domingo, 25 de fevereiro de 2018

Homilia do II Domingo da Quaresma Ano B

A leitura do Evangelho deste segundo domingo da Quaresma apresenta-nos a transfiguração de Jesus diante dos discípulos Pedro, Tiago e João. É um momento importante na caminhada de Jesus com os discípulos, mas é igualmente um momento importante na nossa caminhada da vida e na nossa caminhada quaresmal de preparação para a Páscoa. Sem que tenhamos muita consciência disso fazemos já neste momento uma experiência da ressurreição, projecta-se no nosso horizonte esse grande mistério que nos envolve a todos.
Contudo, para compreendermos um pouco melhor o que se passou, temos que olhar os momentos que precedem este acontecimento, pois é à sua luz que ele ganha contornos mais definidos. Assim temos a multiplicação dos pães e a cura do cego de Betsaida, e após estes milagres a célebre pergunta de Jesus aos discípulos sobre a sua identidade. Afinal quem dizem os homens que ele é e quem dizem eles que é.
Diante da confissão de Pedro, de que Jesus é o Messias, aparece-nos o primeiro anúncio da paixão de Jesus, um contraponto ao que Pedro acabou de formular, e logo imediatamente a seguir a repreensão de Pedro ao Mestre, pois o que tinha acabado de dizer não fazia sentido nenhum, não se encaixava naquilo que tinham assistido de extraordinário, de grandioso. Afinal como é que Jesus podia assumir um final trágico, um final de rejeição e morte, com as multidões a procurá-lo, com os milagres que realizava, com os poderes que manifestava?  
O anúncio de Jesus opõe-se à imagem do super-herói, de alguém que tem poderes para fazer o que quiser, e que se vinha a construir no meio de todos; e Pedro inevitavelmente não podia aceitar isso, ou como nos diz o texto evangélico, satanás não podia permitir a fuga a essa imagem, a essa brecha de tentação à utilização dos poderes para a glória própria.
Face a esta perturbação, a esta anarquia de valores e interesses, à confusão gerada ainda mais pela apresentação das condições para seguir o Mestre, Jesus reformula a estratégia, se assim podemos dizer, e num movimento pedagógico inusitado recolhe-se com três dos discípulos lideres num alto do monte e transfigura-se diante deles.
Podemos dizer que é uma manifestação que visa preparar os discípulos, fortalecê-los na sua união com o Mestre, na coragem e na confiança para poderem atravessar a tormenta que de facto já se desenha no horizonte. Sabemos, no entanto, que a experiência não foi muito eficaz, pois no momento mais perigoso cada um dos discípulos escapa-se como pode.
E esta ineficácia está já patente neste mesmo momento quando Pedro propõe construir três tendas, uma para Elias, outra para Moisés e outra para Jesus. O evangelista diz-nos que Pedro não sabia o que dizia, desculpando Pedro da proposta delirante, pois se pelo lado de Jesus a companhia de Elias e Moisés significava a sua relação com as promessas messiânicas, pelo lado de Pedro a proposta das três tendas visava um encerramento, uma reconfiguração de toda a experiência com Jesus nos quadros do antigo profetismo e da lei mosaica.
É por esta razão que a transfiguração de Jesus no alto do monte se divide em dois momentos, se compõe de duas experiências, a da visão dos antepassados Elias e Moisés e a da teofania da voz que vindo da nuvem escura lhes diz que aquele é o Filho muito amado. Estamos assim face a um convite que apela a uma integração do antigo no novo, a uma nova relação com o divino, não já através do profetismo ou da lei, mas pela relação muito pessoal e intima com aquele que é o Filho, a manifestação do amor do Pai.
A transfiguração é assim a habilitação dos três discípulos para a experiência futura da rejeição, paixão, morte e ressurreição de Jesus. Tudo vai acontecer de acordo com a lei e os profetas, mas a sua cabal compreensão só é possível através da relação com o transfigurado ressuscitado. Compreendemos assim que após a teofania Jesus ordene aos discípulos que não comentem nada do sucedido até à ressurreição, ainda que como o Evangelho nos diz eles não soubessem o que isso significava.
Esta ordenação, agora limitada no tempo, aparece em muitos outros momentos quando Jesus impede os espíritos de falarem, de dizerem quem ele é. Não se trata de uma cabala, nem de um segredo de justiça que não pode ser violado, bem pelo contrário trata-se de um aviso, de uma precaução, pois só após a ressurreição se poderá falar verdadeiramente daquele Jesus, daquele Messias, do Filho de Deus. Antes disso todos os discursos, todas as afirmações serão um fiasco, um equívoco.
É a experiência do encontro com o ressuscitado que dá a verdadeira e completa imagem de Jesus, o verdadeiro conhecimento do amor de Deus, que nos faz perceber que Deus não poupou o seu próprio Filho para nos resgatar da condição do pecado, para nos assegurar a relação de filiação e intimidade que tínhamos perdido com a desobediência dos nossos primeiros pais.
A transfiguração é assim, na nossa caminhada quaresmal, na nossa vida de cristãos, uma manifestação dessa tensão em que vivemos, estamos no mundo mas não somos do mundo, somos filhos de Deus mas vivemos como filhos dos homens, vamos caminhando para o imprevisível e vamo-nos preparando para o impossível mas apenas orientados pela confiança na palavra e nos testemunho dos que nos precederam. Na nossa realidade do quotidiano, na nossa fragilidade, perfila-se um horizonte de glória, de luz, no qual fomos integrados desde o nosso baptismo mas necessitamos actualizá-lo, assumi-lo plenamente, transformando a nossa condição finita e pecadora, em suma transfigurando-nos.
Este compromisso e trabalho diário tornam-se mais simples na medida em que a nossa confiança em Deus é forte, em que a fé nos leva a ter garantido o auxílio de Deus e a sua protecção. Dessa forma poderemos também nós confiar a Deus o que mais amamos, tal como Abraão confiou o seu filho Isaac, ou o que mais tememos e nos intimida, uma vez temos à direita do Pai aquele que intercede por nós, como nos diz São Paulo.
Nesta segunda semana da Quaresma somos assim convidados a desenvolver a confiança, a confiar nas nossas capacidades e potencialidades, nos dons que Deus nos confiou, bem como nos irmãos com que vivemos e construímos projectos de vida e trabalhos, mas sobretudo em Deus que não nos falta com a sua protecção e a sua luz.

 
Ilustração:
1 – “Transfiguração”, pintura de Carlo Bloch, Frederiksborg Castle Museum, Dinamarca.
2– “Jesus em oração”, pintura de Arcabas, igreja de Saint Hugues le Chartreuse, Grenoble.

 

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Homilia do I Domingo da Quaresma Ano B

Neste primeiro domingo da Quaresma o Evangelho apresenta-nos as tentações de Jesus, e estamos já tão habituados a este acontecimento que nem reparamos como o Evangelho de São Marcos se distancia nesta narração dos Evangelhos de São Mateus e São Lucas. O Evangelho de São Marcos diz-nos apenas que Jesus era tentado, não nos especificando quais as tentações que sofreu, como o fazem São Lucas e São Mateus que nos apresentam três tentações.
Esta simplicidade de São Marcos, a sua narração sintética, como já temos vindo a ver nos domingos anteriores, não é no entanto despojada de sentido, bem pelo contrário, ela quer colocar em evidência uma outra dimensão, uma outra face de Jesus, ou seja, procura uma vez mais mostrar como Jesus é o Filho de Deus, aquele no qual os seus interlocutores e leitores devem acreditar.
Desde o primeiro momento que a resposta à questão quem é este, está patente, Jesus é o Filho de Deus; mas torna-se necessário desenvolvê-la, especificá-la e fazê-la credível em todos os seus aspectos e dimensões àqueles que a desejam obter.
Assim, São Marcos não só coloca no momento do baptismo o Espirito a anunciar que aquele Jesus é o Filho muito amado do Pai, como nos diz que é o mesmo Espirito que conduz Jesus ao deserto, como se a experiência do baptismo não estivesse completa, como se fosse necessário mostrar algo mais do que já se tinha anunciado.
E de facto é isso que acontece com Jesus e com todos nós baptizados. Podemos dizer, usando as palavras da Carta de São Pedro que lemos, que se torna necessário evidenciar o compromisso para com Deus, que se torna necessário fazer a experiência da dimensão divina na nossa dimensão humana.
O ser filho muito amado de Deus, como todos somos, é algo que exige de nós uma atitude, um compromisso, uma vida diferente, um viver constante de combate entre as nossas forças mais negativas, mais inviabilizantes da nossa realização plena, e a graça divina, a força de vivermos para a plenitude como filhos de Deus.
Jesus vai ao deserto fazer essa experiência da passagem do Deus todo-poderoso, do Deus que tudo controla e ao qual tudo se submete, para o Deus que ama, que se entrega e aniquila, que se faz pequenino e pobre, poderíamos dizer como Maurice Zundel, o Deus mendigo. As três tentações que os evangelistas São Lucas e São Mateus nos apresentam nesta experiência do deserto são uma metáfora dessa grande tentação que afinal todos os homens sofrem, e hoje nós mais que nunca, que é a tentação de querer tudo, agora e de forma definitiva.
É a tirania do imediato absoluto, que não nos permite nem apreciar verdadeiramente o que temos e somos, nem nos deixa tempo para perceber como a vida e todas as realizações são um devir no tempo e no espaço.
São Marcos ao apresentar-nos uma experiência de Jesus no deserto diferente, mais centrada no Espirito e na concepção paradisíaca da vida, com essa imagem da convivência de Jesus com os animais e a ser servido pelos anjos, imagem que foi tão cara ao profeta Isaías, quer dizer-nos que mais importante que as tentações, que o que nos pode seduzir e distrair de Deus, é a sua presença, é a sua oferta de uma vida plena, é a dimensão primordial da intimidade com Deus. O combate contra o mal tem a vitória assegurada, e Jesus é a primeira testemunha disso.
Por esta razão, Jesus sai do deserto para ir anunciar que o tempo se cumpriu, que o Reino de Deus está próximo, e portanto torna-se necessário arrepender-se e acreditar no Evangelho, nessa boa nova que nos acompanha desde a criação, nessa aliança de paz que Deus estabeleceu com todos os homens e todos os seres após o dilúvio, como nos diz a leitura do Livro do Génesis. O homem não está sozinho a combater o mal, Deus está com ele e dá-lhe forças para o poder fazer com coragem e audácia.
Ao iniciarmos a Quaresma, a nossa caminhada de preparação para a Páscoa, podemos ser tentados a desanimar, logo após o primeiro ensaio, pois confrontamo-nos com as nossas fraquezas e infidelidades, com a nossa fraca vontade e as dificuldades de uma mudança, de uma conversão. Contudo, face a essa tentação, de tudo e já agora e bem feito, não podemos soçobrar, mas bem pelo contrário devemos olhar os nossos pequenos esforços com esperança e confiança pois Deus combate connosco.
Que o nosso propósito desta primeira semana da Quaresma seja um propósito de humildade, que não deseja nem aspira a coisas grandes e altas, a uma conversão mágica, mas que se dispõe a lutar com confiança permitindo que a graça de Deus também faça a sua parte em cada um de nós, tal como está expresso nesta oração encontrada numa leitura de viagem.
Senhor, o problema é teu, é por tua culpa que eu me encontro nesta situação. Desenrasca-te. Ocupa-te como deve ser, pois não é a mim que me compete. Tu mandaste-me andar sobre o mar, portanto és tu que tens que fazer com que o mar me suporte. (Adrien Candiard)

 
Ilustração:
1 – “As tentações de Jesus”, pintura de Arcabas, igreja de Saint Hugues le Chartreuse, Grenoble.
2 – “Baptismo e tentação de Jesus”, de Paolo Veronese, Pinacoteca de Brera.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Viver é perder-se para o outro


Quem deseja viver, no sentido pleno da palavra, sabe da necessidade de rupturas e de mortes, nas quais se tem a impressão de tudo perder.
 
Não há vida sem despossessão, porque não há vida sem amor nem amor sem abandono de toda a possessão, sem gratuidade absoluta, dom de si próprio na confiança desarmada.
 
Amar alguém não é preferi-lo à própria vida?
Sem a morte não há nada que possamos preferir a nós próprios.
Estar pronto a dar a sua vida por alguém é verdadeiramente a prova decisiva do nosso amor.
 
Aquém desse dom, nós ainda não amámos; ou pelo menos, não amámos mais que a nós próprios.

Adrien Candiard, Pierre et Mohamed, 55.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Homilia do VI Domingo do Tempo Comum Ano B

A leitura do Evangelho de São Marcos que lemos neste domingo tem uma intrínseca relação com a primeira leitura retirada do Livro do Levítico, pois o que acontece no Evangelho aproxima-se e distancia-se do que está prescrito no Levítico.
É fácil perceber as transgressões que acontecem, tanto da parte do leproso como da parte de Jesus, pois se um se aproxima violando a lei que o obrigava a andar afastado das pessoas, a ser um excluído socialmente, o outro transgride a lei tocando no leproso, tornando-se por esse mesmo acto um marginal, alguém que é obrigado a excluir-se.
Ainda que o evangelista não nos diga que é por esta razão que Jesus já não pode entrar nas cidades, a verdade é que não deixa de apontar a impossibilidade de Jesus, a exclusão em que tinha incorrido, e portanto a permanência em lugares desertos nos quais as multidões o procuravam.
Estamos assim diante de um acontecimento que partindo de um gesto extravagante, podemos até supor inopinado, nos conduz ao grande mistério da vida de Jesus. O Filho de Deus vem ao encontro do homem enfermo no seu pecado, na sua lepra espiritual, para a assumir e o libertar, reintegrando-o na profunda relação de amor com Deus. O profeta Isaías, ao falar do Servo sofredor, tinha já apresentado esta dimensão simbólica da lepra assumida pelo servo de Deus.
Compreende-se assim a recomendação de Jesus ao leproso de que se apresente ao sacerdote, pois não se trata apenas de uma recomendação religiosa, de um cumprir do estipulado pela lei, mas através desse cumprimento o aferir a graça alcançada, a manifestação da presença do próprio Deus entre os homens. O sacerdote aparece assim aqui como a referência que dá a dimensão teológica ao acontecimento, à cura realizada.
O gesto de Jesus para com o leproso é bastante importante para cada um de nós e por isso São Paulo também o assumiu quando diz que o Filho se fez pecado para nos libertar do pecado. Estamos assim diante de um mistério que nos alcança a todos, que nos envolve em toda a nossa existência. Deus vem ao nosso encontro e assume as nossas misérias, as nossas debilidades, o nosso próprio pecado, para nos libertar, para nos reintegrar na relação divina de cada vez que nos afastamos dela, que a quebramos com a nossa vontade e orgulho, com o nosso egocentrismo relacional.
A questão que se coloca, e que nos devemos colocar, é a da nossa disponibilidade para a cura, para sairmos da nossa marginalidade para irmos ao encontro de Cristo, ao encontro daquele que nos ilumina nas nossas trevas e nos cura das nossas enfermidades. Estamos nós verdadeiramente dispostos a sair da nossa situação, da nossa exclusão confortável, para nos lançarmos numa nova vida, numa situação que nos interpela e impele a uma constante mudança, a um combate diário?
Outra questão que este acontecimento da vida de Jesus nos coloca é a do acolhimento do outro na sua fragilidade, no seu pecado, nas suas incapacidades tantas vezes para nós provocadoras de uma resposta de caridade. O texto do Evangelho de São Marcos diz-nos que Jesus se compadeceu daquele leproso. Quantas vezes nos deixamos compadecer pelas fraquezas dos outros, pelas duas debilidades e infidelidades?
A nossa atitude mais frequente é a da crítica, a da marginalização e exclusão, pois é muito mais fácil que deixarmo-nos envolver, deixarmo-nos fazer solução e companheiros para o outro no seu processo de mudança e de saída da sua debilidade e fragilidade. Custa-nos muito fazermo-nos para os outros, ser verdadeiramente misericordiosos como Deus que tomou o nosso lugar.
E mais grave ainda é quando a nossa atitude provoca o escândalo, como tantas vezes acontece. Não só não somos capazes de ajudar o outro, de lhe estender a mão, como ainda somos capazes de lhe provocar o descrédito e o desânimo. São Paulo alerta-nos para isto na leitura que escutámos da Segunda Carta aos Coríntios.
Face ao perigo do escândalo por causa de se comer carne imolada aos ídolos, São Paulo adverte os cristãos de Corinto para que tenham cuidado, para que pensem mais nos outros, na forma como os outros podem ver e interpretar o gesto ou a atitude, afinal de contas o que está em jogo é o bem de todos e a glória de Deus.
Por feliz coincidência celebramos neste domingo o Dia Mundial do Doente, o que nos deve fazer pensar não só nos doentes e na forma como os tratamos, mas também à luz do Evangelho na forma como cuidamos aqueles que não são doentes fisicamente mas sofrem no seu coração o mal da derrota e do desânimo, o mal do pecado e da incoerência de vida, a lepra da sua vida marginal e incapacitante.
Estamos nós dispostos a aproximarmo-nos desses homens e mulheres, sabendo que não somos melhores, que também temos as nossas fraquezas, mas conscientes de que só em caminho e em conjunto podemos chegar ao fim desejado por Deus, que é a sua glória manifestada nos homens e mulheres vivos de verdade?
Que a divina ousadia e coragem de Jesus nos animem a estender a mão, a ir ao encontro do outro, a deixarmo-nos tocar pela sua lepra, para que nenhum de nós se sinta só e para que sejamos verdadeiros imitadores de Cristo como São Paulo o desejou que fossemos.

 
Ilustração:
1 – A cura do leproso, de Niels Larsen Stevns, Skovgaard Museum, Viborg, Dinamarca.
2 – A cura do leproso, (detalhe), de Francesco Morandini, Il Poppi, Museu de São Marcos, Florença.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Homilia do V Domingo do Tempo Comum Ano B

A leitura do Evangelho que escutámos continua a narrar a primeira jornada de Jesus em Cafarnaum, uma jornada de sábado que nos faz um síntese da vida e da missão de Jesus, que nos ajuda a encontrar uma resposta para a questão do mal e do sofrimento que a primeira leitura, do Livro de Job, nos coloca como inevitável.
Job é um homem justo, mas que perde tudo, desde as propriedades à família, inclusive a própria saúde, restando-lhe apenas a vida dolorosa de sofrimento. Numa tentativa de conforto e justificação da desgraça, os amigos procuram despertar nele uma culpa, qualquer atitude que pudesse ter provocado aquele desaire.
Contudo, Job não encontra esse erro, essa falha que podia ter provocado a punição pela parte de Deus. Bem pelo contrário, recusa-se mesmo a acolher essa ideia de um Deus vingativo, de um Deus castigador, há nele uma esperança infinita em Deus que olha a vida e a reconhece como um sopro e a ama nessa mesma fragilidade e finitude.
O Livro de Job é assim uma resposta e uma contestação a essa ideia tantas vezes difundida de que Deus se vinga, de que Deus cobra os nossos erros e as nossas faltas, como se de um ser sádico se tratasse, como se satisfizesse com a dor e o sofrimento, com a infelicidade da sua obra.
Outra questão que o sofrimento nos levanta, e que marcou os intelectuais da primeira metade do século vinte e a literatura russa do século dezanove, de que os Irmãos Karamazov são um testemunho, é a da inacção de Deus face ao mal e ao sofrimento. Albert Camus, que escreveu o romance “A Peste”, coloca essa questão de forma premente, afinal que Deus é este que se esquece e não olha aqueles que sofrem.
A questão de Camus foi colocada directamente ao teólogo e filósofo suíço Maurice Zundel, que lhe respondeu da forma mais surpreendente e sublime que podemos imaginar. Em qualquer sofrimento humano Deus é o primeiro a sofrer, Deus sofre com o homem e pelo homem, sofre antes do homem e depois do homem. E para que Albert Camus compreendesse a dimensão da sua ideia, Zundel apresentou-lhe a imagem da mãe que sofre pelo seu filho, tanto ou mais que o próprio filho.
O místico suíço faz eco de uma das mais belas expressões proféticas que podemos encontrar na Sagrada Escritura, se uma mãe não pode esquecer o fruto das suas entranhas, muito menos Deus pode esquecer os seus filhos, o fruto das suas entranhas de amor. E o amor materno, no que tem de mais sublime, é uma pálida imagem do amor divino, amor que foi capaz de se entregar a si próprio no Filho para resgatar aqueles pelos quais ninguém era capaz de dar alguma coisa, que foi capaz de se fazer pecado para nos libertar do pecado.
Deus é assim a primeira vitima do mal e do sofrimento, é o primeiro que sofre, porque na sua obra mais perfeita, na obra criada à sua imagem e semelhança, vê acontecer o mal e a degradação, vê o sofrimento e a dor, vê a morte. É a contingência da criação, a limitação estrutural da obra, é a fragilidade inata, uma obra grandiosa e feita para a plenitude mas que pode sucumbir a um terramoto ou a uma simples virose.
E porque o desespero do homem podia ser muito grande, tal como diz Dostoievsky o sofrimento pode ser insuportável, Deus veio até ao homem, fez-se um de nós para nos libertar do medo, para nos dizer que não estamos sós nesta travessia de deserto, do sofrimento e da dor, da morte. O gesto de Jesus para com a sogra de Pedro é a metáfora desta presença e acção de Deus junto de todos nós, ele vem ao nosso encontro, estende-nos a mão para nos curar do medo, da paralisia face ao mal e à dor, Deus ergue-nos amorosamente para que sejamos testemunho, sinal de uma outra presença, de uma outra vida.
Todos nós temos ainda presentes as imagens dos últimos meses de vida do Papa e hoje Santo João Paulo II, da sua doença debilitante e transfigurante; e contudo, naquela fragilidade, aquele homem era um sinal, um apelo à luta pela vida, e certamente muitos homens e mulheres continuaram a lutar pela vida ao vê-lo naquela fragilidade, foram serviço de vida para outros homens e mulheres.
Tal como dizia São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios, fez-se fraco para ganhar os fracos, para não permitir que caíssem no desalento. O mistério da encarnação de Jesus, a sua paixão e morte, o fazer-se homem como nós, foi para nos ganhar para a vida, para que não desesperássemos da vida que é mais que o nosso corpo ou a nossa saúde.
Esta consciência, poderíamos dizer o fruto da conversão e do combate, não é contudo fácil, pois não só nos sabemos feitos para a plenitude, e portanto é-nos difícil acolher e aceitar a finitude e a fragilidade da nossa condição corpórea, como também muitas vezes adulamos a nossa condição física, vivemos como se fossemos eternos na nossa juventude e capacidades.
Para podermos dar a resposta de Jesus, face à tentação aduladora expressa nas palavras de Pedro de que todos andavam à sua procura, “vamos a outros lugares pois foi para isso que eu vim”, também nós necessitamos recolher-nos do mundo, afastar-nos e entrar em diálogo com Deus Pai, perceber no silêncio da intimidade e do amor de Deus a nossa finitude, as nossas fraquezas e limitações, mas como apesar disso a nossa vida está chamada a ser um sinal de algo mais elevado, de uma outra realidade que é eterna.
Que a Virgem Maria, Maria Madalena e o discípulo amado nos acompanhem sempre na cruz do nosso sofrimento, na qual Jesus está crucificado connosco.

 
Ilustração:
1 – Job, de Jan Lievens, National Gallery of Canada.
2 – Jesus curando a sogra de Pedro, desenho de Rembrandt, Fondation Custodia, Paris.