A Liturgia da Palavra propõe-nos
em cada ciclo B, para a celebração dominical, a leitura continuada do Evangelho
de São Marcos. Contudo hoje, e quando o evangelista São Marcos se preparava para
nos relatar o milagre da multiplicação dos pães, a Liturgia da Palavra propõe-nos
a versão do Evangelho de São João.
Esta interrupção da
leitura continuada, que nos pode parecer necessária devido ao reduzido tamanho
do Evangelho de São Marcos para preencher um ano litúrgico, é no entanto
deliberada, pois oferece-nos a possibilidade de ver a verdadeira dimensão do milagre
que Jesus opera.
Neste sentido, temos já
na leitura que escutámos uma referência a essa dimensão ao ser-nos dito que a
Páscoa se encontrava próxima. O milagre da multiplicação dos pães está assim
associado à grande festa. O discurso do pão da vida, que vamos escutar nos
próximos domingos, e que se encontra no seguimento do relato do milagre da
multiplicação dos pães no Evangelho de São João, dá-nos a completa dimensão do
milagre realizado.
Milagre que, pela sua
magnificência e dimensão, nos pode impedir de ver um pormenor da narração, que
é extremamente significativo para cada um de nós, e que o Evangelho de São João
e a leitura que escutámos põe em evidência.
Antes de mais temos
que ter presente que, na narração do Evangelho de João, é Jesus o primeiro a
manifestar preocupação pela multidão, pela fome daquela multidão que o tinha
seguido, que o procurava e que tinha passado o dia a escutá-lo segundo o
Evangelho de São Marcos.
A esta preocupação e
solicitação do Mestre respondem os discípulos mais chegados com a
impossibilidade de satisfazer a fome daquela gente, nem duzentos denários de
pão chegariam para alimentar aquela multidão.
E é face a esta incapacidade,
ou impossibilidade da estrutura e organização à volta de Jesus para responder
às necessidades da circunstância, que surge uma proposta, que poderíamos dizer
irrisória, quase ofensiva face às reais necessidades. Para que serviriam cinco
pães e dois peixes para tanta gente? No entanto, é esta oferta insignificante que
põe em movimento o milagre, que provoca a possibilidade de alimentar aqueles mais
de cinco mil homens.
E como se não bastasse
a miserável oferta apresentada, o Evangelho de São João faz questão de nos
salientar ainda que ela é feita por um jovem rapazinho, por um anónimo do meio
do grupo dos que seguiam Jesus, por alguém que não tem qualquer poder, bem pelo
contrário é manifestação da fragilidade e da precaridade.
Este jovem rapazito,
com os seus cinco pães e dois peixes, na sua pobreza, é assim uma provocação,
aos discípulos incapazes de encontrar uma solução para a preocupação de Jesus,
à comunidade cristã à qual se dirige o Evangelho de São João e que também não
sabe como responder aos desafios que lhe são colocados pelos seus pobres, a
cada um de nós que é desafiado a dar o pouco que tem.
Este jovem rapazito
provoca assim toda a humanidade e cada um de nós a não cruzar os braços, a
deixar de desculpar-se porque não tem nada, ou tem muito pouco, que não adianta
qualquer acção aparentemente insignificante face aos mecanismos do mundo.
E tal como ele muitos
outros exemplos na vida e na história da Igreja nos desafiam nessa confiança
que o pouco com Deus é muito. São Vicente de Paulo, São Martinho de Lima,
Frederico Ozanam, Madre Teresa de Calcutá, e tantos outros irmãos nossos que se
lançaram em desafios sem qualquer suporte, praticamente sem nada, mas
acreditando que Deus estava com eles e não os deixaria desamparados.
Perdido no meio da
multidão, ultrapassado pela grandeza do milagre, este jovem rapazito mostra-nos
que não podemos querer resolver as situações pelas nossas próprias forças,
capacidades ou património, mas que com a nossa boa vontade e cooperação,
oferecendo o que recebemos de Deus, seja muito ou pouco, podemos ir para lá de
todas as esperanças e encontrar soluções para os problemas.
Não posso fazer a
multiplicação dos pães, mas sei que com o meu pouco, oferecido de vontade, e
com a graça de Deus, o resultado da minha oferta ou acção será sempre um
milagre a acontecer.
A fé no Senhor como
nossa força e nosso alento nos conduza a não temer a nossa oferta, o dado por
amor será retribuído com amor.
Ilustração:
“A Multiplicação dos
pães e dos peixes”, de Ambrosius Francken, Museu de Belas Artes de Antuérpia.