Há oito dias atrás, no
primeiro domingo da Quaresma foi-nos apresentado o momento em que Jesus foi
tentado no deserto. Hoje, segundo domingo da Quaresma, somos confrontados com o
momento da transfiguração.
No Evangelho de São
Lucas, que seguimos nestes domingos, há igualmente um período de oito dias que
precede a transfiguração. Oito dias medeiam o anúncio da morte de Jesus, com o
choque que tal anúncio acarreta, e o momento da transfiguração.
Estamos assim, numa e
noutra circunstância, no ritmo das leituras da Quaresma e no caminho de Jesus
com os discípulos, face a um acontecimento que tem esse objectivo último de
animar, de fortalecer a caminhada, de oferecer um sinal de esperança face a
tantos sinais contraditórios.
Neste sentido, não
podemos deixar de imaginar o impacto das palavras de Jesus junto dos
discípulos, do escândalo, de que os próprios Evangelhos nos dão conta, quando
nos narram que Pedro tentou dissuadir Jesus do inevitável.
Não podemos deixar
também de assumir o impacto que a narração das tentações de Jesus tem na nossa
vida, como o confronto com esse acontecimento nos deixa muitas vezes
desanimados, pois pensamos que se até Jesus foi tentado o que não acontecerá
connosco e onde encontraremos forças para resistir.
É face a estes
impactos, e aos problemas que eles podem causar e causaram junto dos
discípulos, que Jesus se retira para um alto do monte para rezar. Jesus recorre
assim ao grande elemento simbólico da montanha para conduzir os discípulos ao
encontro com Deus, ao encontro com a vontade de Deus.
Este elemento
simbólico é depois reforçado com o aparecimento de Moisés e Elias, duas figuras
tutelares da tradição judaica que representavam na fé e no imaginário relações
muito especiais com Deus, de grande intimidade, e cujos desaparecimentos
estavam envoltos em um certo mistério. A incompreensibilidade da morte de Jesus
pode começar assim a dissipar-se à luz do mistério de Moisés e Elias.
Esta dissipação é
igualmente reforçada pela atitude que Jesus toma e que o pequeno grupo selecto
dos discípulos pode contemplar. No alto do monte e num momento de oração, Jesus
transfigura-se, muda de aparência, pois São Lucas não usa nunca a palavra
transfiguração para falar do sucedido, como acontece com São Mateus.
Perante tal alteração
os discípulos podem contemplar que a vida e a morte de Jesus já anunciada não
são algo de estranho, desastroso, mas são reflexo consequente de uma
intimidade, de uma relação tão pessoal e tão intensa que tem essa mesma
capacidade de iluminar e transfigurar, de dar uma outra dimensão e luz aos
acontecimentos, mesmo aos mais trágicos.
Face às dificuldades
que se perspectivam, Jesus mostra aos discípulos e a cada um de nós que a
intimidade com Deus, a nossa relação de fé e a oração podem de facto iluminar
os nossos sofrimentos, os nossos desastres, podem conduzir-nos à vitória sobre
as tentações, sejam elas de que espécie for.
É nesta circunstância,
neste momento, que Pedro nos mostra, uma vez mais, a incompreensão dos
discípulos, a dificuldade em perceberem o que se passava e estava em jogo. A
proposta de Pedro para a construção de três tendas é um completo equívoco face
ao que podem contemplar, pois não estão ainda no paraíso, como os elementos
parecem indicar, mas testemunham de um diálogo em que a questão fundamental é
uma libertação, é um êxodo que Jesus tem que operar e do qual eles vão
participar.
A transfiguração de
Jesus diante dos discípulos é assim um momento de visibilidade e de luz, de
conforto face aos medos, mas é igualmente um momento de trevas, de invisibilidade,
de cegueira. A transfiguração é um momento de ver, mas também um momento de
ocultação, e por isso Moisés e Elias se retiram face à proposta de Pedro.
E esta duplicidade de
situações, este equívoco, é extremamente importante para nós, vem afinal ao
encontro das nossas necessidades, uma vez que nos retira do imediato e
sensível, do visível, e nos coloca, como colocou os três discípulos, na órbita
da Palavra.
Face à impossibilidade
da contemplação da glória de Deus, da sua apreensão ou retenção, como desejava
Pedro quando se oferece para construir três tendas, Deus vem ao nosso encontro
através da Palavra feita carne, da oferta de Jesus Cristo seu eleito.
Assim sendo, a
verdadeira tenda para o acolhimento de Deus é a nossa humanidade, é a nossa
história, na qual pela intimidade com Deus, pela nossa filiação divina, podemos
perceber como afinal Deus vai caminhando connosco, vai revelando pequenas
maravilhas da eternidade.
A transfiguração de
Jesus no monte Tabor é um convite à transfiguração do nosso quotidiano, ao
encontro nas nossas realidades humanas e históricas da presença e acção de Deus,
e de modo particular naquelas que nos podem parecer completamente alheias ou
estranhas à ideia de Deus como foi a paixão e morte de Jesus.
Procuremos pois
acolher com firmeza e fidelidade a Palavra do Pai na nossa humanidade, para que,
como nos diz São Paulo, o nosso corpo miserável se transforme no corpo glorioso
que nos foi possível vislumbrar na transfiguração de Jesus.
Ilustração: Ícone
Bizantino da Transfiguração, Museu do Louvre.