domingo, 10 de maio de 2015

Homilia do VI Domingo do Tempo Pascal

É do conhecimento comum que muitas pessoas ao aproximar-se o momento da morte redigem o seu testamento, deixam expressas as suas últimas vontades, para que ao partirem deste mundo os seus herdeiros as realizem e lhes dêem cumprimento.
Sabemos que muitas pessoas deixam expressos desejos um tanto ou quanto bizarros, outras repartem os seus bens para evitarem guerras familiares, outras ainda confiam que o seu património será colocado ao serviço da humanidade e do bem comum.
O Evangelho que escutámos neste sexto domingo do Tempo Pascal pode ser considerado como o testamento de Jesus, ou pelo menos, uma cláusula do seu testamento, a forma como Jesus nos confia o seu património, a herança que nos lega.
Para uma melhor compreensão não podemos deixar de ter presente que Jesus profere estas palavras, confia esta herança, no momento da última ceia, depois de ter lavado os pés aos discípulos, de ter anunciado a traição de Judas e as negações de Pedro, de ter prometido o Espirito Santo.
É na amálgama destas diversas situações e realidades, em que Jesus se apresenta como aquele que tem tudo para dar, enquanto os outros não sabem o que fazer com o que lhes está a ser oferecido, que o mandamento do amor colhe toda a sua verdadeira dimensão, pois não só se confia um património mas faz-se participante dele aqueles aos quais é confiado.
Podíamos dizer que era suficiente Deus amar o homem e entregar o seu Filho para a redenção, mas Deus foi mais longe, exagerou no seu amor, porque confiou aos mesmos homens o amor que lhes tinha, fê-los herdeiros e proprietários desse amor para que o administrassem.
E como bem nos recorda o texto do Evangelho, não foi por nosso mérito, pelo nosso poder, pelo facto de fazermos as coisas bem feitas, as traições e negações dos discípulos colocam-nos perante a nossa miséria, mas porque Deus nos escolheu e nos destinou para que dessemos fruto, e por ele pudéssemos viver na alegria.
Neste sentido, quando hoje nos queixamos da tristeza, de uma certa frustração na nossa vida, de um desânimo que nos alcançou, devemos assumir que não estamos a fazer a experiência do amor, que não estamos a viver o mandamento de amar o outro como Jesus nos pediu e por isso não vivemos a alegria inerente a esta experiência.
O relato do encontro de Pedro com o centurião Cornélio que escutámos na leitura dos Actos dos Apóstolos ajuda-nos a contextualizar a experiência do mandamento do amor, e a perceber como a alegria é possível mesmo quando insuspeitável.
Lemos apenas uma pequena parte desta história de Pedro com o centurião Cornélio, e ficamos assim sem conhecer os antecedentes, os momentos prévios em que cada um deles se sente impulsionado pelo Espirito a um encontro. Cornélio tem uma visão em que lhe é comunicado que peça a vinda de Pedro a sua casa e Pedro tem outra visão em que lhe é anunciado a ida a casa de um pagão.
O encontro de Pedro e Cornélio, apresentado por alguns autores como o “Pentecostes” pagão, é um testemunho e um desafio da experiência do mandamento do amor, pois permite-nos ver como Deus vai à nossa frente, tal como o próprio Pedro afirma, Deus não faz acepção de pessoas, e portanto devemos estar abertos e disponíveis para acolher o outro, mesmo na sua diferença.
A abertura de Pedro permitiu-lhe ver a acção do Espirito Santo naquele homem pagão e na sua família, permitiu-lhe viver e experimentar o mandamento do amor entre aqueles que não tinham andado com Jesus. E esta experiência inevitavelmente provocou-lhes a alegria, em Pedro que acolhia um pagão e naquele homem que se sentia acolhido. 
Desta forma, quando hoje nos colocamos a questão do que fazer com a herança, para alguns de nós apresenta-se com demasiados encargos e custos, não podemos esquecer que o mandamento do amor a que Jesus nos interpela passa pelo acolhimento do outro, e do outro na sua diferença, na sua alteridade, e até na sua oposição.
Escolhermos aqueles que amamos é colocarmo-nos na fronteira da apropriação, da consideração do outro como propriedade ou clone nosso, enquanto o acolhimento do outro, totalmente outro e totalmente dom de Deus, nos coloca no trilho verdadeiro da experiência do mandamento do amor.
Procuremos pois viver o amor de uns para com os outros para honrarmos a herança em que fomos integrados e gozarmos do seu rendimento imediato que é a alegria.

 
Ilustração: 
“A Última Ceia”, de Giorgio Vasari, Figline Valdarno, Itália.

domingo, 3 de maio de 2015

Homilia do V Domingo do Tempo Pascal

O Evangelho que escutámos neste domingo apresenta-nos a grande alegoria da videira e dos ramos, uma alegoria que Jesus utiliza para apresentar aos seus discípulos e a cada um de nós a necessidade de permanecermos unidos, de nos sabermos membros de um corpo, pedras vivas de uma construção, ramos que se mantém vivos e produzem os seus frutos na medida em que estão unidos à verdadeira vide, à grande cepa da qual deriva a seiva da vida.
Alegoria que nos apresenta igualmente uma realidade que nos custa a aceitar e a viver, a realidade da poda, dos cortes que são necessários realizar para que a produção chegue ao seu verdadeiro valor e plenitude.
Criados para a plenitude, para a vida em toda a sua exuberância, custa-nos aceitar que haja alguma coisa em nós que necessite ser cortada, eliminada, para que essa plenitude e exuberância aconteçam verdadeiramente.
Jesus, contudo, não quer deixar-nos na ignorância desta necessidade e por isso apresenta esta necessidade juntamente com a necessidade de permanecermos unidos à verdadeira cepa, à verdadeira vide.
Tais realidades e necessidades mostram-nos que nos encontramos em processo, em desenvolvimento daquilo que estamos chamados a ser e portanto não nos podemos considerar nem terminados nem plenos. Estamos em processo.
E o acolhimento desta circunstância, a sua aceitação, só pode ajudar-nos, porque nos coloca na órbita da confiança e da esperança que radicam da fé em Deus que nos conhece e não nos acusa dos nossos pecados. Como nos dizia a Carta de São João da Segunda Leitura, Deus é maior que o nosso coração e que as nossas faltas e imperfeições e toda a sua acção, o seu amor, são para que verdadeiramente permaneçamos nele, vivamos alimentados e fortalecidos pela seiva da sua graça.
Mas se este processo choca com as nossas convicções, a leitura que escutámos do Livro dos Actos dos Apóstolos, mostra-nos como temos ainda uma maior dificuldade em aceitar este processo e a acção de Deus nos nossos irmãos.
Paulo ao regressar a Jerusalém vê-se rejeitado pela comunidade dos discípulos e apóstolos, que desconfiam dele, pois o conhecimento que possuíam era o de um Paulo perseguidor, inimigo dos amigos e discípulos de Jesus. Ainda que experimentados no perdão e na misericórdia não eram capazes de acolher Paulo e reconhecer a acção de Deus também naquele que antes os tinha perseguido.   
Será a acção de Barnabé que possibilitará a aceitação de Paulo, que destruirá os preconceitos e temores, e o acolhimento no seio da comunidade dos discípulos. É um outro que acredita, que se abre à novidade, e à acção de Deus, que possibilita o acolhimento e integração de Paulo.
Neste sentido, e nesta história, não podemos perder de vista algo que anteriormente Barnabé tinha realizado e que podemos assumir como a condição prévia para todo e qualquer acolhimento, até mesmo da acção purificadora de Deus nas nossas vidas e nas vidas dos nossos irmãos.
Segundo o que nos diz os Actos dos Apóstolos, Barnabé foi um dos primeiros a vender as suas propriedades e a colocar o seu rendimento aos pés dos apóstolos para que pudesse servir à comunidade. É este despojamento, esta pobreza e liberdade, que permitem acolher o outro, reconhecê-lo como transformado pela acção de Deus, pelos cortes de purificação que o Senhor vai operando.
Assim, a celebração deste quinto domingo do Tempo Pascal e a Palavra de Deus que escutámos convida-nos a despojarmo-nos da nossa auto-suficiência, a abrir-nos à acção de Deus tanto em nós como nos nossos irmãos, a reconhecer que afinal há ainda em nós muito que necessita ser cortado, eliminado, para vivermos em verdade e tranquilamente diante de Deus.
Com confiança e amor deixemos Deus actuar em nós, eliminar e cortar tudo o que nos possa afastar da sua vida santificante, tudo o que nos possa impedir de permanecer Nele.

 
Ilustração:
“A Vinha II”, de Elin Danielson-Gambogi, Colecção Particular.