domingo, 30 de setembro de 2012

Homilia do XXVI Domingo do Tempo Comum

A leitura do Evangelho deste domingo apresenta-nos na boca do discípulo João uma questão extremamente pertinente, uma questão que está na origem de muitas das nossas divisões religiosas, culturais, sociais e até políticas. “Vimos um homem expulsar os demónios em teu nome mas que não anda connosco”.
A questão de João e a atitude que os discípulos assumiram, pois proibiram o homem de realizar tais acções, deriva da consciência de eleição, do facto de um dia Jesus os ter chamado a cada um deles e os ter enviado a anunciar a Boa Nova do Reino expulsando os demónios e curando os enfermos.
Por esse facto não só se consideravam privilegiados como também proprietários exclusivos do poder que Jesus lhes outorgava. Por outro lado, concebiam a eleição de que tinham sido objecto como uma delimitação, como se Jesus tivesse constituído fronteiras na sua comunidade ao fazer aquela eleição e portanto não houvesse lugar para mais ninguém.
Não podemos deixar de assumir que em muitas situações da nossa vida nos comportamos como João, que muitas vezes rejeitamos os outros ou criamos barreiras de comunicação e fraternidade porque eles não andam connosco, porque não partilham as mesmas ideias ou porque muito simplesmente consideramos que são uma ameaça ao nosso poder.
Quantas vezes não demonizamos o outro porque se apresenta como uma novidade, alguém mais jovem, alguém com uma ideia válida e transformadora, alguém que ameaça o meu estatuto, embora não o pretenda nem tenha esse objectivo?
Face à contestação de João e às nossas muitas atitudes de rejeição e marginalização Jesus eleva o debate e coloca os discípulos e cada um de nós perante um conjunto de desafios que nos desconcertam pela sua radicalidade e perante a humildade que lhe é natural e nos devia contagiar nas nossas relações.
Assim, face à queixa de João, a resposta de Jesus é que não devem incomodar tal homem por praticar tais actos, pois ninguém o pode imitar na sua acção e estar contra ele ou dizer mal dele. Jesus alarga assim a comunidade restrita que os discípulos queriam constituir, e revela-lhes que a acção e o poder do Espirito não se limita a alguns nem é propriedade de ninguém.
Com esta abertura Jesus manifesta igualmente a sua humildade, a sua missão obediente ao Pai, não se atribuindo mais poder do que aquele mesmo que lhe era dado pelo Pai. A acção do Pai e do Espirito não são sua propriedade nem estão sob o seu controlo e assim a deviam compreender e assumir os mesmos discípulos.
E tal como Jesus também nós devíamos assumir esta humildade, lutar contra as nossas egoístas pretensões de poder, colocando diante de cada acção o princípio que Jesus enumera de que quem não é contra nós é por nós, alegrando-nos como Moisés por se encontrarem entre nós profetas e o Espirito de Deus iluminar outros homens.
À luz deste mesmo Espirito devemos interrogar-nos sobre as vezes que um plano ou um projecto, uma ideia nova, não avançou nos nossos grupos familiares, religiosos, ou profissionais, porque o considerámos como um ataque, quando de facto e no fundo mais não pretendia que uma reorganização de tarefas e portanto nos poderia servir melhor, podia estar por nós.
Quantas vezes as nossas forças e o nosso poder não foram mais forças de bloqueio e de paralisação, quando podiam ter sido contributo e alavanca para novas realidades e aproximação a novos desafios mais gratificantes?
Neste sentido, e para que possamos levar por diante esta atitude humilde e englobante de Jesus, temos que assumir as propostas radicais de Jesus quanto aos membros que nos impedem de caminhar e provocam o escândalo.
Não podemos contudo pensar que a proposta de Jesus ao dizer que devemos cortar uma mão, um pé, ou arrancar um olho, se é ocasião de escândalo, significa uma mutilação física. Temos que assumir que se tratam de expressões fortes para veicular uma ideia extremamente importante, e que é a da purificação, a da conversão.
Neste sentido ainda, não podemos esquecer que o corpo humano é obra de Deus e deve estar ao serviço da glória de Deus. Como diz Santo Ireneu, a glória de Deus é o homem vivo, e portanto o homem em toda a sua forma física. Por outro lado, não podemos esquecer também aquilo que Jesus disse em outro momento do Evangelho, que não é o que é exterior ao homem que o contamina mas o que lhe nasce no coração.
As recomendações de Jesus são assim uma proposta de conversão dos nossos próprios membros, dos nossos sentidos, da nossa pessoa na sua totalidade, uma conversão no sentido do serviço do Reino, de sermos instrumentos de construção, e para tal o corte que nos pode operar, que nos pode reconverter é aquele que resulta da Palavra de Deus, que como nos diz o Salmo é uma espada de dois fios.
É a Palavra de Deus que pode e deve operar esse corte que lança fora o que provoca escândalo e conduz ao pecado. É a Palavra de Deus que nos pode livrar do caminho da idolatria das nossas próprias forças e membros. É a Palavra de Deus que nos pode libertar da idolatria do dinheiro e da injustiça para com os outros.   
Em conclusão, podemos dizer que o Evangelho de hoje nos coloca face ao perigo da idolatria do grupo, da exclusividade do grupo, e da idolatria das nossas forças e meios, da sua utilização desorientada em ordem ao mundo novo que somos chamados a construir.
Perante tais idolatrias Jesus revela-nos que tanto o grupo, e a eleição para o grupo, bem como todos os membros e o trabalho que podem realizar, devem estar ao serviço de Deus, são instrumentos escolhidos para a revelação do seu projecto de amor e para a construção do Reino num mundo melhor.
Todos somos instrumentos de Deus e assim o devemos servir na humildade.
 
Ilustração: Eleição dos doze Apóstolos, por James Tissot, Brooklyn Museum.

 

 

 

O dom da oração

 
A oração é o dom de uma amizade superabundante dado por Deus e ao qual ensaiamos pobremente uma resposta. Ela é uma atenção, uma preferência, uma pobre tentativa duramente sustentada de permanecer na sua presença. É necessário um coração purificado e uma vida ordenada para chegar a adormecer com uma oração nos lábios e para a saber retomar ao despertar.
Dom Samuel

Ilustração: Mulheres gregas implorando a protecção da Virgem Maria, de Ary Scheffer, Museu Nacional de arte ocidental, Tóquio.   

sábado, 29 de setembro de 2012

O obstáculo do orgulho

 
O Senhor não se revela à alma orgulhosa. O orgulhoso ainda que estude todos os livros não conhecerá jamais o Senhor, porque o seu orgulho não lhe deixa espaço para a graça do Espirito Santo, e Deus não é conhecido a não ser pelo Espirito Santo.
São Silouane, o Atonita

Ilustração: Mais jovens peregrinos a Santiago antes da entrada na área industrial de Porriño, 1 de Julho de 2012.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Amar para ser pessoa

 
Ama o próximo como a ti mesmo, quer dizer, ama-o porque ele tem a mesma natureza que tu, tu és um com ele, mas sem confusão. Não se trata de um amor fusional, no qual a distinção das pessoas desapareça. Tornamo-nos verdadeiramente pessoas quando ama-mos o outro como a nós próprios. De contrário permanecemos indivíduos, e quem diz individuo diz separação, isolamento, oposição, e pior que tudo, ódio.
Arquimandrita Syméon

Ilustração: Grupo de Jovens peregrinos antes de entrar na área industrial de Porriño, 1 de Julho de 2012.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O mandamento que une

 
O Espirito Santo é um Espirito que une de novo os homens, e esta unidade deve exprimir-se pelo amor do próximo. Os mandamentos de Cristo são mandamentos unificadores, e de modo particular o mandamento do amor do próximo.
Arquimandrita Syméon

Ilustração: Peregrinos na área de descanso de Orbenlle Budiño, Caminho Português de Santiago, 1 de Julho de 2012.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O vazio para que Deus venha

 
É necessário criar o vazio para que o Espirito de Deus nos venha preencher. E este acto de esvaziamento pessoal, de aceitar a humildade, é certamente um dom da graça, mas deve corresponder também à vontade do homem. O homem pode-a recusar.
Arquimandrita Syméon

Ilustração: Peregrino Alexandre a caminho de Santiago, Caminho Português de Santiago, 2 de Julho de 2012.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

A união com Deus

 
Cristo veio nos mostrar que não é por um acto de auto deificação que o homem se une a Deus, mas pelo acto inverso, pela auto negação que é a entrada na humildade, para que a graça de Deus nos possa preencher.
Arquimandrita Syméon

Ilustração: Ponte sobre o Rio Louro, Caminho Português de Santiago, 1 de Julho de 2012.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O desejo de Deus

 
O desejo de estar com Deus existe em todo o homem, mas este desejo foi como que pervertido, e por isso o homem procura esta satisfação pelos seus próprios meios ou pelas vias que não são as de Deus.
Arquimandrita Syméon

Ilustração: Peregrinos após a ponte sobre o Rio Louro, Caminho Português de Santiago, 1 de Julho de 2012.

domingo, 23 de setembro de 2012

A liberdade dificil

 
Deixar completamente livre alguém que se ama, deixá-lo viver a sua vida completamente à vontade, essa é a coisa mais difícil que existe.
Etty Hillesum

Ilustração: Peregrinos sobre a ponte do rio Louro, Caminho Português de Santiago, 1 de Julho de 2012.

sábado, 22 de setembro de 2012

A loucura da cruz

 
Em Cristo é-nos oferecido um caminho de salvação, mas depende de nós aceitá-lo ou recusá-lo, de seguir a loucura da Cruz ou seguir a pseudo sabedoria do mundo. A loucura da cruz não é fácil, é a via estreita, e pouco numerosos são aqueles que se comprometem.
Arquimandrita Syméon
Ilustração: Ponte das Febres e Cruzeiro de São Telmo, Caminho Português de Santiago, 1 de Julho de 2012.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Eu vim chamar os pecadores. (Mt 9,13)

É face ao escândalo dos fariseus, provocado pela sua presença num almoço de publicanos e pecadores, que Jesus profere estas palavras: “ eu não vim chamar os justos mas os pecadores”.
Palavras acutilantes para aqueles que se consideravam justos, que pelo simples cumprimento de todas as leis e preceitos se consideravam salvos, como eram os fariseus.
Mas de facto, quem poderia o Senhor vir chamar senão os pecadores? Não estaremos todos no mesmo barco, na mesma situação de infidelidade ao plano de Deus? Ou pelo contrário, nos consideramos tão puros e tão santos que já não necessitamos de conversão, de mudar alguma coisa na nossa vida, de fazer alguma coisa melhor?
As ilusões da perfeição, do mal menor, do meu feitio, do já não sei como, colocam-nos num estado em que o sentimento ou a consciência de pecado fica diluída e com ela a possibilidade de conversão, de alteração de alguma coisa na nossa vida.
É a verdade e o confronto com a verdade, e com a verdade das nossas limitações e fragilidades, dos nossos egoísmos e prazeres compensatórios, com a verdade da nossa situação de pecadores que nos pode conduzir à conversão. É aí que se encontra o terreno fértil para que algo brote de novo.
Mateus, sentado à banca dos impostos, não espera nem exige um perdão dos seus pecados para seguir Jesus. É na sua condição pecadora que assume o convite de Jesus ao seguimento, e por isso pouco depois o encontramos em sua casa rodeado daqueles que sempre partilharam da sua vida e eram considerados pecadores como ele. E com eles está Jesus.
Assim, se Mateus seguiu Jesus foi porque no apelo encontrou um sinal do apreço, do amor que Jesus sentia por ele, uma manifestação de que a sua situação e condição de pecador podia ser alterada. Havia uma outra oportunidade para ele. O seguimento, e o acolhimento podiam alterar a sua vida.
E quem melhor que alguém que sentiu a misericórdia de Deus, o seu perdão e o seu amor, para cantar e contar essa misericórdia e esse perdão? É a experiência do amor redentor de Deus, do perdão amoroso que nos leva a anunciá-lo até ao fim do mundo e dos tempos.
Como o título do livro “Necessitam-se Pecadores”, do dominicano francês Bernard Bro, também nós dizemos que se necessitam pecadores, pecadores que aceitem o convite de Jesus ao seguimento, à experiência do perdão, porque com essa experiência uma nova vida e um novo mundo se iniciam.   
 
Ilustração: “O Chamamento de São Mateus”, de Hendrick ter Brugghen, Museu de Belas Artes de Budapeste.

O amor cristão

 
O amor torna-se cristão desde que ele não é motivado pelo nosso egoísmo, pela nossa tendência a esperar retirar qualquer coisa desse amor.
Arquimandrita Syméon

Ilustração: Ribeiro que passa na Ponte das Febres, Caminho Português de Santiago, 1 de Julho de 2012.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A vida mais rica

 
Soa quase paradoxal. Por causa de excluírem a morte da vida, as pessoas não vivem uma vida completa, e ao acolher a morte dentro da vida, ela fica mais rica e mais ampla.
Etty Hillesum

Ilustração: Ponte das Febres, Caminho Português de Santiago, 1 de Julho de 2012.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

São como crianças (Lc 7,32)

Jesus disse que quem não se fizesse como uma criança não entraria no Reino dos Céus. Contudo, ao comparar os seus contemporâneos como crianças está a colocar a atenção no lado oposto do ser criança, naquilo que poderíamos apelidar da perversão da criança.
De facto, Jesus compara os seus contemporâneos a crianças insatisfeitas, pois cantaram para elas e não dançaram, entoaram lamentações e não choraram. No entanto, mais que a insatisfação, o que verdadeiramente acontece é um bloqueio, uma recusa liminar ao que se faz e oferece, o que não permite sequer a satisfação ou insatisfação.
Os contemporâneos de Jesus não foram capazes de acolher João Baptista que se apresentava com um convite à conversão através da ascese de vida, e terminaram mesmo por o criticar e condenar. Jesus, que actuava de forma diferente, foi também alvo das mesmas críticas, ainda que as realidades e os modos de agir fossem diferentes.
De facto não estava em questão o objecto ou a pessoa, mas o acolhimento, a capacidade de estar disponível para algo diferente, para uma novidade. E tal não aconteceu.
Ao apresentar as crianças como possibilidade de entrada no Reino dos Céus, Jesus convida-nos a acolhimento, à atitude da criança que é curiosa, que quer saber, que está disponível para experiências novas.
E esta atitude é extremamente importante, podemos dizer que é mesmo a chave do nosso ser cristãos, que aparece já patente no prólogo do Evangelho de São João quando diz “que a todos aqueles que o acolheram lhes deu o poder de se tornarem filhos de Deus”.
Deus oferece-se-nos e cabe-nos a nós acolhê-lo ou rejeitá-lo. Deus deixa-nos a liberdade de o poder fazer, e de o podermos fazer em cada dia, em cada momento, em cada ocasião que se nos proporciona um acolhimento, seja da palavra, seja do outro, seja até da dor ou a morte.
 
Ilustração: “Troika”, de Andrey Andreevich Popov, Museu Rybinsk, Russia.
 

O mais precioso

 
Acredita-se que o que é precioso é o que está colocado no cume da glória, da força, na caixa forte de um banco. Mas é errado. O mais precioso é o que é fraco, pobre, banal, o que elevado por um olhar de amor não conhece a morte. O dinheiro é um deus que não perdoa nada, que não suporta esperar.
Christian Bobin

Ilustração: Coelho à solta na aldeia da Madalena, Caminho Português de Santiago, 1 de Julho de 2012.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

O Senhor compadeceu-se dela e disse-lhe: Não chores. (Lc 7,13)

Jesus vai a caminho da cidade de Naim e encontra-se com uma pobre viúva que acompanhada pela multidão vai a sepultar o seu único filho. Diante de tal cena é impossível ficar insensível, e Jesus cheio de compaixão aproxima-se daquela pobre mulher e do cortejo fúnebre.
Jesus sabe a fragilidade em que aquela mulher se encontra, pois sem marido e sem filho a sua sobrevivência fica dependente da caridade dos outros, da família e do grupo dos vizinhos. Mais tarde entregará a sua própria mãe ao discípulo mais querido para que não lhe aconteça o mesmo.
Ao aproximar-se desta mulher e ao compadecer-se da sua situação de perda e fragilidade Jesus revela o coração do Pai, revela a sua missão mais profunda, pois também por causa da fragilidade da humanidade o Pai o enviou ao mundo. Jesus vem ao encontro das lágrimas da humanidade, do sofrimento provocado pela perda do que é mais querido.
Ao ordenar ao filho desta pobre viúva que se levante e recobre a vida, Jesus anuncia já a sua vitória sobre a morte e a ressurreição que é oferecida a todos os homens. Jesus anuncia a possibilidade do fim das lágrimas por causa da morte.
Ao fazê-lo, Jesus revela uma outra realidade, tantas vezes esquecida; Deus é um Deus de vivos, e é um Deus de relação, um Deus que se mantém próximo e sensível às preocupações e sofrimentos da humanidade, não é um Deus distante e insensível, encerrado na sua glória egoisticamente.
O nosso Deus é um Deus de amor, um Deus de compaixão, um Deus que arriscou partilhar a nossa condição humana, a nossa fragilidade, e experimentar o sofrimento nas suas mais diversas formas, físicas e espirituais, para nos libertar da condenação desse mesmo sofrimento.
Hoje, Jesus continua a vir ao nosso encontro compadecido, e convida-nos também a ir ao encontro dos nossos irmãos de coração aberto, dispostos a partilhar e a aliviar as suas dores e o seu sofrimento.
Hoje, Jesus continua a convidar-nos a não chorar. Não será a oportunidade e o momento para olharmos o nosso dia e à nossa volta com outro olhar?
 
Ilustração: “Ressurreição do filho da viúva de Naim”, de Eustache Le Sueur, igreja de Saint Roch, Paris.

O icone de Cristo

 
É um dom da graça ver progressivamente em cada homem, além das deformações da queda, um ícone de Cristo. No fundo de todo o ser existe a imagem de Cristo, que subsiste apesar do pecado, apesar da queda.

Arquimandrita Syméon


Ilustração: Abóbadas góticas do antigo Paço Real e Colégio dos Jesuítas de Santarém.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Eu não sou digno que entres em minha casa. (Lc 7,6)

Quando Jesus chega a Cafarnaum alguns membros importantes da comunidade dirigem-se a ele para lhe solicitar ajuda para um servo que estava doente e pertencia ao centurião. Justificando o pedido, pois afinal o centurião é um pagão, dizem-lhe que o homem ama o povo e lhes construiu a sinagoga, pelo que é digno de toda a consideração por parte de Jesus.
Encontra-se Jesus já a caminho da casa do centurião, quando ao seu encontro vem um outro grupo, um conjunto de amigos, para lhe dizer que o centurião não se acha digno da sua visita e por isso mesmo nem se dirigiu a ele pessoalmente.
Apesar disso, desse sentimento de falta de dignidade, o centurião continua a confiar e a esperar a salvação do seu servo. Aliás, manifesta uma confiança na palavra de Jesus, no seu poder, que acredita que mesmo sem entrar em sua casa o Mestre pode curar o servo.
Habitualmente, e assim o texto evangélico nos orienta pelas próprias palavras de Jesus, ficamos focados na fé daquele homem, daquele pagão que acredita mais no poder de Jesus que aqueles que o acompanham e aos quais foi enviado.
Contudo, não podemos deixar de constatar a diferença que se encontra entre a consideração de uns e a consciência do próprio. Enquanto que os anciãos consideram o centurião uma pessoa digna, por aquilo que lhes fez, o próprio centurião não se considera digno da visita de Jesus, da entrada na sua casa.
Para os anciãos de Cafarnaum a dignidade e o valor daquele homem assentava no que lhes tinha feito e proporcionado, na forma como os tratava. Era de certa forma o exterior, o visível, que autorizava e garantia a dignidade.
Pelo contrário, para o centurião as acções não eram significativas, Jesus não necessitava deslocar-se a sua casa, porque a palavra e o seu poder eram capazes de operar a cura necessária. E neste sentido, o centurião manifesta uma fé que não necessita do visível, da acção directa de Jesus.
Estamos assim perante uma situação em que percebemos que a fé é uma dinâmica interior, um processo que provoca movimento sem necessidade de méritos, de compensações exteriores, os quais a maior parte das vezes imobilizam mais que activam.
Percebemos também nesta situação que a fé em Jesus é sempre acompanhada de um processo de conversão, de um reconhecimento de indignidade que é impossível ultrapassar sem a palavra salvadora e libertadora de Jesus. A nossa cura, a vinda de Jesus à nossa casa, começa no exacto momento em que nos reconhecemos indignos dessa mesma vinda.
 
Ilustração: “Centurião de Cafarnaum diante de Jesus”, desenho de Jean-Baptiste Jouvenet.

Os cristãos interessam-se por Cristo

 
Sonho sobretudo com um cristianismo que, como por outro lado tem feito desde as origens, não se interesse por si próprio. São os não cristãos que se interessam pelo cristianismo. E seja para defender o seu papel civilizador ou pelo contrário para nele ver a fonte de todos os males e dos seus contrários, não importa. Os Cristãos interessam-se por Cristo.
Rémi Brague

Ilustração: Cruzeiros à saída da aldeia Madalena. Caminho Português de Santiago, 1 de Julho de 2012.

domingo, 16 de setembro de 2012

Homilia do XXIV Domingo do Tempo Comum

Todos nós já fizemos essa experiência de ter que tomar uma decisão, de ter que fazer uma opção, e sabemos como esses momentos são difíceis, sabemos como são exigentes, pois não podemos ficar com tudo ou continuar na mesma. Optar ou decidir é sempre morrer para alguma coisa e nascer para outra.
O Evangelho de São Marcos que escutámos é um relato de um desses momentos, o relato de um momento de tomada de decisão, de fazer opções, e portanto um momento importante na vida de Jesus, mas sobretudo na vida dos discípulos.  
O próprio desenrolar do Evangelho nos mostra a importância deste momento, pois a partir daqui adquire uma outra densidade, uma outra dramaticidade que se expressa no caminhar de Jesus em direcção a Jerusalém. A partir daqui é como se não houvesse volta atrás.
Por esta razão é importante para Jesus e para os discípulos que fique muito clara a sua identidade e as razões do seguimento. E percebemos, pelas respostas que os discípulos dão relativamente àquilo que os homens dizem de Jesus, que não havia grandes certeza, mas bem pelo contrário uma diversidade de opiniões. Uns pensavam que era João Baptista, outros que era Elias ou ainda algum dos outros profetas.
Perante esta dispersão e diversidade de opiniões, Jesus interroga directamente os discípulos, aqueles que tinha chamado e tinham partilhado da sua intimidade, tinham escutado as suas palavras e testemunhado os seus milagres e os sinais da sua natureza divina. Quem era ele para eles?
É Pedro que dá a resposta, que faz a confissão de fé em Jesus, dizendo que era o Messias, inspirado pelo Espirito Santo, mas marcado igualmente pelas circunstâncias humanas e históricas. E por esta razão, de alguma forma, Jesus não aceita o título que Pedro confessa, Jesus contesta a profissão da fé de Pedro, porque de facto a ideia do Messias de Pedro, e certamente dos outros discípulos e da multidão que seguia Jesus, não era a mesma que se inscrevia na missão que Jesus tinha assumido.
Inevitavelmente Pedro e todos os outros esperavam e acalentavam a ideia de um Messias político, de um libertador do povo, e Jesus sabe que não é essa a sua missão, que as bases do Reino de Deus que tinha anunciado estavam muito longe dessas concepções políticas. Face a este equívoco Jesus apresenta aquilo que o espera em Jerusalém, proclama pela primeira vez o anúncio da sua morte.
Face ao vivido na Galileia e ao confronto entre a liberdade que defendia e as práticas legais defendidas pelos escribas e fariseus, Jesus sabia que a sua morte era inevitável, que a sua missão passava também por essa experiência violenta e dolorosa e que os discípulos deviam estar preparados para a viverem e aceitarem. A recusa dos homens aos quais era enviado como Messias não deixava outra alternativa.
A contestação de Pedro ao anúncio de Jesus do que o espera em Jerusalém não é assim nada de estranho, mas pelo contrário algo perfeitamente humano e natural, uma manifestação das verdadeiras aspirações dos discípulos e também de todos nós, alcançar o que desejamos sem sofrimento, sem necessidade de grande esforço.
E é perante esta contestação que Jesus apresenta o programa de seguimento radical pelo qual é necessário optar. Jesus não pode ser mais claro na apresentação, e ainda que possamos admitir que a referência à cruz é uma construção do redactor do Evangelho, não podemos deixar de ter presente que alguns anos antes, após a morte de Herodes o Grande, um tal de Judas Galileu, considerado por muitos como Messias, havia encabeçado uma revolta contra os romanos e havia terminado numa cruz.
Jesus confronta assim os que o querem seguir com o fim que os pode esperar, Jesus previne os discípulos dos riscos que acarreta o seu seguimento, os quais hoje como naquela hora não podemos deixar de ter presentes nem deixar de assumir. Seguir Jesus Cristo implica obrigatoriamente aceitar a cruz, carregar com a cruz.
Na medida em que nós procuramos viver a nossa fé através das obras, em que procuramos contextualizar a fé em acções concretas e quotidianas, como nos desafia a Carta de São Tiago, percebemos e vamos experimentando como o aviso de Jesus é bem verdadeiro e incontestável.
De facto, na luta pela verdade, pela justiça, pela salvaguarda dos direitos e da dignidade dos nossos irmãos, pela qualidade de vida que nos é devida, experimentamos a contestação, a crítica, a oposição e muitas vezes o combate aberto, encontramo-nos muitas vezes com contestatários como Pedro que apenas têm em mente os interesses do poder e do lucro.
Diante de tais situações cumpre tomar consciência da cruz, da sua inevitabilidade enquanto seguidores de Jesus, mas igualmente da fé manifestada por Isaías quando diz que o Senhor vem em nosso auxílio e não nos deixará envergonhados. De facto, necessitamos uma convicção teológica, uma confiança bem alicerçada em Deus e na sua capacidade de acção, para enfrentarmos a cruz da fidelidade à missão de Jesus.
Procuremos pois seguir Jesus como verdadeiros discípulos, aceitando que tal seguimento implica morrer para alguma coisa, possivelmente um pouco do nosso egoísmo, mas também nascer para um mundo novo que é possível com as nossas boas obras e a graça de Deus.
 
Ilustração: “Crucifixão com Santa Catarina, São Domingos e outros Santos”, desenho de Fra Bartolomeo, Museu de Belas Artes de Marselha. 

 

A deificação possivel

 
Plenamente Deus e plenamente homem, Cristo, capaz enquanto homem de transportar em si a plenitude da divindade, revela-nos que é possível nas capacidades da natureza humana receber-se esta plenitude da divindade, ser marcado pelo esplendor da Glória divina. No Monte Tabor é esta deificação do homem que é anunciada.
Arquimandrita Syméon

Ilustração: Cruzeiro em frente à Capela de Santa Marta em Bertola. Caminho Português de Santiago, 3 de Julho de 2012.

sábado, 15 de setembro de 2012

Mulher eis o teu filho (Jo 19,26)

Junto à cruz de Jesus encontrava-se sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria mulher de Cléofas, e Maria Madalena. E ao ver a sua mãe e o discípulo predilecto, também ali presente, Jesus disse a sua mãe: Mulher eis o teu filho.
Podemos imaginar, ou nem tanto, a dor da Virgem Maria diante destas palavras de Jesus, uma dor dupla porque inevitavelmente obrigava a olhar para o estado em que o filho se encontrava e para aquele que lhe era entregue como filho.
Maria vê o seu filho querido preso na cruz, abandonado por todos, exposto ao sofrimento e à eminência da morte, e ao mesmo tempo um jovem que lhe é entregue como se fosse possível uma substituição. Como é possível substituir no coração de uma mãe um filho perdido?
No coração trespassado pela dor, como se uma espada o ferisse, Maria aceita a troca, aceita a oferta feita pelo filho, sabendo que não se tratava de uma substituição mas de um convite ao acolhimento, a um novo “fiat” da sua parte, ao alargamento do seu coração a outros filhos.
O jovem João é uma nova maternidade, uma maternidade para além do sangue e da carne, da carga genética, é uma maternidade fundada no acolhimento do outro enquanto filho e enquanto irmão naquele mesmo Jesus que regressa ao seio do Pai.
O novo filho entregue a Maria é assim a abertura à herança, a possibilidade do desaparecimento do sentimento de orfandade para os seus discípulos. Jesus já lhes tinha dito que não os deixaria sós, que lhes enviaria o Paráclito, mas ao entregar o discípulo predilecto a sua mãe torna visível esse desejo de não abandono.
Jesus entrega através de João todos os discípulos, e portanto a Igreja, ao cuidado da sua mãe, à atenção e ao amor daquela que sempre soube estar ao seu lado, que soube esperar, que acreditou apesar da incerteza.
Para cada um de nós fica o conforto, a confiança da protecção e do olhar materno de Maria, mas também o convite e o desafio a olhar para além das perdas e da morte, a acolher a novidade que se possibilita ao largo e ao lado do vazio do perdido.
 
Ilustração: “Crucifixão”, de Evgraf Semenovich Sorokin, Russia.

O amor que é fruto do Espirito

 
O amor dos inimigos não é uma disposição psicológica natural do homem, é o fruto do Espirito Santo agindo em nós. Se depois de uma experiência “espiritual” não estivermos repletos deste amor pelos inimigos, é sinal que esta experiência não procedeu de Deus.   
Arquimandrita Syméon

Ilustração: Papoilas no jardim do Convento de Santo Tomás de Ávila.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Décimo Aniversário da Profissão Religiosa

Faz hoje dez anos que, depois de um ano intenso de noviciado, cinco jovens professavam religiosamente na Ordem dos Pregadores no Convento de Santo Tomás de Sevilha.
 
Eram eles frei Henrique Casellas Sanhuja, da Província de Aragão, frei Félix Hernández Mariano e frei Jorge Fernandes Oliveira, da Província da Bética, frei César González Villar, da Província de Espanha, e eu próprio, da Província de Portugal.
 
Foi um dia de muitas emoções, muita alegria, muito carinho, de profunda amizade, um testemunho vivo das palavras bíblicas “vejam como eles se amam”. Foi também um dia de despedida, pois na manhã seguinte regressava a Portugal para continuar a formação enquanto os meus outros companheiros seguiam para Valência.

As fotografias testemunham a felicidade do momento e a cumplicidade que tínhamos construído ao longo de um ano de vida juntos. Os encontros e desencontros, as diferenças e a sua aceitação, a compreensão do irmão e das suas dificuldades, a capacidade de esperar e a paixão que todos tínhamos pelo legado de São Domingos forjaram em nós essa cumplicidade.
 
Hoje e tal como nesse dia dou graças a Deus por ter tido a bênção de um noviciado com companheiros tão excepcionais. Certamente outros dirão o mesmo do deles, certamente cada noviciado é único, mas desculpem-me a imodéstia, o nosso foi verdadeiramente único.
 
Agradeço a Deus e a cada um de vós, Henrique, Félix, Jorge e César. Guardo-vos na memória e no coração. E onde cada um esteja agora, seguimos caminhos diferentes, que o Senhor nos ilumine para testemunhar a mesma alegria e a mesma amizade que soubemos viver.
 
Ilustração:
Fotografia 1 – Na Primeira fila: Frei Jorge Oliveira, Padre Herminio Castaño, frei César Villar.
Segunda Fila: frei José Carlos, frei Henrique Casellas e frei Félix Mariano.
Fotografia 2 – Frei Jorge, frei José Carlos, frei Henrique, frei Félix e frei César.

Exaltação da Santa Cruz

No dia da Festa da Exaltação da Santa Cruz, o Comentário de São Tomás ao Evangelho de São João deixa-nos algumas sugestões bem interessantes para vivermos este dia e esta Festa de uma forma mais consciente da sua dimensão e significado.
 
O facto que Cristo tenha levado a sua cruz, se é para os ímpios e os descrentes um grande motivo de escárnio, é contudo para os crentes e para os homens piedosos um grande mistério. ‘A linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas para aqueles que se salvam, para nós é, poder de Deus’ (1 Cor 1,18).
 
Cristo transporta a sua cruz como um rei o seu ceptro ao peito da glória que é o seu poder universal sobre todas as coisas. ‘O Senho reina. Ele recebeu o poder sobre os ombros, e será chamado conselheiro maravilhoso, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da Paz’ (Is 9,6).
 
Ele a transporta como o vencedor transporta o troféu da sua vitória. ‘Despojando os principados e as autoridades conduziu-os cativos com bravura, triunfando sobre eles por si próprio’ (Col 2,15).
 
Ou ainda como um doutor que transporta o candelabro no qual deverá ser colocada a vela da sua doutrina, porque a linguagem da Cruz é poder de Deus para os crentes. “Ninguém acende uma lâmpada para a colocar sob o alqueire, mas para a colocar no candelabro para que todos vejam a sua luz’ (Lc 11,33)."
 
Para São Tomás a Cruz é assim o candelabro onde é colocada a luz que é o próprio corpo de Cristo, e a crucifixão uma lição de iluminação.
Contemplando a Cruz de Jesus procuremos a luz que dela se desprende e pode iluminar a nossa vida em todos os seus desafios.
 
Ilustração: Cristo na cruz com São Domingos e Santa Catarina de Sena, de Anthony van Dyck.

A vocação do homem

 
São Basílio diz que “o homem é uma criatura que recebeu a ordem de se tornar Deus”. A verdadeira vocação do homem é de participar da vida de Deus pela graça.
Arquimandrita Syméon

Ilustração: Caminho entre a Ponte das Febres e a aldeia de Madalena. Caminho Português de Santiago, 1 de Julho de 2012.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Nova Carta de frei Francisco Rendeiro defendendo a Escola Apostólica de Aldeia Nova

No seguimento da divulgação da Carta que frei Francisco Rendeiro escreveu ao Superior frei Tomás Videira em defesa da Escola Apostólica em Aldeia Nova no ano de 1943, aquando da sua instalação, apresentamos uma outra Carta de frei Francisco Rendeiro em defesa também da Escola Apostólica em Aldeia Nova, desta feita em 1947.
Uma vez mais se testemunha a defesa da Escola Apostólica, graças à qual pôde sobreviver ao desaire que de facto se veio a verificar no Colégio Gil Vicente.
23 de Janeiro de 1947
Reverendíssimo Senhor Padre Tomás Videira
Acabo de receber a carta de Vossa Reverência que muito agradeço. Como por ela depreendo que Vossa Reverência está resolvido a hipotecar o que nós temos em Aldeia Nova para contrair um empréstimo para o Colégio Gil Vicente e até já deu ordem para que me fossem remetidos os impressos para proceder a essa hipoteca, venho dizer a Vossa Reverência o que em consciência julgo dever dizer-lhe. Falei no caso aos Padres que aqui estão (Padre Estêvão e Padre Clemente) que são do mesmo parecer que eu e me aconselharam a que escrevesse a Vossa Reverência e prontificaram-se mesmo a assinar a carta.
Vossa Reverência nunca me pediu o meu conselho sobre este assunto, nem tinha que o pedir; apenas me comunicou o que resolvera. Mas permita-me que lhe fale com toda a franqueza. Acho muito arriscado o que Vossa Reverência vai fazer e tenho escrúpulos de consciência em fazer o que Vossa Reverência me pede.
Hipotecar a única coisa que temos para obter dinheiro para uma obra que não é nossa e cujo futuro é tão incerto, é expormo-nos a ter que vir amanhã para a rua, ficando sem dinheiro e sem casa (o que se poderia dar muito bem no caso de um fracasso do Colégio). Tenha a certeza de que o Padre Geral não aprova o Colégio da maneira como as coisas estão feitas; e porque se não há-de esperar então que ele venha para adiantar essas coisas? Se se tratasse de hipotecar isto para comprar melhor no Porto ou em qualquer outro sítio era outra coisa.
Estou convencido de que Vossa Reverência vê bem o que eu digo, mas vê também o adiantamento que tomaram as coisas do Colégio e não ousa arrepiar caminho. Ora não valerá mais um desgosto agora que outro muito pior mais tarde? Lembre-se Senhor Padre Tomás que no Colégio há uma sociedade e que a nossa cota fica em nome de um religioso e que não sabemos o que dará uma obra na qual em verdade temos tão pouca parte (apenas um Padre que está a fazer o papel de um Ecónomo).
Oxalá que eu me engane, mas receio muito que nos estejamos a encravar.
Longe de mim o querer desobedecer e por isso se Vossa Reverência manda faço-o. Ignoro a opinião dos Padre daí a tal respeito – os de cá (pelo menos os que acima enumero e são todos os que estão agora em casa) são de parecer contrário. Repugna-me em consciência fazer uma coisa cujos resultados me parecem tão fuscos sem saber se o Padre Geral está informado da verdadeira situação. Achamos todos muito boa a ideia do Colégio mas de maneira nenhuma como se está a fazer.
Vossa Reverência desculpará a liberdade com que lhe falo e fará como entender. O que eu pretendo é tão somente que amanhã se se reconhecer que foi um erro não se possa dizer que ninguém o viu e ninguém o procurou fazer ver ao Superior. E se tiver sido um passo acertado não ficaremos com remorsos por termos nós errado.
Creia-me sempre súbdito obediente em São Domingos.
Frei Francisco Rendeiro
 
Assinaram também os Padres Estêvão e Clemente. O Padre Lourenço, ausente em Fátima, quando teve conhecimento aprovou plenamente esta carta e disse que ia telegrafar no mesmo sentido.
PS. Acabo de receber a papelada, mas nada farei sem ordem renovada de Vossa Reverência e muito estimaria que tivesse connosco um entendimento oral.    
 
Ilustração: Rosto da Carta de frei Francisco Rendeiro para o frei Tomás Videira.
 

 

Digo a vós que me escutais. (Lc 6,27)

É a seguir ao momento da eleição dos doze Apóstolos e do encontro destes e de Jesus com a multidão vinda de todas as partes, que São Lucas nos apresenta o discurso das Bem-Aventuranças e da chamada “regra de ouro”, ou seja, o mandamento do amor aos inimigos e de fazer o bem sem nada esperar em troca.
Neste contexto poderíamos dizer que se trata do programa de vida daqueles que Jesus escolheu, um programa de vida de forma a poderem cooperar com a missão a que tinham sido associados por Jesus.
Contudo, não podemos também deixar de assumir que desde o primeiro momento e até hoje, até à experiência de cada um de nós, este programa esbarrou e esbarra nos limites da nossa condição humana, nas nossas fragilidades e desejos de poder ou propriedade.
Por esta razão, e também ao longo da história e da nossa história pessoal, nos acusamos e nos acusam de estarmos a viver de uma forma contraditória este mesmo programa, ou de não o estarmos a viver ou termos vivido.
Tal crítica e tal condenação resulta do facto de concebermos e conceber-se este programa de vida como um programa político ou social, como um manifesto revolucionário que alterará completamente a sociedade e a forma como ela está organizada.
No entanto, para que tal aconteça temos que partir da dinâmica que está intrínseca ao programa que Jesus estabelece, porque se deve acontecer uma revolução política ou social é na sequência da revolução pessoal e interior que deve ocorrer antes de mais.
De facto Jesus não deixou um programa político, mas um programa de conversão, um processo de desenvolvimento interior que garante o acesso à liberdade de filhos de Deus, e consequentemente à construção do Reino de Deus. Não é bons políticos ou bons administradores sociais que Jesus nos convida a ser, mas misericordiosos como o Pai é misericordioso.
E neste sentido as nossas falhas e debilidades, as nossas misérias, são um potencial acrescentado a este processo, pois dão-nos a dimensão da misericórdia que podemos e devemos viver, uma vez que as faltas do outro e o perdão possível são também as minhas faltas e o perdão que espero.
Jesus diz-nos hoje, como disse naquele dia aos seus discípulos, que há um caminho a trilhar, uma conversão a operar, e na medida em que a tentarmos viver nas nossas limitações e na confiança da acção de Deus, estamos a revolucionar o mundo, a fazer um mundo melhor com o que de melhor temos.
Escutemos a voz de Jesus que nos convida e alenta.
 
Ilustração: “Rosto de Cristo”, de Nikolai Andreevich Koshelev. Russia

Humildade como caminho

 
É o orgulho que nos faz sucumbir nas armadilhas das paixões. Inversamente, a humildade é o caminho que conduz à salvação, é ela que abre o coração à graça divina e permite que permaneça no homem.
Arquimandrita Syméon

Ilustração: Claustro do Noviciado, Convento de Santo Tomás de Ávila.