquer caso resulta bem. O forte contraste das cores do hábito dominicano – o branco e o negro – constitui um bom símbolo da mentalidade dos dominicanos, aos quais agradam as divisões e distinções taxativas.
Admiro São Domingos, sobretudo pelo seu amor à Escritura e pelo seu respeito pelo estudo da Escritura, de que fez o núcleo da sua contemplação e pregação. Eu meditei frequentemente com a Escritura, mas nunca a estudei a sério na minha vida, e esta é uma falta que lamento. Agora que terminei as aulas de teologia e tenho quatro meses para me dedicar à Escritura, para completar o tempo requerido pelo Direito Canónico, pedirei a São Domingos que me guie no estudo da Escritura durante estes meses e em toda a minha vida.
As primeiras comunidades de dominicanos procediam com brevidade e prontidão à recitação do Oficio, tudo o contrário dos cistercienses do século XIII, para entregar-se aos livros; e aos frades exortava-se a que prolongassem as suas vigílias no estudo. Não que este constituísse precisamente a essência da vocação dominicana, mas cada uma das suas casas estava dedicada ao estudo, o qual os conduzia à contemplação, a qual por sua vez se desbordava na pregação.
Creio que o Papa Honório III se refere de modo explícito à vida dominicana considerando-a essencialmente contemplativa, mas sem que isso implique alguma contradição entre contemplação e actividade. Em qualquer caso o que estudavam era a Escritura, a Bíblia era o seu livro de texto da teologia.
Desejaria que São Domingos me concedera finalmente uma compreensão deste problema da contemplação oposta à acção, de tal modo que me resultasse tão claro e definido como a silhueta das paisagens da França meridional
.”
[1]
[1] MERTON, Thomas – El Signo de Jonas. Diários (1946-1952). Bilbao, Desclée de Brouwer, 2007, 243-244.