quinta-feira, 31 de março de 2011

O reino divido acaba em ruínas (Lc 11,17)

Os relatos dos diversos acontecimentos da vida de Jesus que encontramos nos Evangelhos mostram-nos que não teve uma missão fácil, que teve até bastantes dificuldades em fazer-se entender, tanto aos companheiros que tinha escolhido e que privavam da sua intimidade como àqueles que vinham ter com ele no sentido de obterem um sinal, algo que o confirmasse como o Messias que eles desejavam.
A cura do homem possuído por um demónio mudo, e a admiração da multidão, bem como a solicitação de mais um sinal por parte de alguns dos presentes, mostram-nos uma faceta dessa dificuldade, a incompreensão dos sinais apresentados face à expectativa de outros sinais, de algo ainda mais extraordinário para ser evidente. Há assim um desencontro entre os sinais que Jesus apresenta para manifestar a sua pessoa e a presença do Messias esperado, e os sinais que a multidão espera, deseja, de alguma forma opostos e portanto inviabilizadores da visão e total compreensão dos sinais apresentados por Jesus.
É neste desencontro e face aos pensamentos e conjecturas sobre a fonte do poder para realizar as curas e milagres que Jesus opera, que aparecem estas palavras de que qualquer reino dividido contra si mesmo acaba em ruínas. Não são palavras extraordinárias, bem pelo contrário, uma constatação de uma realidade que a história e as lutas humanas nos confirmam. Qualquer reino que se divide e luta internamente acaba mais tarde ou mais cedo em ruínas. As notícias diárias patenteiam-nos esta mesma realidade e destruição.
Contudo, as palavras de Jesus não podem ser lidas exclusivamente nesta acepção histórica ou politica, porque elas são uma profunda chamada de atenção a ter em conta enquanto aplicadas a cada um de nós, enquanto referidas à nossa própria realidade humana e possibilidade de divisão interna. Ou seja, enquanto duplicidade, incoerência na nossa vida, enquanto possibilidade de esquizofrenia mental e espiritual.
De facto o nosso reino, a nossa personalidade pode sofrer esta duplicidade, este confronto de interesses, chegando por vezes à necessidade de tratamento psiquiátrico ou terapêutico. Mas também a nossa vida espiritual, o outro nosso reino, onde a duplicidade de critérios, a incoerência e a infidelidade, as tentativas de equilíbrio e equidade face aos compromissos e valores assumidos e as solicitações do mundo nos levam a uma divisão e a uma luta constante e à consequente ruína.
Jesus é ainda mais claro relativamente a este perigo quando nos diz que não podemos servir a dois senhores, que há realmente um perigo na divisão, mas é também claro quando nos diz que esta vida não deixa nunca de ser um combate, afinal uma luta entre dois opostos.
Estamos assim num impasse, numa circunstância da qual pelas nossas próprias forças não somos capazes nem podemos libertar-nos. E por isso é que Jesus termina este episódio e discussão dizendo que quem não está com ele está contra ele e quem não junta com ele dispersa. A divisão intrínseca que sofremos, e pode ser aumentada ou diminuída, tem na união com Jesus a superação, o paliativo para a correcção saudável.
Unidos a Jesus podemos verdadeiramente encetar a luta contra a divisão, contra os contrários que nos atraem porque nessa união auferimos as forças necessárias para o combate. Unidos a Jesus temos a garantia da viabilidade de uma unidade, porque verdadeiro homem e verdadeiro Deus experimentou as nossas dificuldades e o mesmo combate, e vencendo-o ensinou-nos e ajuda-nos também a vencê-lo.
Não é fácil, porque nos habituámos a estar no fio da navalha ou sentados encima do muro, mas temos que fazer uma escolha, quer seja a favor ou contra, porque de contrário terminaremos verdadeiramente em ruínas. E também temos que pedir a Jesus que a nosso lado nos sustente no combate que inerentemente fizermos pela união com ele, para não desfalecermos nem desanimarmos face às dificuldades e aos opositores.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Não vim revogar mas completar (Mt 5,17)

Algumas palavras de Jesus encostam-nos à parede, fazem-nos cair na conta de que ser discípulo e ser cristão não é um devaneio, não é uma brincadeira, não é uma questão de sensibilidade ou mera disposição do coração. Palavras como as de hoje, “não vim revogar a lei mas completá-la”, mostram-nos que não basta o amor, não basta apenas a nossa disposição, é necessário um compromisso, um exercício concreto e comum do mandamento do amor, que se aproxima bastante do legalismo na forma exigente como nos é apresentado por Jesus.
Porque de facto podemos manter-nos numa posição bastante vaga, etérea, ideológica, no que diz respeito ao cumprimento do mandamento do amor, podemos até fazer como que uma selecção do que nos é mais próximo e agradável na amplitude do mandamento e portanto limitamo-nos a viver apenas essas dimensões.
Jesus chama-nos a atenção para a radicalidade do mandamento do amor e de como ele se traduz em realidades muito concretas, em outros mandamentos e preceitos que fundamentam a sua razão e a sua praxis nesse mesmo mandamento do amor. Por isso nos diz que nenhum sinal da lei será retirado, que nenhuma letra deixará de estar em vigor, uma vez que cada uma e cada um concretizam a realidade primordial.
A arbitrariedade na vivência dos mandamentos, a escolha selectiva do que nos propomos viver, manifesta o orgulho do homem e essa tendência de ajuizar sobre tudo e sobre todos, a tendência independentista e egocêntrica que encontramos já estampada no nosso primeiro pai e na sua escolha face ao mandamento divino de não comer do fruto da árvore do conhecimento e da ciência.
Esta arbitrariedade apresenta-se como nos antípodas do que verdadeiramente é desejado com a concepção dos mandamentos, que não são cargas escravizantes, formas de subjugação ou alienação da liberdade e autonomia, mas um mapa de tesouro, um guia de caminhada que nos leva à felicidade, uma habilitação de herdeiros.
E isto torna-se mais claro quando lemos os mandamentos, quando os interpretamos e vivemos, à luz das palavras de Jesus, que nos diz que sabemos das coisas, neste caso dos mandamentos, não como servos mas como amigos e filhos. Ou seja, sabemos, ou devíamos saber, das razões íntimas e intrínsecas de tais leis, preceitos, mandamentos.
Por isso a observância dos mandamentos, a busca da sua vivência quotidiana não é um acto servil, opressor, mas verdadeiramente um acto de libertação e filiação, um conformar-se de forma enquadrada com a vontade do Pai, no sentido da condição de herdeiros que somos e da herança que nos está prometida e também próxima na medida da nossa conformidade cada vez maior.
Neste sentido não podemos deixar de pedir a Deus que nos ilumine cada vez mais o coração e nos fortaleça a vontade na fidelidade aos seus mandamentos, não porque buscamos um salário merecido pelo nosso cumprimento obediente, mas porque aspiramos a fruir a herança que é Ele próprio.

terça-feira, 29 de março de 2011

Perdoar sete vezes? (Mt 18,21)

É Pedro que coloca esta questão a Jesus e, face a outros dados que encontramos nos Evangelhos sobre Pedro e o seu temperamento, é fácil perceber que a questão deve ter surgido em virtude de alguma discussão com qualquer outro discípulo. Depois de tantos encontros e desencontros, de tantas desculpas, Pedro vem ter com o Mestre já cansado e impotente para uma vez mais perdoar, procurando uma resposta para a dificuldade em que se encontra.
Podemos imaginar que Pedro colocou a questão quase em segredo, como não querendo agravar ainda mais a situação, mas buscando uma resposta que afinal fosse ao encontro do seu desejo de satisfação, o respaldo do Mestre para uma atitude violenta que já considerava inevitável e justa.
Face a esta situação, Jesus lança a Pedro a resposta desafiante da necessidade do perdão infinito, de se perdoar o outro até setenta vezes sete, porque só dessa forma se pode verdadeiramente viver o perdão e alcançá-lo. Não há nem pode haver um limite para o perdão, uma fasquia a partir da qual o perdão pode ser trocado pela vingança, pode dar lugar ao extravasar dos sentimentos feridos e das frustrações. Se vivemos o perdão dessa forma rapidamente chegamos ao limite porque é sempre muito baixa a fasquia que estabelecemos face ao nosso orgulho ferido e à nossa dignidade ofendida.
A proposta de Jesus é assim um desafio à nossa liberalidade, magnanimidade, à nossa misericórdia, mas é também um reconhecimento da liberdade do outro, da necessidade de reconhecermos no outro a possibilidade de conversão, de erro de que se pode corrigir, mas sobretudo de um outro que também Deus acompanha e portanto nos convida a olhar com outros olhos.
E este olhar diferente é ainda mais exigente na medida em que, como nos conta a parábola, já fomos objecto de perdão, de gestos de misericórdia e compaixão por parte de outrem, pela parte de Deus. Se no seu amor Deus foi capaz de reconhecer em nós o desejo de mudança e aceitar essa possibilidade com tudo o que ela tem de fragilidade, também nós somos convidados a reconhecer no outro os seus limites e fraquezas confinantes ao mesmo desejo de fazer melhor e diferente.
E juntos poderemos chegar lá, na liberdade e no respeito pelas diferenças, na partilha do que nos une no caminho que cada um trilha pessoalmente com Deus.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Jesus passando por eles seguiu o seu caminho (Lc 4,30)

O regresso de Jesus a casa, à sua terra de Nazaré, não foi um acontecimento pacífico, satisfatório. Afinal era o regresso ao clã daquele que a todos tinha exposto, que a todos tinha envergonhado com as suas atitudes e comportamentos. Era o regresso do louco ou daquele que muitas vezes tinham considerado possuído pelo demónio.
E agora, ali no meio deles, atira-lhes à cara que nenhum profeta é bem recebido na sua terra, que qualquer profeta é um incompreendido por aqueles que lhe são mais próximos. Que é difícil à família aceitar a diferença e os caminhos que os outros seguem e não se enquadram no esperado e nas expectativas, mas não há outro processo se não aceitar e compreender, partilhar também dessa diferença arriscando o amor.
Perante a afronta, e o desafio da aceitação compreensivel da diferença, a resposta violenta, a tentativa de o precipitarem do alto do monte. Só a morte, e a morte às suas mãos, poderia limpar a mancha lançada sobre a família e o clã. Eles tinham o direito de pôr um fim àquele desvario e restabelecer a ordem ancestral entre eles.
No alto do monte Jesus liberta-se, pois ainda não chegou a sua hora e não compete àqueles homens exercer a justiça, não é ainda o tempo da morte. Ou melhor, é ele que dá a vida e não são os outros que lha tiram, não é esta multidão que o pode reter assim como não será a morte que o poderá prender.
E passando pelo meio deles Jesus segue o seu caminho, regressa ao seu grupo de discípulos e à sua missão junto do povo, retoma o caminho em direcção à cidade onde habitam aqueles que terão o poder de receber a sua vida entregue por amor.
Ao passar pelo meio deles Jesus não lhes volta as contas, como também não nos volta as costas a nós. Poderíamos ter essa tentação ao darmo-nos conta que ele passa e segue, que muitas vezes também nós o tentamos agarrar mas ele parece escapar-se nos, não se deixa prender.
Ao passar e ao seguir adiante Jesus coloca-se em caminho, faz-se caminho para aqueles homens e para nós, mostrando-nos que apesar das nossas recusas e indiferenças, do nosso não reconhecimento, ele segue em frente, não desiste e espera apenas que no seu rastro sigamos nós também, por curiosidade de comadres do soalheiro, ou então como a amada do “Cântico dos Cânticos” atraídos pelo perfume dos seus amores, enamorados da sua boca só doçura.

domingo, 27 de março de 2011

Hino de Louvor

Como te cantar, como te louvar…
Na escuridão da noite a luz trémula
da vela que ao vento oscila.
No silêncio do quarto o canto
em eslavónico ortodoxo.
E a paz, e a alegria, e o amor,
o fim do dia.
E a sede de estar contigo, nos teus braços.
Nada mais, apenas estar contigo.
As mensagens, as chamadas e os correios,
os abraços e os cumprimentos,
os amigos, os irmãos e a festa,
as presenças e as ausências,
tudo foi, já é passado, o dia.
Agora estar contigo, presente, à noite.
Mergulhar na voz desconhecida que evola,
arder de desejo em fogo rubro,
tremer de amor em chama acesa.
Fazer-me todo aqui, corpo e alma,
oferta trazida ante o altar.
O meu canto, o meu corpo
O meu louvor, o meu silêncio
Estar contigo. Nada mais.

Homilia do III Domingo da Quaresma

A caminho de Jerusalém uma passagem pelas terras da Samaria, um caminho diferente feito por opção, pois para se chegar a Jerusalém havia um outro caminho, mais fácil e mais rápido. E nessas terras da Samaria uma paragem junto ao poço de Jacob, pois era meio-dia, o calor apertava e as forças já não eram muitas.
Aquele era o lugar ideal para repousar da caminhada e também a hora certa, pois para além da frescura e da sombra só mais ao final do dia os rebanhos viriam para matar a sede e as mulheres da aldeia viriam colher a água necessária para a casa. Tudo se propiciava para um momento tranquilo e de sossego.
É com esta mesma consciência e desejo que a samaritana vem ao poço àquela hora, hora pouco comum para se apanhar água e portanto pouco provável de se encontrar alguém junto dele, pelo que o dar de caras com aquele jovem judeu a provoca numa resposta quase sarcástica ao seu pedido de água. Ela não esperava encontrar alguém.
Como é possível que sendo tu judeu me pedes de beber? Como é possível que abdiques da pureza da tua fé ortodoxa para me falares? Afinal a sede que te corrói o corpo leva-te a conversar com aquela que em outra situação considerarias herege e à qual não dirigirias a palavra. Hipócrita, que não mereces a água que pedes.
Não lhe podia responder de outra forma, uma vez que ele lhe tinha frustrado os planos e desejos de solidão, e sabendo como se opunham e rivalizavam os dois povos face ao local de culto de Deus. Ele era um obstáculo, ele era mais um empecilho à sua relação com Deus, pois também pertencia ao grupo daqueles que defendia um outro local de culto, distante da sua porta e proximidade.
A resposta da samaritana é o eco de uma polémica, de uma querela extremamente importante entre os dois povos, judeu e samaritano, mas mais que isso é o reflexo de uma outra querela muito mais fundamental e que se prende com a prática religiosa e os ritos de culto e seus locais.
Por isso a resposta de Jesus à questão sobre o templo e o culto, o local mais propício, é uma verdadeira revolução, tem um significado decisivo para a forma de ser cristão, de se prestar culto a Deus e de se estabelecer uma relação com ele, porque tudo se deve fazer e fundamentar no espírito e na verdade.
A religião concebe-se habitualmente como um conjunto de preceitos, de regras e leis que regulam a relação do divino com o homem e do homem com o divino. É necessário um cumprimento fiel dessas regras e ritos para que sejam válidos e validada a relação, que jamais pode ser posta em causa, condicionada ou discutida. A religião exige uma submissão cega e incondicional.
O conjunto de preceitos e leis aparece assim não só como uma forma de venerar o deus de que se espera um beneficio, uma protecção, mas também como um garante de tranquilidade, de uma resposta segura e eficaz face às questões que todos transportamos sobre o principio e o fim e a natureza da nossa existência.
Ao dizer à samaritana que com a vinda do Messias se espera e desejam adoradores, homens e mulheres crentes, em espírito e verdade, Jesus inverte a fórmula da concepção religiosa e assim ao medo e à obediência cega contrapõe-se a consciência e a liberdade. Os verdadeiros adoradores de Deus fazem-no conscientemente e em liberdade.
À lei e à sua submissão contrapõe-se a verdade, porque a verdade libertará aquele que acredita, a verdade é sempre um caminho de libertação. À certeza e ao definitivo de uma concepção cerrada e fundamentalista contrapõe-se a busca, o questionamento das razões porque todo aquele que procura encontrará e todo aquele que bater à porta se lhe abrirá. À quietude e à tranquilidade contrapõe-se a sede e o desejo porque todos os que tiverem sede e fome serão saciados, quer seja fome de justiça, ou sede de verdade e de amor.
À escravidão cega e desumana contrapõe-se a liberdade dos filhos porque já não somos servos uma vez que sabemos o que faz e fez por nós o nosso senhor e pai. À observância restrita das regras e preceitos contrapõe-se o amor, uma vez que o nosso Deus não quer sacrifícios mas misericórdia.
Dois mil anos de história mostram-nos que trilhámos caminhos a maior parte das vezes distantes desta concepção, mais fundamentados na formula pré cristã que nas palavras de Jesus, mais construídos sobre o medo e os preceitos que na liberdade e no amor, no espírito e na verdade.
Contudo, e apesar da história e dos seus desvarios, o encontro da samaritana com Jesus à beira do poço de Jacob e as palavras de revelação estão aí, são irrevogáveis, inalienáveis, e continuam a questionar-nos sobre as nossas divisões e dissenções, sobre a forma como fundamentamos e desenvolvemos a nossa relação com Deus. Elas são um desafio a todo o tipo de ídolos, a toda a ideologia e a toda a idolatria, pois confrontam-nos com a necessidade de nos constituirmos e relacionarmos em espírito e verdade, com Deus e com os outros homens que buscam um fim significativo.
Que o Senhor nos ilumine o espírito e o coração para que descubramos como a samaritana e os samaritanos, a quem ela anunciou o possível Messias presente entre eles, que há muito mais de Deus e da sua salvação para além do que intuímos e encerrámos nas nossas concepções preceituadas e tranquilizadoras.

sábado, 26 de março de 2011

E eu aqui a morrer de fome! (Lc 15,17)

É de todos nós conhecida a parábola do Filho Pródigo e depois que Henri Nouwen a meditou e comentou a partir do quadro de Rembrandt pertencente às colecções do Museu do Hermitage, tornou-se ainda mais conhecida, ou pelo menos em alguns círculos objecto mais frequente e aprofundado de meditação.
Regressar a ela é portanto um exercício arriscado, uma possibilidade de pelágio ou imitação, mas um exercício necessário quase quotidianamente para não nos perdermos da misericórdia de Deus ali revelada tão magnificamente.
E neste regresso fazemos uma paragem na consciência do filho que abandonou a casa, na circunstância em que se encontra de fome depois de ter desbarato e perdido tudo o que tinha reclamado de seu pai.
É uma situação constrangedora, de alguém que teve tudo, todas as possibilidades, e agora se vê reduzido a um servo de outro senhor, obrigado a guardar os animais menos dignificantes e a nem sequer poder comer das alfarrobas com que se alimentavam os bichos. Na casa de seu pai quanta riqueza, quanta fartura, quanta dignidade e respeito e ele ali a morrer de fome, escravo de um senhor que nem o direito ao alimento lhe reconhece.
Podemos assumir que a fome que o jovem filho sente é antes de mais a fome física, a necessidade física de alimento. É também aquela que mais nos provoca, nos perturba, e nos leva a determinadas atitudes, algumas vezes irreflectidas ou compulsivas. A fome move-nos. Contudo, há outras fomes e mais intrínsecas ao nosso viver, ao nosso bem-estar, e das quais muitas vezes temos consciência mas pelas quais não arriscamos um passo, um gesto, um compromisso.
O jovem filho tem fome de alimento, mas tem também fome de dignidade, de reconhecimento da sua pessoa e da sua liberdade, fome de compreensão e de perdão, fome de um abraço e de um colo que o acolha. O jovem filho tem fome do amor, desse amor que o pai sempre lhe votou, mesmo quando ele lhe pediu a sua parte da herança e partiu, deixando para trás o pai e o irmão mais velho.
E por isso a morte, esse sentimento de perigo, pois longe do pai, privado da sua dignidade de filho, afastado do reconhecimento, sem amor, é um homem votado à condenação, ao desaparecimento e à morte sem ter ninguém que o chore ou recorde. É urgente voltar à casa do pai, ainda que tendo perdido todos os direitos, até mesmo o da filiação.
E eu aqui a morrer de fome, também eu, cada um de nós, quase inânimes, mas ainda sem coragem e sem convicção para encetar o caminho de regresso à casa do Pai e à satisfação possível de todas as nossas fomes. Apesar delas e da morte que vislumbramos à sua sombra, continuamos a aguentar, a suportar a escravidão a um senhor que não nos reconhece nem nos dignifica, que não nos alimenta mas se alimenta de nós, que nos esvazia e nos considera como mais uma propriedade sua.
E o Pai à espera, de braços abertos, com os olhos postos no caminho, ansioso e expectante, com os vestidos de festa preparados, o vitelo engordado e tudo pronto para que se faça a festa assim que cheguemos.
Parecem sujos, manchados de sangue, esses braços abertos, quase repugnantes e sem qualquer atractivo para que nos lancemos neles; mas como não haviam de estar assim se lutaram com os abrolhos e os silvados do caminho, para que na minha miséria possa chegar a casa sem mais feridas que a da minha dignidade perdida, se branquearam a túnica festiva no sangue do cordeiro, se forjaram nas escórias da humanidade o anel com que me filiará.
E eu aqui, e nós aqui, cheios de fome e sede, prostrados à beira do poço e da mesa do banquete, sem dar um passo, sem esticar a mão, ainda temerosos dos braços abertos manchados por nossa causa.
Que a fome aumente em mim para que te busque Pai e em teus braços me entregue para me transfigurares.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Se não dão ouvidos… (Lc 16,31)

A história que Jesus conta aos fariseus do rico e do pobre Lázaro, que enquanto vivos partilharam realidades diferentes, opostas pelo abismo da falta de fraternidade, e depois de mortos partilham também eles diferentes realidades eternas, seria um óptimo ponto de partida para pensar os chamados “Novíssimos do Homem”, a morte, o juízo, o inferno e o paraíso.
Contudo, a parábola que Jesus conta aos fariseus tem algo mais significativo, algo que nos implica agora nesta vida, e que terá as suas consequências em termos de eternidade, e portanto em termos de novíssimos do homem. Mas como é aqui, e agora que quase tudo se joga é importante que não percamos a oportunidade que Deus nos oferece.
Assim, quando o homem rico, sem nome e sem pátria, portanto podendo ser cada um de nós, pede a Abraão que seja permitido a Lazaro avisar os irmãos do que os espera se não mudarem de vida, a resposta dada é que esses irmãos têm a palavra dos Profetas e de Moisés, e que não será um ressuscitado que os fará mudar de vida.
É uma resposta que parece ter já em conta a incredulidade dos judeus face à ressurreição de Jesus, e que parece desvalorizar a ressurreição, mas mais importante que esse pormenor, digamos, histórico, ou a desvalorização subjacente, o que nos deve chamar a atenção é a natureza e a importância dada à palavra.
De facto, é pela palavra que nos chega a revelação, é também pela palavra que nos é transmitida a boa nova da ressurreição de Jesus, é o Verbo do Pai que se fez um de nós no homem Jesus, e portanto, se não dermos crédito à palavra tudo o mais não nos pode modificar na nossa relação com Deus.
Muitas vezes pensamos que seríamos diferentes, seríamos mais fiéis, seríamos melhores cristãos, mais convictos e mais empenhados, se Jesus se nos revelasse, se nos aparecesse como apareceu aos discípulos depois da ressurreição. É um pensamento ilusório e até uma certa tentação demoníaca porque concebemos Deus e a sua acção como algo de mágico, instantâneo, em que prescindimos da nossa responsabilidade e liberdade e deixamos a Deus todo o poder de intervenção e alteração.
E contudo, Deus não prescinde de nós, nem da nossa liberdade e responsabilidade, e vem ao nosso encontro em cada momento em que nos dispomos a escutá-lo, a abrir-nos à sua palavra. E se por alguma circunstância se revela de uma forma mais intensa, particular, é porque estamos mais atentos e porque a nossa vida se aproxima e conforma cada vez mais com os seus ensinamentos, e porque habita em nós um desejo mais intenso dele mesmo e do seu amor.
Cabe-nos assim a tarefa de estar atentos, de procurar escutar a sua palavra, e mais que pedir revelações especiais procurar o dom da fidelidade e da conformidade à sua palavra de vida e vivificante.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Discutamos as nossas razões (Is 1,18)

De tanto lermos os textos bíblicos, e outras vezes por quase nunca os lermos, muitas vezes passamos pelas palavras da Revelação como cão por vinha vindimada, ou seja, não nos dando conta da novidade e da radicalidade do que nos é dito da parte do Senhor.
E ainda que, o que nos é revelado seja traduzido por palavras humanas, não deixa de ser novidade divina e não deixa de nos mostrar como Deus verdadeiramente é. Neste caso como verdadeiramente é o Deus verdadeiro, porque qualquer outro deus criado à nossa imagem e semelhança não seria capaz destas palavras, deste convite.
Vinde, discutamos as nossas razões”, é o convite que nos é feito pelo Senhor, um convite que mostra a liberalidade de Deus, a sua confiança em nós, nos homens, e a sua capacidade de diálogo, afinal a proposta muito próxima de uma relação de igual para igual.
Qualquer outro deus, um deus menor feito à medida das nossas necessidades não teria esta capacidade, bem pelo contrário seria implacável para justificar a sua divindade, seria subjugador para poder ser deus e reconhecido como tal, imporia os seus fardos e os seus preceitos e leis sem qualquer condescendência, sem qualquer questionamento.
Que alegria e que paz descobrir e dar-se conta de que o Deus verdadeiro que se nos revela ao longo dos tempos e da história dos homens é um Deus que preza o homem, que privilegia a sua dignidade, que reconhece a capacidade de diálogo, que se dispõe a esse mesmo diálogo com o homem, afinal a discutir as razões de uma e outra parte, a dos homens e a sua.
E da discussão das razões, à luz da justiça e do respeito vividos para com os outros, nascerá a libertação, a erradicação dos nossos pecados, manifestar-se-á a misericórdia de Deus que nos conhece e reconhece nas nossas fraquezas e debilidades, nos limites da nossa própria condição de criaturas e filhos propensos à independência e à vadiagem.
Que confiança não deve então reinar no meu coração e no meu espírito sempre que me aproximo de Deus? Como é possível que ainda tenha medo deste Deus que me convida a discutir as razões? Só quem verdadeiramente me ama e me deseja se pode dar a este luxo e a esta liberdade. Senhor que eu saiba apreciar o poder e a dignidade que me reconheces de te dar razão das minhas razões.

terça-feira, 22 de março de 2011

As minhas necessidades…

De que tenho eu necessidade?
Eu não tenho necessidade, sobre a terra, de nada mais que o necessário.
De que tenho eu necessidade?
Tenho necessidade do Senhor, tenho necessidade da sua graça, do seu reino em mim.
Sobre a terra, neste lugar da minha aprendizagem provisória e efémera não tenho nada de próprio, tudo é de Deus e tudo é transitório, destinado ao meu uso provisório. A minha abundância é a indigência dos meus irmãos mais pobres.
De que tenho eu necessidade?
Tenho necessidade de um amor verdadeiro, cristão, vivo, activo. Tenho necessidade de um coração amante, pleno de compaixão para com os meus irmãos. Tenho necessidade de me alegrar pelo seu bem-estar e pela sua prosperidade, necessidade de me compadecer das suas penas e doenças, dos seus pecados e fraquezas, das suas deficiências e desastres, da sua pobreza. Tenho necessidade, por eles, de uma calorosa e sincera simpatia em todas as circunstâncias das suas vidas, para me alegrar com aqueles que se riem e para chorar com aqueles que choram

segunda-feira, 21 de março de 2011

Perdoai e sereis perdoados (Lc 6,37)

Todos os dias chocamos com estas palavras de Jesus e com a dificuldade em lhes ser fiéis. Todos os dias nos damos conta que deixamos muita coisa por perdoar e ainda assim esperamos o perdão, dos outros e de Deus. Todos os dias nos confrontamos com a nossa miséria e a nossa infidelidade e a incapacidade de dar um passo em frente, de perdoar para podermos receber o perdão.
E Jesus é muito claro naquilo que nos diz, não só no equilibro mútuo do perdão dado e do perdão recebido, mas sobretudo e ainda mais nos frutos, para não dizer na recompensa ou compensação, resultante desse perdão dado gratuita e generosamente. De facto, Jesus não deixa de alguma forma de nos aliciar a este perdão, de nos motivar, quando nos diz que a medida que usarmos será a medida que será usada connosco, uma medida bem medida, calcada, transbordante, afinal uma medida que ultrapassa a que tivermos utilizado porque transborda o cálculo enquanto que a nossa é sempre limitada e calculada.
E isto acontece porque no perdão, ou na nossa incapacidade para o perdão, fazemos de facto cálculos, avaliamos a gravidade da ofensa, o desprestígio que sofremos e a nossa vaidade ofendida. Avaliamos o mal sofrido ou infligido segundo os nossos critérios humanos, tantas vezes egocêntricos e avassaladores do outro e das coisas que nos rodeiam.
A proposta de Jesus ultrapassa esta avaliação, não tem sequer em conta a relação face à atitude do outro e muito menos se rege por uma escala do ideal, do perfeito; é a partir de Deus e da medida de Deus que o perdão deve funcionar, que o perdão se deve exercitar. E assim encontramo-nos com esse pedido de sermos misericordiosos como Deus é misericordioso, de nos deixarmos conduzir pela misericórdia de Deus na avaliação que possamos fazer das faltas do outro e do perdão que podemos oferecer ou receber.
Não é fácil, nunca o foi e jamais o será, porque o nosso amor-próprio nos cega mais vezes do que nos ilumina nas nossas misérias e infidelidades, na nossa necessidade de sermos também perdoados. Pelo que necessitamos que a Luz do Senhor venha até nós, nos ilumine nas nossas trevas e nos conceda a graça de reconhecermos as nossas culpas e as nossas faltas e o perdão que nos faz falta. Iluminai-nos Senhor na vossa misericórdia.

domingo, 20 de março de 2011

Homilia do II Domingo da Quaresma

Nesta nossa caminhada quaresmal para a celebração da Páscoa acompanhamos a caminhada física e histórica de Jesus para Jerusalém, e neste segundo domingo da Quaresma passamos pelo alto do monte e pelo mistério da manifestação da glória de Jesus através da transfiguração diante dos apóstolos Pedro, Tiago e João.
É um acontecimento misterioso que se insere na caminhada de Jesus e se contrapõe às palavras que pouco antes tinha proferido aos discípulos no sentido do que o esperava e da dificuldade do seguimento face ao escândalo da cruz. Jesus tinha avisado os discípulos para o que iria suceder, para a sua prisão, para o julgamento e para a morte aviltante na cruz.
Face a tais palavras Pedro, como chefe do grupo, tinha não só manifestado o seu medo e desejo de regressar à Galileia, mas também a disponibilidade para o defender ainda que à custa da lei da força. Diante da necessidade de assumirem a cruz como algo pessoal e inevitável no seu seguimento, como um cálice que teriam que beber, Tiago manifestara igualmente, ainda que certamente inconsciente do que dizia, ser capaz de beber desse cálice com o seu Mestre.
É assim, e face a estas disponibilidades, que Jesus sobe ao alto do monte e se transfigura diante de Pedro, Tiago e João, que não podia deixar de estar presente na medida em que era o discípulo amado. Compreendemos que sendo o discípulo amado era impossível que não estivesse presente, pois também ele necessitava ouvir a palavra do Pai, ser testemunha da revelação do amor do Pai, para poder assegurar aos outros a razão da sua fidelidade e do seu amor.
Pedro é chamado e está presente não só porque é o chefe do grupo, mas sobretudo porque necessita perder o medo, necessita vislumbrar um pouco da glória que os espera, não na Jerusalém para a qual se dirigem, mas para lá de Jerusalém e de tudo o que entregarem pela causa de Jesus. A transfiguração de Jesus diante de Pedro tem o objectivo de alicerçar a sua confiança, a sua entrega mais livre e menos comprometida politicamente. Pedro necessita ver que aquele que vai abandonar e negar cobardemente não é apenas um pobre carpinteiro de Nazaré que ele irreflectidamente seguiu, mas é de facto o filho de Deus que se entrega nas mãos dos homens que não o reconhecem nem o aceitam.
Tiago é também convidado a subir ao monte na medida em que se prontifica a beber o cálice de sangue de que Jesus fala, mas sobretudo porque necessita testemunhar a presença de Moisés e Elias, a dimensão e a glória daqueles que se poderão sentar ao lado de Jesus no seu reino, nesses lugares que ele tinha pedido para si e para seu irmão. Se Moisés representa a lei, a lei que Jesus não veio suprimir mas aperfeiçoar e Elias representa a promessa profética do Messias justo e salvador, representam simultaneamente a vida e a morte, a história e a eternidade, pois Moisés é a figura da história e do povo que morreu sem entrar na terra prometida enquanto que Elias é aquele que não morreu e foi arrebatado ao céu, afinal a terra verdadeiramente prometida para todos. Os lugares disputados por Tiago serão assim daqueles que também tiverem os olhos postos na terra prometida e lhe forem fiéis no cumprimento dos mandamentos, e ele necessita saber isso para ser fiel e beber o cálice.
Os três discípulos são assim testemunhas de uma manifestação que os fortalece no seu seguimento e no seu amor, mas sobretudo são testemunhas de uma glória que poucas vezes é manifestada e se contrapõe à humildade e simplicidade de Jesus.
Porque é esta a imagem habitual de Jesus, uma imagem que se constrói desde o momento do seu nascimento quando não há lugar para ele em nenhuma casa, em nenhuma estalagem e tem que nascer na manjedoura de uma gruta onde se guardavam animais. Por esta razão ele se considera um “sem abrigo”, alguém que não tem nada nem sequer uma pedra onde reclinar a cabeça.
Notamos também esta simplicidade e humildade, a necessidade de passar despercebido, quando depois de todas as curas e milagres proíbe as pessoas de falarem dele, de anunciarem a fonte da graça de que tinham sido objecto. Jesus procura, ainda que algumas vezes infrutiferamente, todo o afastamento e toda a glorificação por parte dos homens. Não é esse o seu objectivo e nem a sua necessidade.
E assim acontece, porque a sua humildade e simplicidade são algumas vezes iluminadas por Aquele que de facto é a fonte da glorificação e o pode de verdade glorificar. A primeira manifestação desta glória acontece na noite mesma do seu nascimento, quando um grupo de anjos canta a glória de Deus nos céus e convida os pastores a acolherem aquele menino recém-nascido como o Messias prometido. Depois, no momento do baptismo no rio Jordão, é o Pai que se lhe manifesta e o acolhe no seu amor, revelando a sua predilecção. E por fim temos este momento da transfiguração diante de Pedro, Tiago e João, no qual do meio da nuvem a voz do Pai revela que este, este Jesus humilde e quase despercebido, é o seu filho muito amado.
É um momento e uma revelação extremamente significativa para os discípulos e para nós na medida do nosso projecto e desejo de seguir Jesus, de lhe procurar ser fiel assumindo a cruz que temos que levar e o cálice que teremos que beber. Porque tal como com Jesus não podemos esperar, nem desejar, nem colocar as nossas expectativas de glorificação nos homens, como diz o Salmo, naqueles que nem a si se podem salvar; mas tal como Jesus devemos esperar e colocar a nossa esperança de glória no Pai do céu, naquele que de verdade e de facto glorifica.
É este afinal o objectivo do mistério da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João, mostrar-lhes a glória que lhe é dada pelo Pai, por Aquele com quem vive em doce intimidade e obediência, e é capaz de iluminar a noite do desespero, do sofrimento, da solidão e da morte, sua e de todos os que arriscam viver a mesma relação.
Terminemos com as palavras das orações da Solenidade da Transfiguração na Igreja Ortodoxa, pedindo e aspirando à graça da nossa mesma transfiguração em Cristo, “faz brilhar Senhor, também sobre nós pecadores, a tua luz eterna”.

terça-feira, 15 de março de 2011

Orai assim, Pai Nosso… (Mt 6,7-15)

Encontramos no Evangelho muito frequentemente textos e realidades que são verdadeiras revoluções, novidades tão novas e tão intensas que não podemos deixar de as atribuir a Deus, à sua revelação, porque ultrapassam incomensuravelmente qualquer coisa que o homem pudesse imaginar ou pensar.
Uma dessas novidades é a oração do Pai-Nosso e a circunstância em que Jesus a concebe, porque ao contrário de qualquer outra realidade religiosa Jesus apresenta-nos a oração como algo simples, como algo que não necessita de muitas palavras ou de muito esforço, porque antes de mais é intimidade, é relação.
E Jesus ensina-nos desta maneira porque tem a experiência da intimidade do Pai, porque ninguém conhece o Pai senão o Filho que o dá a conhecer e porque é o Filho muito amado no qual foram colocadas todas as complacências.
Só quem faz esta experiência, vive nesta experiência, pode realmente ensinar-nos a dirigirmo-nos a Deus através dessa expressão Pai-Nosso, porque de facto o nosso Deus não é um rei distante que se compraze com longos discursos ou desumanos sacrifícios dos seus filhos.
Bem pelo contrário, ele é o Pai que está próximo, que cuida e acolhe, que ama e sustenta, que nos conhece no que temos de bom e de menos bom, que conhece as nossas fraquezas e fragilidades, e que quando espera a nossa oração não é para ser glorificado mas para que sejamos glorificado nele. A glória de Deus é afinal o homem vivo.
Assim, quando rezamos a oração que Jesus nos ensinou não podemos pretender integrar Deus nos nossos esquemas, mas pelo contrário desejamos e procuramos integrar e abrirmo-nos aos esquemas de Deus, à sua vontade na nossa vida.
E porque não podemos deixar de ter presente o princípio gerador da oração, iniciamos sempre a oração através dessa invocação ao Pai, fazendo presente essa realidade da paternidade e da filiação. Esse é de facto o cerne da nossa condição e aquela realidade que nunca podemos deixar de ter presente, somos filhos e temos um pai que nos ama.
E depois não só a nós, mas a todos os homens, a todas as criaturas que partilham da vida e portanto não podemos deixar sempre de pedir a Deus por nós e por todos os outros nesse reconhecimento do Pai que é nosso e que desejamos que seja glorificado e santificado através do seu nome.
E o seu nome é “eu sou”, como revela a Moisés na sarça-ardente, pelo que santificamos, e o nome de Deus é santificado, na medida em que também nós somos, em que nós somos de verdade homens. Uma vez mais a santificação e a glorificação de Deus e do seu nome é o homem na sua verdade, na sua vida de verdade e plenitude.
Podemos então pedir que venha o seu reino, a justiça e a verdade, a paz que constrói e estrutura um mundo diferente, um mundo que se assemelha ao paraíso criado para o primeiro homem e perdido na satisfação do desejo de poder e auto-suficiência.
E pedimos também o pão de cada dia, o pão que alimenta o corpo mas sobretudo o pão que é a sua Palavra de vida e nos ilumina na fidelidade ao cumprimento da sua vontade, ao reconhecimento de que há um caminho de felicidade e vida, mas que nos cabe a nós optar por ele, assumi-lo e procurar tornar presente e vida em cada instante.
Pedimos depois ao Pai também o pão do perdão, esse alimento da misericórdia que nos ajuda a perdoar-nos a nós próprios as nossas falhas e fraquezas, a reconhecer os nossos erros e passos mal dados e a partir deles e na misericórdia a acolher o outro e a partilhar com ele o pão do perdão naquilo que nos ofendeu ou feriu.
Por fim fazemos um último e também importante pedido, que o Pai nos livre do mal, que nos livre dessas figuras que toldam a sua imagem, que nos impedem ver o seu verdadeiro rosto e o seu amor para connosco, pedimos ao Pai que nos livre dos ídolos e das imagens tirânicas e idolátricas com que tantas vezes nos aproximamos do Pai.
Na intimidade e no silêncio do nosso quarto façamos eco nos nossos lábios e no nosso coração das palavras de Jesus, saboreemos cada uma delas e entremos nesta intimidade a que o Pai nos convida e que Jesus como Filho amado nos revelou.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Carta do Mestre da Ordem Balthassar de Quiñones ao Provincial frei José da Rocha

Roma, 9 de Julho de 1778
M.R.P.M. Provincial Saúde:
Tendo em consideração a apreciável e gostosa carta que V. P. M. R. me dirigiu o dia 9 de Junho por intermédio do Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Núncio de sua Santidade em que depois de me referir algumas das muitas ocorrências passadas, justamente alvoroçado me participa que essa devota e incomparável Soberana se serviu de alçar a mão, e de conceder licença para que se recorra a mim de aqui em diante segundo se recorria antes de agora aos Gerais meus antecessores, recebo a V. P com os braços abertos, e abraçando-o carinhosamente como a um bom filho que depois de tanto tempo volta ao seio de seu amoroso pai, e tão carinhosamente que quase não posso conter as lágrimas de ternura, e lhe asseguro que me deixa cheio de edificação e de consolo, e louvando as misericórdias de Deus ao considerar que ao cabo dos rogos do nosso Grande Patriarca Santo Domingo de Guzman e a impulsos do piedoso coração da Rainha Fidelíssima há visto a Ordem em meus dias reintegrada sua unidade, e reunida à sua cabeça una Província que sempre lhe tem acarretado tanto esplendor, e tanta glória, e que apesar das ocorrências passadas havia de todavia ter semelhante Mãe, e logo que se lhe permite põe o pescoço sob o suave jugo da dependência de seu Geral. Assim que nos alegremos mutuamente e procuremos corresponder a este altíssimo benefício, fazendo ver ao mundo a nossa justa alegria, nossa devida gratidão, e nossa inviolável lealdade.
No tocante a V. P., viva inteiramente seguro de que tem em mim um Pai que o conta entre os seus melhores filhos, e que não perderá ocasião de manifestar que lhe ama, e ainda que o distingue, como o creditará a experiência.
Abençoe V. P. em meu nome a todos esses Religiosos, e diga-lhes que ainda que por outra parte não mereço ocupar o alto lugar que ocupo estejam certos de que pelo menos sou homem de recta intenção, e um superior que jamais se vale da força até haver apurado todos os meios de brandura, e feito conhecer que quer mais ser amado, que temido, e que só em casos de extrema necessidade desembainha a espada da autoridade de seu Oficio; mas que ainda então se recorda da imensa diferença que há entre os filhos e entre os escravos, e de que quem há-de ganhar as vontades não lhe convém que as aperte demasiado.
Faça-me V. P. o gosto de levar essa carta ao Ilustríssimo Senhor Bispo Confessor na qual dou muitas graças a sua Senhoria Ilustríssima pela parte que tomou a nosso favor, e lhe incluo outra para Sua Majestade respeitosamente escrita por este mesmo efeito, rogando-lhe que se sirva de entregá-la. Acerca dos livros que V. P. me pede, ainda que andamos escassos à causa de que estes anos tem ido devagar o Vigário em os imprimir vendo que se havia reduzido por todas as partes o número de frades e de monjas, procurarei prover a V. P. de alguns; mas queria que me avisasse por qual via se lhe hão-de enviar, e se ficaram aí alguns das remessas anteriores, e quais são os que fazem mais falta.
Respondo também à boa da Madre Priora do nosso Mosteiro do Sacramento, que me há escrito, e a quem deve V. P. agradecimentos, que certamente me confirmam mais e mais no vantajoso conceito que eu formei da honradez de Vossa Paternidade.
Desejo, etc…
Frei Balthassar de Quiñones, M.O.

domingo, 13 de março de 2011

Homilia do I Domingo da Quaresma

As leituras deste primeiro domingo da Quaresma orientam-nos já para o mistério que celebraremos daqui a quarenta dias, para o grande mistério da Páscoa da Ressurreição. E assim ficamos desde o primeiro momento cientes que se por Adão, pelo primeiro homem, veio o pecado e consequentemente a morte, por Jesus Cristo e pelo seu sacrifício de amor veio a redenção e a vida. O perdido em Adão foi recuperado em Jesus.
Estas leituras fazem-nos também presente que a vida humana e a sua história se desenrola e balança entre estes dois pólos antagónicos, o do pecado original com a sua consequência mortal e o da graça da redenção que nos conduz à vida eterna e à filiação divina. Na nossa condição humana, encorpada na dimensão física e nas suas limitações, experimentamos a inevitabilidade da corrupção e da finitude, enquanto que na dimensão espiritual experimentamos a liberdade e a eternidade fruto da graça.
Pelo baptismo em nome de Jesus Cristo e pela fé no seu nome fazemos já a experiência, e somos participantes, dessa liberdade e eternidade, mas na medida em que é uma realidade dinâmica, em continua performação, exige de nós a cada instante uma opção, uma necessidade de escolher sempre o que queremos e desejamos. E é dessa realidade e dessa necessidade de escolher que nos falam as leituras da Liturgia da Palavra deste primeiro domingo da Quaresma.
Encontramos assim, tanto na leitura do Livro do Génesis, como na Carta de São Paulo aos Romanos e no Evangelho de São Mateus as três figuras protagonistas do drama que a Igreja nos convida a viver em cada Quaresma de uma forma mais intensa e reflectida, e que jogam um papel fundamental e modelar nessa nossa experiência da opção e da liberdade.
A leitura do Livro do Génesis apresenta-nos Deus criador e soberano de toda a criação, um Deus que vela por toda a sua obra, mesmo por aquela que se revolta contra ele e depois conduz a humanidade à separação. A grande tentação apresentada ao homem é a da auto-suficiência, experimentada já por esse mesmo espírito supremo que não quis subjugar-se ao seu criador. Na sua liberdade o homem pode buscar essa auto-suficiência, equivocamente apresentada como conhecimento perfeito por aquele que sabe que tal não é possível; mas ao fazê-lo, ao aceitar essa realidade, o homem separa-se de Deus e cria assim a sua própria morte, pois não é dono de si, não é o seu próprio criador e dador de vida.
Esta auto-suficiência é também o jogo que se esconde nas propostas que o diabo faz a Jesus depois de quarenta dias de jejum no deserto, ao qual foi conduzido pelo Espírito depois da experiência do baptismo e da revelação da sua filiação divina. Ainda que comummente se fale de tentações não podemos utilizar esse conceito nesta experiência de Jesus, uma vez que a tentação se desenha na fragilidade e na oscilação da nossa natureza e Jesus, em Jesus, depois do baptismo e da confirmação divina da sua natureza e missão não há essa oscilação, ele vive já na intimidade e na confiança do amor do Pai. Em qualquer momento, e face a qualquer uma das propostas do diabo, Jesus não vacilou na sua relação com o Pai nem duvidou do seu amor.
E o diabo começou por desafiar Jesus naquela que é a mais básica das realidades humanas, aquela que mais facilmente nos conduz a uma resposta irreflectida, a fome, a necessidade física. Jesus responde a este desafio e proposta com uma realidade afinal muito mais essencial, muito mais debilitadora na medida em que falta e muito mais gratificante na medida em que se recebe e o homem se alimenta dela, a da palavra da boca de Deus. Jesus, à auto-suficiência física, à satisfação dos sentidos, contrapõe a relação com Deus, a comunhão com a sua Palavra, muito mais vivificadora que o pão que mata a fome. É aquela Palavra pela qual tudo foi criado que pode saciar a fome do homem.
Face à confiança de Jesus em Deus Pai, no poder fortificante da comunhão na Palavra, o diabo apresenta a Jesus o desafio de colocar Deus ao seu serviço, como escudo protector contra qualquer queda e perigo. É a nossa tentação de dominarmos Deus, de o colocarmos ao serviço das nossas necessidades e satisfações, de provarmos a sua eficácia e o seu amor por nós.
Também aqui, e uma vez mais, Jesus se remete à sua relação filial e dependência do Pai, sabendo que o amor do Pai não necessita ser provado, solicitado, porque lhe é natural, enquanto que o nosso necessita de ser solicitado, provado, porque ainda que também nos seja natural, pela nossa tendência auto-suficiente é mais canalizado para usufruto próprio que para dom aos outros.
Não tendo mais armadilhas para apanhar Jesus na presunção da auto-suficiência, o diabo revela afinal a sua verdadeira intenção, ou seja, o afastamento de Deus através da adoração daquele a que não lhe é devida qualquer adoração, acto única e exclusivamente devido a Deus. Consciente deste fim divino, Jesus responde ao diabo com a adoração exclusiva a Deus, assumindo dessa forma que a adoração é também o culminar de um processo de amor, de partilha e liberdade de quem se sabe filho e filho muito amado.
Alicerçado no amor do Pai e confiante na sua relação, Jesus repele o diabo e as solicitações de auto-suficiência e afastamento de Deus, mostrando-nos também a nós e a cada homem o caminho para a libertação ou superação da tentação, ou seja, confiando e entregando-se livremente àquele que o criou e amorosamente o mantém.
Iniciamos assim com este pano de fundo a Quaresma, colocando diante de nós a tentação da auto-suficiência, afinal a raiz e fonte de tantas outras tentações, procurando descortinar no nosso dia a dia e nas nossas opções como estamos a viver a nossa confiança em Deus, a nossa relação filial, a nossa comunhão, afinal como estamos a ser filhos amados e convidados a amar.

sábado, 12 de março de 2011

Tomadas de Hábito registadas no Convento de São Domingos de Benfica em 1704

O irmão frei Pedro da Assunção que no século chamavam Pedro Velho Barreto, filho de João Veloso Barreto e de Amada Barbosa Correia naturais e moradores na vila de Viana, tomou o hábito de frade do coro neste convento de São Domingos de Benfica por filho dele aos 12 de Janeiro de 1704.
Declaro que este irmão acima tomou o hábito no convento de Viana por filho do mesmo dito convento.
Frei Alberto da Assunção, Mestre de Noviços

O irmão frei João de Santo Agostinho que no século chamavam João Henriques, filho de Manuel Henriques e de Ascensão Ferreira assistentes na vila de Azeméis, bispado do Porto, tomou o hábito de frade do coro por filho do mesmo neste convento de São Domingos de Benfica aos 16 de Fevereiro de 1704.
Frei Alberto da Assunção, Mestre de Noviços.
Frei Caetano

O irmão frei Francisco de Santa Catarina que no século chamavam Francisco de Senna, filho de José Pereira e de Mariana Francisca naturais e moradores na cidade de Lisboa, tomou o hábito de frade do coro neste convento a 17 de Fevereiro de 1704.
Frei Alberto da Assunção, Mestre de Noviços.

O irmão frei Caetano do Rosário que no século chamavam Caetano Ribeiro da Costa filho de Domingos João do Anjo e de Francisca Ribeiro da Costa, naturais e moradores em vila do Conde, tomou o hábito neste convento de São Domingos de Benfica por filho dele aos 17 de Fevereiro de 1704.
Frei Alberto da Assunção, Mestre de Noviços.

Ao primeiro de Novembro de 1704 às quatro horas depois de Vésperas tomou o hábito de Donato por filho deste convento o irmão frei Nuno dos Santos natural da cidade de Lisboa, em fé do que fiz este termo, que assinei, dia, mês e ano ut supra.
Frei António de Santa Maria, Mestre de Noviços.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Sobre o jejum cristão

Na Quaresma deparamo-nos de modo mais incisivo com o mandamento da Igreja de guardar o jejum, um exercício de ascese que nos ajuda a viver a temperança e a descobrir também os limites da nossa condição corporal.
O texto que se segue é um excerto de “A Minha Vida em Cristo”, de São João de Cronstadt e pode ajudar-nos a iluminar este exercício ascético tão antigo e ao mesmo tão moderno e actual na sua necessidade.
O jejum é indispensável ao cristão para clarificar o seu espírito, despertar e desenvolver o seus sentimentos, estimular a sua vontade. Estas faculdades humanas são obscurecidas e asfixiadas principalmente pelo excesso do comer e do beber, bem como pelas preocupações desta vida; separamo-nos então de Deus, fonte de vida, e caímos na corrupção e na vaidade, desfigurando e contaminando a imagem de Deus em nós. A libertinagem e a sensualidade fixam-nos à terra e cortam, por assim dizer, as asas da nossa alma.
Repara como era alto o voo dos ascetas e dos que jejuavam, eles planavam nos céus como águias, eles que eram nascidos da terra viviam pelo espírito e pelo coração nos céus, e aí escutavam palavras inefáveis e aprendiam a sabedoria divina.
O jejum é ainda necessário ao cristão porque desde a Incarnação do Filho de Deus a natureza humana foi espiritualizada e divinizada. Nós apressamos agora o nosso passo em direcção ao reino de Deus porque este não é um negócio de comida ou de bebida, mas de justiça, paz e alegria no Espírito Santo. Os alimentos são para o ventre e o ventre para os alimentos, mas Deus destruirá um como outros.
Comer e beber, ou seja procurar os prazeres carnais, é bom para aqueles que não acreditam, que não conhecem as alegrias celestes e espirituais, que fundam toda a sua vida nos prazeres da carne. É por esta razão que o Senhor no Evangelho condena tão frequentemente esta paixão destrutiva.”
Que o jejum que façamos nos ajude a perceber a relatividade da materialidade, nos ajude a partilhar com aqueles que não têm e nos ilumine e fortaleça no processo de divinização à luz da incarnação do Filho de Deus

quinta-feira, 10 de março de 2011

Dá-nos Senhor o espírito de castidade

Na oração de Santo Éfrem, depois de termos pedido ao Senhor a libertação dos diversos espíritos que nos subjugam e afastam de Deus, imploramos que nos seja concedido um outro espírito, quase em contraponto com aquele de que nos libertámos ou desejamos libertar. Assim, o primeiro espírito que pedimos ao Senhor é o espírito de castidade, pois por seu intermédio poderemos lutar contra a ociosidade do sem sentido.
Ao falarmos de castidade alguns sorrirão, pois o sentido da palavra anda demasiado estafado, quase clandestino e como que encolhido numa visão estreitamente sexual. Para muitos falar de castidade significa falar de pureza sexual, de uma privação, de um comportamento que se opõe à libertinagem e ao deboche, uma restrição de um direito à satisfação de uma necessidade até física.
Contudo, o significado primordial de castidade é muito mais profundo, muito mais abrangente, pois significa uma integridade e uma sabedoria, exprime uma noção capital e fundamental para o cristianismo que é a da experiência do bem, a experiência de uma vida boa e justa, uma vida autêntica e cheia de sabedoria. A castidade não se reduz nem se resume ao corpo, e muito menos à sexualidade.
A castidade entendida como integridade opõe-se assim à perda de autoridade, à divisão e à dissolução, ao afastamento da sabedoria de vida, ao vazio e ao sem sentido. A castidade é um regresso à vida em plenitude, à alegria da harmonia e da paz entre o corpo e o espírito.
Por isso nesta Quaresma pedimos ao Senhor nesta oração de Santo Éfrem que nos conceda o espírito de castidade, ou seja um espírito de integridade para vivermos em plenitude, para fazermos a experiência da vida boa e justa, da vida que nos é oferecida por Deus como um dom, tanto no corpo como no espírito.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Livra-nos Senhor das palavras vãs

Nunca o silêncio nos custou tanto como hoje e no entanto nunca as palavras foram tão vazias de sentido e de verdade como hoje. Parece que a ausência de silêncio esvaziou a palavra de conteúdo, de força e vida.
Tanta palavra proferida, tanta palavra a ser seguida, a manietar-nos na nossa presumida liberdade de expressão, são os senhores da palavra, os média e as notícias de última hora, o mural do Facebook e as mensagens a custo zero. E de tudo, ou quase tudo, um vazio, uma poeira que o vento das palavras seguintes já fez desaparecer.
Contudo, foi pela Palavra que tudo foi criado, foi pela incarnação da Palavra que tivemos acesso à filiação divina, à possibilidade da divinização. Sempre pela Palavra.
Portanto, das palavras prestaremos contas, das palavras ditas e não ditas, das palavras que ferem e matam e daquelas que curam e salvam. Toda a palavra tem um peso e Deus contabiliza esse peso, pelo que não estranha que nos diga que as nossas palavras nos justificarão ou nos condenarão.
Assim sendo, e neste sentido, não é de estranhar que Santo Éfrem peça a Deus que o livre das palavras vãs, dessa utilização supérflua das palavras e do seu poder, porque a palavra pode dar vida mas também pode dar a morte. E quantas mortes provocadas pela palavra inoportuna.
A Quaresma é assim também a oportunidade para recolhermos a nossa palavra, para a pesarmos no seu valor de verdade e justiça, vivente e vivificante, e para a confrontarmos com a Palavra primordial e derradeira que julgará todas as nossas palavras. O silêncio que fizermos certamente nos ajudará em tal tarefa.

Livra-nos Senhor do espírito de dominação

Libertos da ociosidade e da tristeza impotente pedimos ao Senhor que nos liberte do espírito de dominação, desse espírito que não só nos faz desejar o poder e a força, a autoridade sobre o outro, mas sobretudo a propriedade do próprio outro.
Entramos numa outra esfera, num outro âmbito em que deixamos de estar sós, no qual o espírito se centra em nós, para estarmos com outros e num espírito em que o outro é tanto como nós, igual.
Contudo, na medida em que nos reconhecemos cada vez mais independentes, livres de autoridades, este espírito de dominação revela-se de uma forma cada vez mais subtil, menos perceptível e por isso mesmo mais perigosa e violenta. Tendo deixado de ter o outro como nossa propriedade, que cuidaríamos, mimaríamos por ser nosso, passámos a usar o outro como instrumento, como um produto, de que fazemos uso e depois jogamos fora, descartamos porque não é nosso e já não nos serve.
É o outro objecto de prazer, é o outro ferramenta rentável e produtiva, é o outro enquanto compincha das minhas jogadas, é o outro enquanto degrau para a minha ascensão e glorificação. É a consideração do outro e de qualquer outra realidade como e enquanto estão ao serviço dos meus interesses.
De forma irredutível sou o centro, erijo-me em valor supremo, acima e ao lado do qual não existe nada mais, não há qualquer outro valor. E não estarei só, por acaso?
Ao pedirmos ao Senhor que nos liberte deste espírito de dominação estamos a centrar a nossa humanidade naquilo que ela tem de necessidade do outro como complemento, na dignidade que a todos nos é inerente e devida.
A Quaresma é também esta oportunidade de redescobrir o outro como rosto de Deus, como a imagem de Deus que nos merece todo o amor e toda a glória.

Livra-nos Senhor do espírito de tristeza

O segundo espírito de que pedimos a libertação na Oração de Santo Éfrem para a Quaresma é o da tristeza, a libertação desse sentido de abatimento que tantas vezes nos alcança e que não sabemos nem explicar nem qual a sua origem.
Contudo, quando nos damos conta do vazio da nossa vida, do peso do sem sentido, conseguimos perceber que essa tristeza, esse constrangimento em olhar as coisas com outros olhos, essa falta de coragem, tem uma origem, nasce e deriva desse vazio existencial.
Nos compêndios de vida espiritual esta tristeza e abatimento chama-se acédia e anda inevitavelmente associada a uma certa preguiça, a um sentimento de frustração que leva ao cruzamento dos braços, ao deixar correr até que o tempo resolva a situação.
Mas poderemos dar-nos a esse luxo? Poderemos deixar a um canto da sala essa ameaça tão constante e tão intensa, consentindo que tome no momento preciso um corpo ainda mais forte e capaz de nos lançar nas trevas mais obscuras e opacas de toda a beleza que há ao nosso redor?
Não há outra vida e certamente também não haverá outro momento para viver o que se me propicia viver aqui e agora, pelo que é necessário libertarmo-nos deste espírito, desta falta de coragem e aplicar as mãos à obra.
Ao pedirmos a Deus que nos livre do espírito de impotência, da tristeza, estamos também a pedir ao Senhor que nos conceda a coragem e a audácia de olharmos olhos nos olhos as nossas fraquezas e o nosso vazio, não para nos ficarmos a lamentar delas e da nossa incapacidade, mas para as conhecermos e reconhecermos nas suas debilidades e pontos fracos e sermos capazes de as superar, de as ultrapassar.
O tempo da Quaresma é assim um tempo de verdade e um tempo de combate, um tempo de nos aplicarmos a nos superarmos, a ser audaciosos connosco próprios. E como em todo o combate há armas, neste caso elas são o jejum, a penitência, a oração e a partilha com o outro necessitado. Elas mostram-nos os nossos limites na fraqueza e na força, espelham-nos na verdade do que somos.

Livra-nos Senhor do espírito de ociosidade

O primeiro pedido da oração de Santo Éfrem para a Quaresma é a libertação do espírito de ociosidade. Face ao ritmo do nosso dia a dia, das agendas carregadas de compromissos, ao conjunto de tarefas que ainda temos por realizar quando o dia já vai a meio, podemos perguntar-nos de que modo vivemos a ociosidade, porque à primeira vista parece mais que nos falta do que temos. Andaremos nós ociosos?
A constatação da carga do nosso dia a dia leva-nos a essa ociosidade de que nos devemos libertar, uma ociosidade que mais que tempo livre, repouso físico, significa vazio, significa falta de sentido, e por isso tantas vezes nos recusamos a parar, a pensar como andamos tão atarefados por quase nada.
E porque algumas vezes nos damos conta, porque paramos num sinal vermelho de alerta, encerramo-nos ainda mais em compromissos e ruídos, em circuitos que nos alienam desse sentido ausente que pressentimos, tentando disfarçar esse vazio que nos habita e grita de ansiedade.
A Quaresma é este tempo propício que o Senhor coloca à nossa disposição para nos libertarmos desse vazio, desse sem sentido, ou pelo menos para tomarmos consciência dessa ociosidade que nos destrói mais que nos dignifica como homens e mulheres, como filhos de Deus. É um tempo para aprender a ganhar sentido.

Oração de Santo Éfrem para a Quaresma

Senhor e Mestre da minha vida,
não me abandones ao espírito de ociosidade,
de tristeza, de dominação e das vãs palavras.
Concede-me o espírito de castidade, de humildade, de paciência e de amor.
A mim teu servo.
Sim, meu Senhor e meu Rei, concede-me ver as minhas faltas e a não julgar o meu irmão.
Tu que és louvado pelos séculos dos séculos. Ámen.


Esta pequena oração, atribuída a Santo Éfrem, é recitada no final de cada Oficio da Quaresma na Liturgia Ortodoxa. Para muitos cristãos ortodoxos é também a oração diária que marca e distingue este caminho e tempo de preparação para a Páscoa que hoje iniciamos.
Na sua simplicidade e sobriedade, esta oração desse grande mestre e poeta cristão do século IV, convida-nos a reconhecer a precariedade da nossa vida, a iniquidade de muitos dos nossos actos e a necessidade de um outro espírito para que na nossa vida Deus seja glorificado.

terça-feira, 8 de março de 2011

A César o que é de César e a Deus vós (Mc 12,13-17)

Era inevitável que o ataque directo feito por Jesus aos escribas e aos príncipes dos sacerdotes tivesse consequências. Eles não podiam consentir que um carpinteiro da Galileia os acusasse de assassinos dos enviados de Deus.
Contudo, como esse mesmo carpinteiro era querido pelo povo, não podiam atacar directamente, pelo menos por agora. Reuniram-se assim com os partidários de Herodes para lhe armarem uma cilada, para proporcionarem a ocasião e o motivo de uma acusação e de uma vingança.
E que melhor oportunidade para tal acusação que confrontá-lo com o tributo pago a César, com o pagamento desse imposto a que todos estavam submetidos. Se dissesse que não o deviam pagar, Jesus alinhava com o partido dos fariseus e dos príncipes, e portanto podia ser acusado pelos partidários de Herodes como sublevacionista; se dissesse que o deviam pagar, colocava-se contra o povo, e portanto podia ser acusado de colaboracionista com o opressor.
A armadilha é perversa e procura encurralar Jesus na impossibilidade de uma resposta, de uma resposta livre e independente, pois tanto a recusa como a aceitação do tributo conduzem inevitavelmente à possibilidade de uma acusação.
Conhecedor dos meandros da questão, da hipocrisia que está latente, Jesus não se deixa envolver pelos elogios feitos para disfarçar o laço estendido; e assim, face à questão colocada, solícita uma moeda, afinal o objecto fulcral da questão.
A apresentação da moeda com a esfinge de César é só por isso um sinal de falsidade, de falta de verdade, de uma duplicidade de critérios em que os acusadores são apanhados em flagrante delito. Com a representação da figura de César e a inscrição imperial a moeda representa uma outra divindade, um outro deus a que todos estavam obrigados a prestar culto.
Neste sentido, um judeu piedoso, escrupuloso com o cumprimento das suas leis não devia ser portador daquela moeda, ela representava uma idolatria. Razão pela qual nos pórticos do templo de Jerusalém havia cambistas, pois era necessário trocar este dinheiro idolátrico por dinheiro legal e admissível no templo.
Revelada a falsidade e a hipocrisia daqueles que tinham vindo ter com ele, Jesus aproveita para lhes ensinar o verdadeiro sentido da resposta a dar, ou melhor, a resposta que deveria ser dada à luz do seu próprio mistério de Filho de Deus encarnado.
Assim, a César deve ser dado o que é de César e a Deus deve ser dado o que é de Deus. Se na moeda de César está marcada a sua figura, deve-lhe ser dada, tributada, porque é dele, da sua autoridade, da sua ordem terrena e mundana; mas o homem enquanto marcado pelo cunho de Deus, esfinge à imagem e semelhança de Deus, deve ser entregue ao próprio Deus, deve ser tributado divinamente.
À luz destas palavras de Jesus há assim um discernimento que não podemos deixar de fazer no uso dos bens que Deus nos concede e sobre a nossa própria condição humana. Se os bens se podem comprar e vender, a nossa humanidade não está à venda, não é tributável senão ao mesmo Deus que nos criou. Como sabiamente nos diz São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios “tudo é vosso, mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus”.
Assim, a César o que é de César, ao mundo o que é do mundo, e a Deus nós mesmos suas imagem e semelhança, seus filhos em Cristo Jesus.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Uma vinha cobiçada (Mc 12,1-12)

Um homem plantou uma vinha, cercou-a com uma sebe, construiu-lhe um lagar e edificou nela uma torre. Mimou-a, ou deixou-a um mimo, e quando tudo estava pronto, quando podia tirar dela todos os frutos e recuperar todo o investimento, entregou-a a alguns servidores para que tomassem conta dela. Ele necessitava ausentar-se.
Quando mais tarde o dono da vinha envia outros servos para receberem o que lhe era devido, os frutos da vinha deixada ao cuidado dos servidores, eis que estes se revoltam e se recusam a dar o que era devido.
Contudo, mais grave que esta recusa são os crimes que praticam com cada um dos servos enviados para receber os frutos devidos da vinha. Se uns são maltratados, outros são expulsos, e outros ainda são assassinados. Estes servidores não reconhecem nos outros servos aqueles que são iguais a eles, afinal outros tantos irmãos que servem o mesmo senhor como eles deviam servir.
Os servidores da vinham praticam assim, conjuntamente, um crime fratricida e uma apropriação de um bem que não lhes pertence, reivindicando-se donos de uma propriedade e com uma autonomia que não lhes pertence nem lhes é devida.
E numa escalada de violência, de desejo incontrolável de posse e senhorio, cometem com o filho do dono da vinha o maior crime, pois não só o matam, como mataram os servos, mas jogam-no fora dos muros da vinha, ou seja não têm qualquer pudor em expor o seu corpo à voragem das bestas selvagens.
Podemos ter uma ideia desta violência e da gravidade desta atitude quando pensamos na necessidade de um corpo para o luto. Se ainda hoje esta é uma questão fundamental, não só em termos psicológicos como espirituais, como não seria no tempo de Jesus!
E assim a resposta do dono da vinha não se faz esperar e assume a mesma carga de violência que os servidores usaram para com o filho. Também eles serão expulsos da vinha e a propriedade que tanto cobiçavam será dada a outros, a herança a que almejavam sem qualquer direito será entregue livremente a outros servidores colocados na vinha.
Os escribas e os príncipes dos sacerdotes perceberam que Jesus estava a falar deles e dele, e da história de violência do povo eleito para com os enviados de Deus. Para nós, a quem foi ofertada a vinha, porque o Filho do dono da vinha foi lançado fora pelos antigos servidores, coloca-se a questão de saber como estamos a administrar a herança que o Senhor nos legou, bem como a fraternidade que podemos e devemos construir entre servidores e a relação filial que o Senhor nos convida a viver na medida de co-herdeiros com o Filho.

domingo, 6 de março de 2011

Homilia do IX Domingo do Tempo Comum

As palavras que escutámos a Jesus no Evangelho de hoje podem perfeitamente passar-nos ao lado, podemos pensar que elas se dirigem àqueles que dizem mas não fazem, que a chamada de atenção de Jesus se dirige àqueles que apenas invocam “Senhor, Senhor”.
Ora, se tivermos um pouco de atenção e seguirmos o raciocínio de Jesus damo-nos conta que imediatamente a seguir Jesus insere neste grupo aqueles que em seu nome profetizaram, aqueles que em seu nome expulsaram demónios e realizaram milagres. Ou seja, Jesus está-se a dirigir aos seus discípulos, àqueles mesmos que pouco tempo antes ele tinha enviado a anunciar a boa nova do Reino e tinham regressado contentes porque tinham curado doentes e tinham expulsado demónios.
A crítica de Jesus vai assim directamente para os seus discípulos, para aqueles que no momento tinha diante de si, e para nós que tantas vezes também invocamos o Senhor mas nos esquecemos de viver de acordo com a palavra daquele que invocamos. A crítica de Jesus é assim bastante profunda e mais do que ao fazer, ao que fazemos ou não fazemos, dirige-se ao que deixamos Deus fazer em nós.
É neste sentido que Jesus utiliza a metáfora da construção sobre a rocha, uma construção que só aguenta as tempestades e os vendavais na medida em que está bem alicerçada nessa rocha, nesse conhecimento e intimidade com a Palavra que é o próprio Jesus. Atentos à Palavra, partilhando da sua vida e da sua força podemos realmente realizar as obras, e realizamo-las com uma convicção e uma fé que ultrapassa o mero formalismo.
É também nesta linha que vão as palavras da Carta de São Paulo aos Romanos que tanto deram que fazer à Igreja, nomeadamente quando Lutero fundamentou nelas a sua crítica à Igreja romana no século dezasseis. Porque de facto o homem não é justificado pelas obras da lei mas pela fé, ou seja, uma vez mais nos deparamos com essa convicção que o simples exercício externo e exterior da lei, das obras da lei, não é garante de salvação. É pela fé, por essa intimidade com a vida da Palavra que podemos alcançar a justificação e a salvação.
Esta convicção teológica fundamenta-se naquilo que podemos chamar a performatividade da mesma Palavra, a vida e a força intrínsecas à Palavra que alteram tudo aquilo que entra em contacto com ela, quem a recebe e acolhe. O acolhimento da Palavra não deixa ninguém do mesmo modo em que se encontrava antes.
E não podemos esquecer que a Palavra, a última palavra de Deus é o seu próprio Filho, é Jesus Cristo, que não nos pode deixar indiferentes na medida em que nos dispomos ao seu acolhimento. Receber a Palavra e a palavra encarnada em Jesus Cristo é deixar-se possuir, transformar, por essa mesma Palavra e não tomar a Palavra como propriedade sua ou disponível para o uso pessoal e segundo os seus critérios. Acolher Jesus Cristo como Palavra de Deus é colocar-se no esteio do mistério da encarnação assumindo esse mesmo mistério da encarnação como realidade intrínseca e inevitável.
Coloca-se assim para todo o discípulo de Jesus, para todo aquele que procura a fidelidade aos seus mandamentos um desafio no sentido da liberdade e da coerência, da vida segundo a lei e segundo o espírito. Há um equilibro a alcançar entres estas duas realidades, que nos aparecem como dois opostos na medida em que os procuramos viver separadamente, mas que de facto só têm sentido e justificação na medida em que se vivem reciprocamente equilibrados e integrados.
Peçamos assim ao Senhor que grave no nosso coração e na nossa alma a sua Palavra e nas nossas mãos, entre os nossos olhos, ela nunca deixe de estar, não como um mero sinal exterior, mas como uma fonte de vida que vivifica e alimenta, fortalece e anima tudo aquilo que se lhe apresenta.