domingo, 31 de outubro de 2010

Homilia do XXXI Domingo do Tempo Comum

O Evangelho de São Lucas deste domingo com a narração do encontro de Jesus com o chefe dos publicanos da cidade de Jericó, o pequeno Zaqueu, coloca à nossa reflexão a dinâmica do processo de conversão e a distância abissal entre a gratuidade da graça de Deus e os nossos esforços individuais de salvação.
Zaqueu era um homem pequeno e por esse facto podemos acreditar que desde muito novo foi o alvo e o objecto da chacota e do gozo dos seus companheiros e conterrâneos. Está-nos na nossa forma de sobrevivência, no nosso instinto mais selvagem, essa propensão para a humilhação do outro que é diferente e que é mais fraco. É de certo modo a forma de expressarmos uma superioridade e uma força que tantas vezes não temos. Zaqueu sofreu na pele essa vergonha e essa manobra de exclusão, à qual se juntou o ódio pela função que desempenhava de cobrar os impostos daqueles que os tinham conquistado e oprimiam. Zaqueu era um marginal.
Contudo, era nesta tarefa, exercendo esse poder controlador, que Zaqueu se podia vingar, que Zaqueu podia exercer também o seu poder de humilhar os outros, era afinal a ferramenta que a sorte lhe tinha disposto para poder estar ao mesmo nível da mecânica da injustiça e da superioridade odiosa.
E é neste quadro, neste ambiente relacional que Jesus aparece em Jericó e Zaqueu procura ver Jesus. Não era tarefa fácil, pela sua estatura pequena mas também pela antipatia, marginalização a que estava votado. Quem iria ceder-lhe o passo para poder chegar ao profeta que passava?
Incapacitado pelas circunstâncias e pela sua condição, Zaqueu sobe a um sicómoro para dali tentar ver Jesus. Podemos imaginar não só a figura patética do pequeno empoleirado na árvore, mas também o gozo geral daqueles que o viam. E é ali, naquela fragilidade que Jesus lhe diz “quero ficar em tua casa, devo ficar em tua casa”.
Podemos ver nas acções de Zaqueu, no facto de correr, de subir a uma árvore, o seu desejo de ver Jesus, mas também a imagem de cada um de nós e dos seus esforços pessoais para procurar ver a Deus. Como Zaqueu também nós nos dispomos e tentamos essa busca, confiados nos nossos meios, nos nossos esforços e na nossa aplicação devota e sacrificada. Procuramos uma perfeição, uma subida aos céus pelos nossos próprios meios, fiados apenas das nossas forças, cedendo uma vez mais à tentação da serpente do jardim do paraíso “sereis como deuses”. E se em muitos casos e momentos não é já a tentação de divindade que nos ilude é a tentação do super-homem, da eficiência das nossas forças e da nossa inteligência.
Contudo, é quando Zaqueu está empoleirado no sicómoro, confiante em si mas fragilizado pela humilhação do falhanço da sua pretensão de invisibilidade, que Jesus lhe diz, desce daí porque quero ficar em tua casa. Desce dessas tuas pretensões e desejos, desse teu situar-te por encima dos outros pensando que és melhor, porque tudo isso é inútil e só leva ao fracasso e ao desespero fatal.
E de facto é inútil, porque a pessoa que nos convida a descer, a baixar dos nossos castelos, Jesus, é a realidade concreta do abaixamento, é a descida total e perfeita, a “kenose” como se diz na língua original dos evangelhos. Deus desceu até nós em Jesus Cristo pelo mistério da encarnação e portanto toda a nossa tentativa de aproximação dele não pode deixar de seguir o mesmo processo, o mesmo abaixamento, não pode deixar de ser encarnação. De outra forma apenas nos distanciaremos ainda mais de nós e da prossecução do desejo de alcançar e ver a Deus cara a cara.
O convite de Jesus foi para Zaqueu uma libertação e por isso ele decide dar metade dos seus bens aos pobres, decide fazer justiça com aqueles que prejudicou, recebe Jesus em sua casa com a maior alegria. Zaqueu viu-se livre do estigma psicológico que o perseguia, da marginalização social, mas também dessa tentação de pelas suas forças alcançar aquilo que apenas pode ser recebido como dom e oferta de Deus, a sua presença amorosa connosco e em nós.
E por esta razão, quando Zaqueu comunica a Jesus a sua resolução, as consequências da sua conversão, é que Jesus diz que o Filho do homem veio procurar e salvar o que estava perdido. Jesus não diz que veio salvar quem estava perdido, Zaqueu, mas o que estava perdido em Zaqueu. Jesus não julga assim a pessoa, julga a situação, porque de facto e à luz das palavras do livro da Sabedoria se Zaqueu existia era porque Deus assim o tinha querido e o tinha chamado à existência e no seu amor o mantinha esperando que se afastasse dos seus pecados e acreditasse. Jesus vem ao encontro do desespero de Zaqueu e Zaqueu mostra como tinha sido salva a réstia de esperança que ainda havia nele.
Na nossa fé em Deus devemos encetar a mesma busca do seu rosto, fiados não nas nossas forças e capacidade mas nessa consciência que Deus veio e vem ao nosso encontro, para nos libertar e salvar gratuitamente na nossa fragilidade. Tendo sempre presente que não há outro caminho senão aquele que passa pela encarnação, a do Filho, a nossa e a de toda a humanidade. E que a mínima experiência de libertação e salvação exige acções e gestos de justiça e salvação para com aqueles que partilham a nossa mesma humanidade, pois só dessa forma nos poderemos considerar dignos do chamamento que Deus nos faz à sua glória.

sábado, 30 de outubro de 2010

Frei José de São Gonçalo Câmara

Continuamos a apresentação de frades dominicanos do século XVIII que fizeram profissão religiosa no convento de São Domingos de Lisboa.
Hoje apresentamos frei José de São Gonçalo Câmara, filho de João Gonçalves da Câmara Coutinho, Almotacé-Mor do Reino e de D. Luísa Maria de Meneses, Dama de Companhia da Rainha D. Maria Sofia Isabel de Neoburg.
Frei José de São Gonçalo iniciou o seu noviciado a 5 de Agosto de 1723 e um ano depois, a 6 de Agosto de 1724, professou nas mãos do Prior do convento de São Domingos frei José de São Tomás.
Como podemos ver no assento da profissão, redigido em latim pelo Padre Mestre de Noviços frei José Vieira, o nome do patrono assumido no noviciado foi riscado, passando frei José de São Gonçalo a usar apenas o nome de família, Câmara. É assim que aparece como autor da única obra conhecida e publicada em 1739, pela Oficina da Academia Real de História “Arte da Perfeição Cristã, que ensina a seguir as virtudes e a detestar os vícios por meio do Santo Rosário meditando os seus mistérios com uma recompilação das indulgências concedidas aos que o rezam e aos seus confrades das Confrarias de toda a cristandade explicados no sentido mais conforme às Constituições Apostólicas e doutrina mais sólida dos teólogos”

1723.Agosto.5
Inicio do Noviciado
Aos cinco de Agosto de mil e setecentos e vinte e três das cinco para as seis horas da tarde depois de matinas declarou o Muito Reverendo Padre Presentado e Prior frei Manuel Dyque ao irmão frei José de São Gonçalo por Noviço do Coro, e principiava o seu noviciado, filho legitimo de João Gonçalves da Câmara Almotacel Mor do Reino, e de D. Luísa Maria de Menezes, todos nascidos nesta cidade e por assim ser verdade fiz este termo que assinei.
Frei José Vieira
Mestre de Noviços

1724.Agosto.6
Profissão solene
Anno Domini milésimo septigentesimo, vigessimo quarto, die sexta Agusti, hora sexta post meridiem, in hoc conventu sancti Dominici Olisiponensis solemnem professionem fecit frater Josephus á Sancto Gondisalvus [riscado à Sancto Gondisalvus e sobrescrito da Câmara] filius legitimus Joanis Gonçalves da Câmara et de D. Luísa Maria de Menezes, naturalium et commorantium in haec civitate; quam professionem fecit supradictus frater Josephus a Sancto Gondisalvus in manibus Reverendi ad modum Patris fratris Josephi a Sancto Thoma, Presentado ac Prioris huius conventus, guobernante relligionem Reverendíssimo Patre fratre Augustino Pipia, totius ordinis Praedicatorum Magistro generali; dictam que professionem fecit supradictus frater secundum Regulam Sancti Augustini et Constitutiones eius dem ordinis Praedicatorum, non pro ut hic aut illic servantur, sed ad literam querit scripto jacent. Item Reverendus ad modo Pater Prior antequam supradictus frater professionem fecisset coram toto conventu et nomine ipsius illi declaravit non esse suam intentionem illum admitere ad professionem si aliqua sanguinis macula haebrorum aut serracenorum et mulatorum infectum extitirit. Et acceptata ab ipso hanc protestationem ipsi quoque facte sunt omnes alid protestationis in Constitutionibus ordinis contentur spicialiter in Dist. 1ª Cap. 13 § 2 a litera E usque ad literam F inclusive, et dictus frater declaravit libere, et voluntarie talem professionem emissere. In quorum fidem ipse cumpraedicto Reverendíssimo Patre Prior, et Patre fratre Joseph Vieira Magistro suo Novitiorum hic subscripsit, anno, mense die ut supra.
Fr. Joseph de Santo Thomas
Presentado e Prior
Frater Josephus Vieira, Magister Novitiorum
Frei Joseph de São Gonçalo da Câmara

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Se o vosso filho num dia de sábado… (Lc 14,5)

Uma vez mais encontramos Jesus confrontando-se, e confrontando aqueles que o convidam, com a observância do sábado, com o preceito de guardar o dia de descanso.
Desta feita é num jantar na casa de um fariseu, na qual se introduz um doente hidrópico na esperança de ser curado por Jesus. Ao vê-lo, Jesus acolhe-o, trá-lo para o meia da sala e coloca-o no centro das atenções, pois sabe que todos ou quase todos estão ali mais para verem o que ele faz, como ele se comporta, que para comerem e festejarem o dia dedicado ao Senhor.
E então a provocação à expectativa: “é lícito ou não curar ao sábado?” Pergunta pertinente porque segundo a própria lei se podia salvar ao sábado aqueles que estavam em perigo de vida, ainda que os mais ortodoxos e aferrados à letra da lei defendessem que nem mesmo a vida se podia salvar. E aquele homem não estava propriamente em perigo de vida, era apenas portador de uma doença que ainda que o excluísse da sociedade não o colocava perante a morte iminente.
Perante tanta dureza de coração, tanta hipocrisia, manifestada no silêncio de uma não resposta, Jesus vai até ao fim e toca naquilo que é mais caro, no bem mais valioso, o filho, a prova da bênção de Deus e a garantia do futuro, da continuação da linhagem e portanto da eleição divina.
Não se poderá salvar um filho num dia de sábado? E eles ficaram calados, sem resposta, porque de facto havia valores que ultrapassavam o próprio sábado, porque sabiam que o sábado tinha sido feito para o homem e não o homem para o sábado. Este era um dia a guardar em descanso, mas o preceito tinha por fundamento a libertação do Egipto e a relação de eleição, explicitada na Aliança estabelecida entre Deus e o povo e da qual derivava a necessidade de se cultivar, aprofundar, desenvolver as relações com o próprio Deus e com os outros.
Neste sentido, o sábado era e é inevitavelmente uma salvação do filho, para a salvação de todos os filhos, de cada um de nós enquanto filho de Deus. Facto que nos conduz, ao terminar a semana a interrogar-nos sobra a forma como vamos viver o nosso dia de descanso, o nosso dia dedicado ao Senhor que se aproxima. Será ele um verdadeiro dia de libertação para o fortalecimento da nossa filiação divina, será ele um verdadeiro dia de construção e aprofundamento das nossas relações, será ele um dia de salvação? É urgente que encontremos uma resposta porque o dia se avizinha, como se avizinha em cada final de semana.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Jesus passou a noite em oração ((Lc 6,12)

Jesus subiu ao monte e passou a noite em oração. Ao amanhecer chamou os discípulos e escolheu os doze.
Podemos imaginar o que foi esta noite de oração para Jesus, como foi difícil, certamente angustiante como a do jardim do Getsémani, ainda que abissalmente diferente. Podemos imaginar, porque na sua intimidade com o Pai e conhecendo o coração de cada um daqueles que andava com ele, sabia o risco que ia correr, sabia como lançava tudo nas mãos de um conjunto de homens que pouco sabiam e tinham expectativas completamente opostas às suas. Ele sabia o seu caminho, o fim que o esperava, e os esperava também a eles, mas eles sonhavam ainda com poder e glória, com um reino de magnificência.
Poderia entregar tudo nas mãos deles, poderia confiar nas suas fraquezas, saberiam eles compreender tudo o que estava em jogo? Quanta incerteza, mas também quanta confiança, quanto amor e quanto assumir da encarnação da vontade do Pai, quanto deixar liberdade para que pudessem fazer as coisas com amor, livremente mas conformes à convicção.
Depois da oração Jesus chamou-os e escolheu-os, sabia o que cada um tinha de potencial para o bem e para o mal, para a fidelidade e a traição. Sabia que o acompanhariam, que até retirariam a espada para o defender, mas também que perante o desabar das expectativas o deixariam abandonado.
Não poderia ser esse abandono um momento de conversão, um momento de confronto com a falsidade das expectativas acalentadas? Não seria afinal esse momento de fraqueza o ponto de encontro com a força de Deus, o ponto de viragem sobre as suas vontades para a vontade do Pai?
A oração de Jesus, e de modo particular a desta noite, deve levar a confrontar-nos com a nossa própria oração, com a nossa oração opaca, procurando descortinar o quanto ela é feita de aceitação da vontade do Pai, o quanto ela é ou deve ser mais forte e intensa quando rezamos pelas causas sem sentido e sem razão, por aquilo que nos desconcerta e até nos faz vacilar na nossa fé.
A oração de Jesus deve levar-nos à entrega, a essa aceitação de que na fraqueza e na impotência Deus se nos revela e transforma. Deus vem quando lhe abrimos as mãos e os braços e dizemos “tudo está nas tuas mãos aceita o meu espírito inquieto”.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Esforçai-vos por entrar pela porta estreita (Lc 13,24)

As palavras de Jesus apelando ao esforço para entrar pela porta estreita são uma provocação à nossa conversão, um convite premente à nossa conversão diária. São também a confirmação de que a conversão não é um privilégio de apenas uns quantos, que não se entra no Reino dos Céu, não se experimenta a salvação por méritos próprios, ou a golpes de violência. Afinal Deus quer que todos os homens se salvem e por isso os últimos serão os primeiros, os fracos e os excluídos, aqueles que poderemos considerar pecadores preceder-nos-ão nos céus.
A salvação é assim uma realidade que não está nas nossas mãos, nos ultrapassa porque está nas mãos de Deus, mas que exige da nossa parte disposição, desejo, reconhecimento da sua necessidade. Não somos nós que nos salvamos, mas é Deus que nos salva através da nossa disposição, abertura e acolhimento a esse dom que nos faz.
A salvação como realidade exterior a nós mesmos e às nossas forças pressupõe intrinsecamente a expressão coerente do seu acolhimento. Não podemos esperar uma salvação sem que a vivamos no nosso dia a dia através de gestos e palavras que a concretizam, que a vão tornando actual e visível, mostrando acolhida e aceitada.
Ora isto implica passar pela porta estreita de que fala Jesus, implica um esforço que se traduz numa ascese de vida, numa disciplina, num conjunto de limites que reconhecemos e vivemos porque enquadram interiormente a concretização do acolhimento que fazemos do dom da salvação. Ninguém pensa pintar um quadro sem uma tela, tintas e pincéis e sem misturar as cores e aplicá-las mais ou menos grosseiramente sobre a tela, arriscando a sujar-se com a tinta que escorre pelos pincéis. E não se pinta um quadro no reverso da tela. Assim no acolhimento do dom da salvação, não se faz no reverso do que ela mesma significa, do que ela mesma é enquanto dom de vida.
E depois não podemos esquecer que a porta estreita, na sua realidade e verdade, na sua concretude e objectividade, nos está apontada, nos foi indicada de uma forma inquestionável na pessoa e na vida de Jesus. “Eu sou a porta e aquele que passar por mim será salvo” disse ele. A porta é a sua humanidade, o seu exemplo de vida, a sua entrega amorosa, a sua divindade escondida na nossa figura humana para que fosse possível vencer o último inimigo que é a morte.
Não é fácil, Jesus experimentou-o e avisou-nos disso, mas à semelhança do seu exemplo e do que experimentou também nos disse que na medida em que nos entregarmos nas mãos de Deus, “Pai nas tuas mãos entrego o meu espírito”, assim seremos mais ou menos capazes de passar a porta. Ou melhor, de ser passados pela porta.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

As semelhanças do Reino de Deus (Lc 13,18-21)

Não nos pode surpreender que depois de Jesus ter falado tantas vezes do Reino de Deus alguém lhe tenha perguntado como o poderiam encontrar, como o poderiam ver presente entre eles. Era e é uma curiosidade natural, pois todos desejamos perceber a presença desse Reino, a sua actualidade ou distância.
Jesus não responde teoricamente à questão, não dá uma resposta cabal e definitiva, bem pelo contrário usa a linguagem metafórica, a comparação, colocando em evidência que o Reino de Deus não é algo cumprido, realizado, mas uma realidade em desenvolvimento, em devir.
Assim, o Reino de Deus pode comparar-se a uma semente de mostarda lançada num jardim. É a mais pequena das sementes mas também aquela que pode gerar uma árvore suficientemente frondosa para que os pássaros possam aí vir aninhar-se e proteger-se.
Jesus não utiliza o verbo semear, uma tarefa cuidada e programada, mas utilizar o verbo lançar, como se neste semear houvesse uma dose de violência, até um certo desprezo pela semente que é lançada à terra. É de facto uma semente muito pequena. Depois faz referência ao jardim, um espaço que nos Evangelhos aparece apenas mencionado no momento da agonia do Getsemani e na manhã da ressurreição. É um espaço privado, um espaço único.
Neste sentido, a semente que é lançada à terra, lançada com violência e desprezo é o próprio Senhor, sepultado num jardim como uma semente miserável, mas da qual nascerá uma árvore plena de vida e forte para estender os braços por toda a face da terra. Jesus está antes de mais a falar de si próprio, e por ele e pela sua vida se pode perceber a vinda e a presença do Reino de Deus entre nós. “Se o grão de trigo lançado à terra não morrer, ficará só, mas se morrer dará muito fruto” (Jo 12,14).
Depois o Reino de Deus pode comparar-se ao fermento que é colocado na massa para a fazer crescer, uma medida ínfima que faz a farinha amassada com a água desenvolver-se na noite, sem que ninguém perceba o movimento e a força que actuam.
Este fermento é no entanto algo impuro, algo que contamina porque tem uma força desconhecida e por isso segundo a lei de Moisés deveria ser retirado das casas na semana dos ázimos, na semana da memória da libertação.
Jesus é também este fermento e como a mulher que esconde o fermento no meio da farinha para não ser visto, não contaminar, também Jesus será escondido entre a terra para que a sua considerada heresia não contamine aqueles que se aproximam do templo para se alimentarem da carne dos cabritos imolados.
Mas escondido, já não na terra mas verdadeiramente na farinha que compõe o pão que se apresenta ao altar, ele é capaz de transformar aqueles que se alimentam dele, aqueles que não têm medo de o receber, de receber a graça transformante que dimana dele.
Estas parábolas, esta semelhanças mostram-nos o principio humilde e modesto do Reino de Deus, até de alguma forma o principio trágico, paradoxal enquanto experiência de fim e de morte, mas também a sua dimensão encarnada e a energia que dimana dessa mesma encarnação.
Assim, perante a pergunta dos sinais da presença do Reino de Deus temos que reconhecer que não são óbvios, até nem são visíveis, porque exigem uma capacidade de reconhecimento na fraqueza e na finitude, na morte, da presença dessa força que supera e vence a morte, do próprio Jesus Cristo vivo e presente entre nós.
Anunciar o Reino de Deus aos outros é anunciar assim um gérmen de vida, uma força transformadora, que antes de mais nos deve transformar a nós, pois de contrário seremos apenas uns ideólogos, irremediavelmente falhados.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Jesus cura a mulher ao sábado (Lc 13,10-17)

Era um dia normal de sábado e Jesus encontra-se na sinagoga, como todo o bom judeu. Aparece por lá uma mulher curvada por um espírito do mal havia dezoito anos. Jesus vê-a e enche-se de compaixão e sem que a mulher lhe faça qualquer pedido decide libertá-la do mal que a oprime. Ela não pede, ela não exige, ela nem sequer tem qualquer sinal de atenção para com ele, que é apenas mais um no meio do grupo daqueles que se reuniu para guardar o sábado.
E nesta indiferença, nesta distância que os separa, Jesus cura-a, primeiro através da palavra da libertação, “mulher estás livre da tua enfermidade” e depois pelo gesto da imposição das mãos. A palavra criadora e salvadora precede o gesto redentor. Jesus vê a mulher reduzida na sua liberdade de filha de Deus e na sua dignidade de membro do povo de Deus e não pode passar ao lado, não pode fechar os olhos àquela injustiça.
E esta atenção de Jesus é ainda mais premente, na medida do próprio dia em que se encontram, desse sábado guardado através do descanso obrigatório como memória da obra da criação e da libertação. Para o povo de Israel o sábado faz a memória semanal da libertação da escravidão do Egipto. Que melhor momento poderia haver para curar aquela mulher, para a libertar do seu mal?
No entanto os outros, os cumpridores do sábado, esquecidos já da razão da observância a que se votam, condenam a atitude de Jesus, o gesto de libertação. “Há seis dias para trabalhar, portanto vinde curar-vos nesses dias e não no dia de sábado”. Como estão equivocados, como estão vazios do sentido verdadeiro daquilo que vivem e cumprem escrupulosamente.
Jesus coloca-os face à incoerência das suas vidas e dos seus comportamentos e mostra-lhes como o sábado é um momento de libertação, existe para a libertação do homem. O sábado é o sinal, o dia memorável, do desejo de Deus de que todos os homens sejam livres, livres de qualquer opressão e escravidão, mas sobretudo de qualquer pecado.
Regressados de um fim-de-semana, ao iniciarmos uma semana de trabalho, devemos interrogar-nos sobre a libertação que experimentámos no dia de descanso, como vivemos o dia do Senhor e fizemos memória da libertação de que fomos objecto, para que estes dias de trabalho possam ser também operação libertadora enquanto momentos e oportunidades para construirmos um mundo melhor, o Reino de Deus entre nós.

domingo, 24 de outubro de 2010

Homilia do XXX Domingo do Tempo Comum

Depois de nos ter apresentado no Evangelho do domingo passado a necessidade da oração, da sua perseverança, através das figuras emblemáticas do opressor e do oprimido, juiz iníquo e viúva inoportuna, Jesus retoma no Evangelho de hoje a mesma temática, iluminando desta feita as atitudes exteriores e interiores que evidenciam a verdadeira oração.
Uma vez mais e utilizando novamente a linguagem da parábola Jesus apresenta-nos duas figuras representativas, a do justo, personificada no fariseu, e a do pecador, personificada no publicano. Ambos rezam ao mesmo Deus mas apenas um volta justificado para casa e tal acontece por causa da atitude assumida na oração.
Assim, o fariseu que Jesus apresenta é um homem irreprimível, é um homem de bem, que não só cumpre a lei mas que vai mesmo para além do seu cumprimento no que está estipulado. Ele reza como está mandado, paga os dízimos que lhe competem, cumpre todas as normas da lei, e mais, cumpre aquilo que outros como o publicano que está ao seu lado não cumprem. Ele está bem, é bom, é justo, e os outros são injustos e pecadores.
Nesta apresentação do fariseu Jesus não se dirige aos justos, mas àqueles que estão convencidos de serem justos, de estarem bem, quando afinal não estão. E este fariseu que aparentemente parece justo, que pelo cumprimento da lei pode ser considerado justo, de facto não o é; e não porque falha à lei e ao seu cumprimento, bem pelo contrário, mas porque se estabeleceu como norma da justiça, porque construiu e constrói a justiça à sua própria imagem e do seu cumprimento da lei. O importante é o que ele faz.
Mas mais grave do que esta satisfação, do que este convencimento, fruto do cumprimento escrupuloso do preceituado, mais grave que esta imagem falsa de si mesmo, é a exclusão do mais importante da lei, daquilo que fundamenta toda a lei e que é o mandamento do amor ao próximo.
A lei dada por Deus a Moisés no monte Sinai funda-se no amor a Deus e no amor ao próximo. Acrescente-se pois, ainda, a esta gravidade da falta de amor ao próximo, a falta de necessidade de Deus, a sua auto-suficiência até em relação a Deus, pois tudo lhe é possível, tudo pode ser feito pelas suas forças e graças a si e ao seu desejo.
Neste sentido e tendo presente que estamos em contexto de oração, de diálogo e intimidade com Deus, face a este homem cheio de tudo, o que pode Deus acrescentar-lhe, que espaço há ainda para que Deus possa vir até ele e realize nele alguma obra?
O publicano, público pecador que se mantém à distância, contrasta pela diferença pois nele não há nenhum cumprimento da lei, nenhuma justificação, nenhuma comparação, nenhuma suficiência, apenas a consciência da sua iniquidade e do seu pecado e da necessidade do perdão de Deus.
Ele apresenta-se diante de Deus sem nada, pobre e miserável, humilhado e incapaz de elevar os olhos, esperançado apenas na misericórdia de Deus. Ele inscreve-se assim no conjunto daqueles homens e mulheres humildes cuja oração atravessa as nuvens e é acolhida por Deus, como nos diz Ben Sirá na leitura do seu livro.
O publicano apresenta-se apesar de todo o seu pecado aberto e disponível à acção de Deus, ao seu perdão misericordioso, à compaixão capaz de colmatar a sua iniquidade e infidelidade e por isso é que ao regressar a casa vai justificado, vai atendido por Deus, pois não é o centro de si mesmo, a suficiência própria.
Perante uma e outra figura podemos e devemos perguntar-nos se o fariseu acredita verdadeiramente em Deus, ainda que se lhe dirija conferindo o cumprimento dos mandamentos de Deus. Podemos e devemos perguntar-nos também face às circunstâncias da nossa vida e à consciência que temos de tantas vezes sermos fariseus e publicanos, de tantas vezes conferirmos com Deus a nossa fidelidade comparativamente à infidelidade dos outros, a nossa suficiência narcísica, se verdadeiramente também acreditamos em Deus.
É uma pergunta que não é descabida, pode e deve ser colocada, possivelmente até mais frequentemente do que nos parece aceitável, pois a primeira etapa da conversão que tantas vezes buscamos e desejamos não é a mudança de vida, de comportamentos e atitudes, mas a fé em Deus, a abertura à sua acção em nós e connosco assim nós nos disponibilizemos para tal. E então sim poderemos converter-nos, poderemos ser mais fiéis, porque estaremos já nas mãos de Deus, vivendo a sua vontade e não a nossa.
Vinde em nosso auxílio Senhor e não deixeis de chamar à nossa porta até que a abramos e te acolhamos na nossa fraqueza e miséria, na nossa infidelidade, porque só quando somos fracos e pequenos é que tu podes fazer-nos grandes e fortes, é que tu nos podes fazer fiéis.

sábado, 23 de outubro de 2010

Frei Francisco de Portugal

Prosseguindo a apresentação de figuras históricas da Província de Portugal deixamos hoje o Assento da Profissão Solene de frei Francisco de Portugal, frade que enquanto noviço se chamou frei Francisco do Rosário.
É uma figura importante e com um poder económico de algum modo significativo, pois em 1744 vai acordar com os padres do Convento de São Domingos de Lisboa a construção de umas casas e lojas nas traseiras da Ermida de Nossa Senhora da Escada contigua à igreja do mesmo convento.
Entre 1757 e 1759 encontra-se no Porto como Prior do Convento de São Domingos daquela cidade e em 1777, aos 15 de Março, é a primeira testemunha ouvida no processo de devassa instaurado ao governo e à pessoa do Padre e Vigário Geral frei João de Mansilha entretanto detido por ordens superiores.

As imagens são do Assento realizado em latim e das assinaturas e nota à alteração de nome.

1722.Dezembro.8
Profissão solene
Anno Domini milésimo septigentesimo, vigessimo secundo, die octava Decembris, hora quarta post meridiem, in hic conventu sancti Dominici Olisiponensi solemnem professionem fecit frater Franciscus á Rosario filius legitimus D. Bernardi de Vasconcellos jam defuntus et D. Maria de Portugal, naturalium et commorantium in haec dicta civitate; quam professionem fecit supradictus frater Franciscus á Rosario in manibus Reverendi ad modum Patris fratris Antonii à Sacramento, in Sacra Theologia Doctoris et Magistri Sancti Officii Consultoris, ac Prioris Provincialis huius Portugaliae Provinciae, gubernante relligionem Reverendíssimo Patre fratrer Augustino Pipia, totius ordinis Praedicatorum Magistre generali; dictam que professionem fecit supradictus frater secundum Regulam Sancti Augustini et Constitutiones eius dem ordinis Praedicatorum, non put eiu aut illi servantur, sed ad literam put scripto jacent. Item Reverendus ad modo Pater Provincialis antquam supra dictus frater professionem facisset coram toto conventu et nomina ipsius illi declaravit, non esse suam intentionem illum admitere ad professionem si aliqua sanguinis macula haebrorum et sarracenorum aut mulatorum infectum extiterit. Et acceptata ad ipso hanc protestationem ipsi quoq in facte sunt omniss alid protestationis in Constitutionibus ordinis contentur specialiter in Dist. 1ª Capt 13 § 2 a litera E usque ad literam F inclusive, ad ques omnis anmens dictus frater declaravit libere, et voluntaria talem professionem emissere. In quorum fidem ipse cumpredicto Reverendíssimo Patre Provinciali, et Patre frater Alberto à Divo Thoma Magistro suo Novitiorum hic subscripsit, anno, mense die ut supra.
Fr. Antonius a Sacramento, Prior Provincialis
Frater Albertus à D. Thoma, Magister Novitiorum
Fr. Francisco de Portugal
Este irmão em Noviço se chamava frei Francisco do Rosário e na profissão se chamou frei Francisco de Portugal. O que assim declaro para que não faça duvida de assinar-se com este nome.”

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Porque não sabeis discernir o tempo presente? (Lc 12,46)

Discernir o tempo presente é uma tarefa árdua, difícil, mas não impossível. Jesus reconhece que naturalmente, pela nossa circunstância de situados no mundo, numa cultura, numa história, somos capazes de fazer o discernimento do tempo presente. Neste sentido, ele confronta os seus intermediários e adversários com a capacidade de discernirem o tempo meteorológico, os fenómenos naturais e as suas consequências. Ainda hoje, nós, pelas mesmas razões somos capazes de discernir se vai ser um dia de chuva ou se vamos ter um dia de calor. Temos os dados e a capacidade para fazer um juízo.
Assim, e perante outros dados que possuímos, temos também a capacidade de discernir a outra dimensão da nossa vida, a vida da graça sobrenatural e da fidelidade ao amor de Deus. Perante os dados da revelação podemos e devemos discernir a nossa implicação nessa mesma revelação.
É a grande critica e a acusação vigorosa que Jesus faz aos seus adversários, porque eles capacitados para o discernimento, com os dados da revelação, da lei e dos profetas, não são capazes ou recusam-se a reconhecer os sinais dos tempos, aquele que está diante dele e pelos sinais apresentados pode ser discernido como o Messias e o Filho de Deus, o cumprimento da promessa. Há uma resistência que é inacreditável, que nos deixa chocados.
Mas é uma resistência que também a nós nos atinge, que muitas vezes não sabemos de onde vem ou porque vem, ou que até sabemos, porque provêm do medo e da nossa consciência de incoerência e infidelidade, que nos recusamos a assumir e a mudar.
Tendo isto assumido, e para nos incentivar a uma outra atitude, a uma conversão, Jesus conta uma parábola em que alguém é arrastado ao tribunal para prestar contas. Perante tal possibilidade, Jesus recomenda o compromisso amigável antes da apresentação junto da barra do tribunal, o discernimento de uma resposta concertada enquanto é viável e possível.
Para nós, situados em caminho, em processo “judicial”, discernindo com fidelidade, esta resposta amigável e viável encontra-se e realiza-se na paz e na fraternidade com aqueles com quem vivemos. O que é justo e como resposta discernida no espírito, face à justiça de Deus que já foi exercida para connosco de forma misericordiosa, é a vivência dessa mesma misericórdia, dessa mesma justiça misericordiosa através da paz, da mansidão, da humildade e paciência.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Eu vos digo que vim trazer a divisão (Lc 12,51)

Parece impossível Senhor, tu o Príncipe da Paz, tu que estendestes os braços sobre a cruz para acolher todos os homens, tu que te fizeste homem para que todos nós pudéssemos ser filhos de Deus, tu que partilhastes a mesa dos pecadores e dos marginalizados para os integrar, tu que perdoastes aos homens aquilo que não sabiam o que faziam quando te crucificavam, como podes vir trazer a divisão?
Não é essa a miserável condição e o trabalho ignóbil daquele a que chamamos diabo, o que divide, o que separa e semeia a perturbação dos contrários? Como podes tu dizer Senhor Jesus que vieste trazer a divisão, colocar uns contra os outros, os pais contra os filhos e os filhos contra os pais, dois contra três e três contra dois?
E no entanto viestes Senhor, colocastes mesmo uns contra os outros, e mais, até mesmo em cada um de nós criastes a divisão. Parece que não há remédio, porque de facto temos que viver com essa realidade, com a certeza de que estar contigo, caminhar contigo, seguir-te e ser teu discípulo é um combate, é viver a divisão em todas as suas dimensões e consequências.
Porque ao estar contigo, ao entrar no dinamismo do teu mandamento de amor e do teu Reino de Paz, já não são as relações de sangue e familiaridade que nos ligam, ou devem ligar, já não somos filhos nem pais nem irmãos, já não há laços que nos prendam ou subjuguem. Em ti Senhor somos livres, somos independentemente únicos porque somos filhos de Deus, somos teus irmãos e nesse sentido equitativamente irmãos de todos.
Contudo, como é difícil, como continuamos a pensar e a viver que por sermos pais e filhos, por sermos irmãos de sangue, somos também senhores e donos, temos direitos de propriedade, de exclusividade, de uma reciprocidade de amor, que nos é devida, de facto, mas não pelas razões que apresentamos.
E depois gerastes em nós também essa divisão da consciência da infidelidade, da incoerência das nossas vidas, porque sabemos o bem que devemos praticar, a verdade que devemos viver, o amor com que devemos amar todos os homens e mulheres, e no entanto estamos quase sempre a fazer o contrário, a deixar-nos levar pelas razões mais mesquinhas e pelas forças mais baixas da nossa própria condição. Como diz São Paulo fazemos o mal que não queremos e não fazemos o bem que desejamos e sabemos que deveríamos fazer.
Mas só tu Senhor nos podes libertar desta divisão, só tu podes transformar o nosso coração, transformá-lo profundamente, só tu podes incendiá-lo com o fogo que viestes trazer à terra e fazer-nos viver a unidade e a paz, pôr fim à divisão que nos subjuga. Envia-nos Senhor esse fogo purificador e regenerador, esse fogo que libertou os discípulos na manhã de Pentecostes de todos os medos e todas as divisões. Envia-nos Senhor o teu Espírito Santo.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Quem é o administrador fiel? (Lc 12,42)

Jesus continua a instrução dos seus discípulos e uma vez mais convida à vigilância pois ninguém sabe a hora a que chega o seu senhor, a hora a que chega o Filho do homem, que pode vir como um ladrão. E esta vigilância é tão necessária na medida em que será graças a ela que seremos capazes de reconhecer o Filho do homem no momento da sua vinda.
A parábola do administrador fiel, que Jesus conta após a interrogação de Pedro sobre os implicados naquelas palavras, mostra-nos e permite compreender que a vigilância se joga numa fidelidade responsável relativamente à missão que nos foi confiada, que há necessidade de uma fidelidade ao Mestre e aos dons recebidos para a missão, mas também de uma prudência, de um certo “savoir faire”.
Jesus relaciona as duas atitudes e fá-lo quando nos diz que o administrador fiel é aquele que sabe dar devidamente, no momento oportuno e do modo necessário a devida ração de trigo. A fidelidade não admite assim um desbaratar de recursos e meios, um desperdício de oportunidades, ou uma precocidade de implicação, mas exige, e Jesus insiste sobre isso, uma consciência da oportunidade, da justeza, da capacidade de cada um, tanto do que dá como do que recebe, até certo ponto certamente até mais do que recebe para não lhe ser dado alimento sólido quando ainda só pode beber leite, como diz São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios (1Cor 3,2). Se não se tiver em conta esta realidade, se não se tentar este “savoir faire” poderemos cair numa certa inutilidade, num trabalho em vão, numa infidelidade ainda que involuntária à missão.
Peçamos assim ao Senhor, como nos recomenda no Evangelho de São Mateus (Mt 10,16) a ser prudentes como as serpentes e simples como as pombas, para que dessa forma nos conformemos fielmente à missão e aos dons que nos confia.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Felizes os servos que o Senhor ao chegar encontrar vigilantes (Lc 12,37)

Vigilância, sempre a vigilância, esse estado de atenção e espera, de expectativa e desejo. Vigilantes, felizes os vigilantes encontrados a vigiar.
Para Jesus Cristo é uma disposição habitual, é um estado constante, uma disposição que ele recomenda veementemente aos seus discípulos. Não há seguimento sem vigilância, uma vez que o seguimento é um aferir constante da fidelidade ao princípio, aos meios e ao fim. Vigiamos enquanto prosseguimos no caminho da fidelidade para não nos perdermos nem esquecermos de onde vimos e para onde vamos.
Vigilância na fé, no aprofundamento esperançado e confiante do dom de Deus, vigilância nas obras, no serviço prestado aos outros, porque no serviço se afere a profundidade da fé e a fidelidade ao mandamento. “Assim, como o corpo sem alma está morto, assim também a fé sem obras está morta” (Tiago 2,26).
Não são obras extraordinárias, obras que nos acarretam sacrifício, ou das quais nos possamos desculpar por falta de tempo ou de forças; bem pelo contrário, são as obras do nosso dia a dia, as obras simples da nossa condição humana, gestos, palavras, acções, favores, obras simples mas transfiguradas pelo dom do amor, pelo sinal da gratuidade, do sem preço de retorno.
Nestas obras totalmente gratuitas, totalmente desinteressadas, a acção adquire um perfume de sobrenaturalidade, uma dimensão divina que liberta não só aquele que a realiza mas também aquele que é o objecto da acção e da obra.
Se formos fiéis e nos mantivermos vigilantes, no dia do encontro com o Senhor, no momento da sua chegada, levando connosco apenas o dom da fé e os frutos da caridade encontraremos e seremos recebidos de braços abertos por Aquele que desde sempre também vigilante nos espera.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos (Lc 10,3)

Não pode deixar de nos causar algum espanto, alguma surpresa, estas palavras de Jesus. Através delas aparece o perigo imediato e potencial perante o qual somos colocados, face ao qual somos enviados. Os lobos são um perigo para os cordeiros. Somos assim enviados como discípulos para o meio dos perigos e confrontos. Não há volta a dar.
Este envio torna-se contudo ainda mais paradoxal quando nos confrontamos com a recomendação de não levar nada para o caminho, nem bolsa, nem sandálias, nem cajado, nenhum apoio no qual nos possamos sustentar, ou seja frágeis e vulneráveis, pobres e indigentes é que nos devemos apresentar. O Senhor eleva a fasquia da radicalidade no seguimento e do envio.
Mas é necessário, pois só assim o enviado pode ser livre e os resultados da sua missão podem ser reais, verdadeiros e efectivos. De contrário, como é que os lobos poderiam aprender a linguagem do amor, a radicalidade da vida assumida e vivida em Jesus Cristo como filhos de Deus? Se nos apresentássemos como lobos, fortes entre os fortes, alguém poderia ver um sinal contrário, alguém poderia sentir-se tocado pela diferença, alguém poderia sentir desejo de conversão?
A vulnerabilidade é ou deveria ser a nossa condição porque o nosso Senhor e Mestre foi também vulnerável, experimentou a vulnerabilidade na sua radicalidade. A cruz é o sinal mais eloquente dessa vulnerabilidade e da potencialidade de conversão, e o centurião romano é o primeiro resultado, o nosso primeiro convertido: “este homem era verdadeiramente Filho de Deus” (Mc 15,39).
Com a força do Espírito Santo saibamos apresentar-nos desprendidos de tudo, frágeis e vulneráveis, confiantes apenas de que o Senhor está connosco, porque como diz São Paulo “é quando sou fraco que sou forte” (2Cor 12,10).

domingo, 17 de outubro de 2010

Homilia do XXIX Domingo do Tempo Comum

Haverá fé na terra quando voltar o filho do homem é a pergunta que Jesus deixa aos seus discípulos no final do Evangelho de São Lucas que acabámos de escutar. É uma pergunta que nos podemos colocar também nós, hoje, face aos desafios que a nossa cultura e sociedade nos coloca como crentes, como discípulos de Jesus Cristo. Uma pergunta pertinente na medida em que não sabemos nem o dia nem a hora em que voltará o filho do homem e portanto devemos estar vigilantes e aptos a dar uma resposta.
E a resposta é-nos indicada, sugerida, pela parábola que Jesus conta da pobre mulher que insiste junto do juiz iníquo para obter satisfação às suas demandas. Um juiz distante, irreverente, sem temor nem dos homens nem de Deus, mas que responde à pobre mulher para ter sossego, para deixar de ser importunado. A parábola, como o próprio Jesus o refere, mostra a necessidade que temos de não desanimar, de não desistir, de insistir, e de modo muito particular num aspecto extremamente importante da nossa existência como crentes que é o da oração. É a oração que nos identifica e nos qualifica.
Mas ao falarmos de oração não podemos pensar que nos estamos a referir a um simples gesto ou ritual mecânico, a uma atitude física como a de estar de joelhos ou prostrados, ainda que tais atitudes sejam necessárias e por vezes um meio imprescindível para chegarmos a fazer verdadeiramente oração. Ao falar de oração estamos a referir-nos a esse desejo de Deus que habita em nós e procura ser saciado, satisfeito, no próprio Deus pois não há mais nada que o satisfaça. Uma oração, ainda que longa e sacrificada, ainda que muito cuidada e muito contemplativa, se não tiver e não for sustentada por esse desejo de Deus, será uma oração vazia, uma oração que conduzirá ao vazio.
No caso da parábola, a pobre viúva procura junto do juiz uma satisfação de uma causa, uma justiça contra o adversário, no nosso caso e na nossa oração o objectivo não é uma satisfação de uma causa, uma resposta material a uma qualquer necessidade, mas a satisfação desse desejo e do prazer de estar com Deus. Jesus, que vivia em doce intimidade com o Pai, mostra-nos através da sua oração frequente como é necessária esta satisfação, como é necessária esta busca e relação pessoal com Deus.
A celebração da Eucaristia, nomeadamente ao domingo, é para nós uma fonte e uma forma desta satisfação e face à nossa cultura um sinal bem actual e visível dessa fé na vinda do filho do homem, uma resposta verdadeiramente efectiva.
Contavam-me há dias que um jovem de dezoito anos se revoltou contra a prática habitual da família de cumprir o preceito dominical e para tal revolta justificava-se com o desperdício de tempo que era ir à missa ao domingo. A hora da missa era uma perda de tempo. Ora é aqui e face a estas atitudes, a esta compreensão da celebração Eucarística, fruto da mentalidade social e cultural dos nossos tempos, que temos que jogar a nossa fé e o nosso compromisso testemunhal.
Porque a celebração eucarística não é apenas uma questão estética, uma questão de satisfação prazenteira dos sentidos, para a qual contribuem e devem contribuir um bonito espaço, uma boa música, uma boa presença até daquele que preside. Não é também apenas uma questão convivial, comunitária, ou social, momento para nos reunirmos e encontrarmos com os nossos amigos e família ou até com os vizinhos do lado. A celebração eucarística é esse momento e esse modo em que pela própria virtude da celebração, do mistério presente e vivido, os nossos corações são orientados para Deus, ganhamos uma outra dimensão como homens, pois somos livremente filhos de Deus e herdeiros do Reino dos céus.
Face a tanta gente, a tantos homens e mulheres que abdicaram da Missa dominical temos que lhes dizer que abdicaram e estão a abdicar do meio que lhes possibilita ser mais homens e mulheres, serem verdadeiramente livres por uma hora. Face a uma semana de trabalho, esgotante, a compras feitas à pressa e sob a pressão da publicidade que nos entra pelos olhos dentro, a um domingo para um descanso que tantas vezes desperdiçamos em encontros e actividades frustrantes, a um ritmo de vida que cada vez mais nos escraviza e subjuga na nossa liberdade pessoal, a celebração dominical é o momento e o modo de nos libertarmos dessa escravidão e dessa subjugação. Durante uma hora, (que pode ser mais ou menos entediante, é justo que o digamos, e é justo que o digamos também devido a vários factores e um deles o espírito com que estamos), somos unicamente filhos de Deus, livres em Cristo que se nos apresenta e fortalece através da Palavra sagrada e do seu Corpo e Sangue entregue por nós e para nós.
É a fé que nos leva a viver dessa forma a Eucaristia que jamais pode ser vista ou participada como um utensílio, como um objecto de que me sirvo porque me dá jeito, porque é da tradição e da minha educação; bem pelo contrário, deve ser vivida como uma casa, uma verdadeira casa, por alguma razão se chama casa de Deus ao espaço, à igreja, porque nela habito, faço vida, construo e fortaleço as minhas relações com Deus e com os outros. Quantos desafios de participação activa se nos colocam se nos comprometermos com uma concepção “habitacional” da nossa celebração Eucarística dominical!
Como crentes, como discípulos de Jesus, participantes da Eucaristia, procuremos sem pressas e sem medos, com coragem e constância viver a nossa relação com Deus, a nossa Eucaristia e a nossa oração pessoal e intima, testemunhando dessa forma e por esses modos a fé que habita em nós na vinda do filho do homem para fazer justiça sem demora.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Valeis mais que todos os passarinhos (Lc 12,7)

Podíamos dizer que é quase escandaloso, é pelo menos vergonhoso, que nos tenhamos esquecido com tanta facilidade destas palavras de Jesus: “valeis mais que todos os passarinhos”.
Quantas vezes na nossa vida e face aos desafios que ela mesma encerra enquanto condição biológica e finita, enquanto mapa de redes de relações, enquanto equação aberta a valores insuspeitados, nos esquecemos de que valemos alguma coisa, de que Alguém dá alguma coisa por nós.
Não o podíamos fazer, não o devíamos fazer, devíamos viver ou procurar viver com essa confiança, fundados na palavra de alguém como Jesus que fez a experiência dessa mesma entrega e confiança e não saiu defraudado. Ele é o nosso garante, o preço do nosso resgate, o que nos obriga ou devia obrigar ainda mais, pois já não vivemos apenas com essa confiança mas com a certeza que alguém pagou o nosso preço, e por um valor bem alto, o da sua vida.
Santa Teresa de Jesus, cuja memória hoje celebramos, descobriu também na sua vida essa mesma realidade e por isso pôde dizer que com Jesus, “estando presente tão bom amigo e tão generoso capitão tudo podemos suportar, Ele é ajuda e dá força, nunca falta é verdadeiro amigo”.
Possamos com a graça do Espírito Santo fazer esta mesma experiência dispondo-nos em cada dia e face a qualquer desafio a essa confiança.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Eu lhes enviarei profetas (Lc 11,49)

Eu lhes enviarei profetas e apóstolos e eles matarão uns e perseguirão outros. É esta a constatação histórica e o anúncio profético que Jesus faz no contexto de uma querela com os doutores da lei. De facto, e à luz da história do povo hebreu, Jesus assume que os profetas não tinham sido bem recebidos, tinham sido perseguidos, mortos, rejeitados, e nesse sentido também ele como profeta e todos aqueles que o seguissem sofreriam a mesma sorte. A história e a experiência não permitem qualquer dúvida ou vacilação.
Assim, aceitar ser discípulo e profeta de Jesus, e pelo nosso baptismo somo-lo de facto, é aceitar e assumir a mesma condição de perseguidos, a mesma sorte de ser rejeitados, excluídos e mortos. Como Jesus diz em outro momento, o discípulo não pode ser superior ao mestre, não pode almejar uma sorte diferente daquela que atingiu o mestre e senhor. Portanto não devemos retirar esta realidade do nosso horizonte de vida e realização. A fidelidade exige.
Mas se a fidelidade o exige é também verdade que só à luz do Espírito Santo se pode viver, à luz de uma abertura radical e total às suas efusões, à luz de uma confiança e uma fé de que nos está prometida uma justiça, de que um dia será feita justiça aos nossos actos e à nossa fidelidade. É com esta esperança e esta força que podemos vencer ou enfrentar os combates do mundo, esse mundo que solicita e apela a um compromisso negociado que obrigatoriamente nos afasta e subtrai da condição profética para nos encerrar em belos monumentos ilusórios e fúnebres.
Cabe a cada um de nós responder e assumir a condição que deseja viver, se a da vida em plenitude ou a da vida artificial.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Frei Manuel de São José Forjais

Prosseguimos a apresentação de figuras históricas da Província de Portugal da Ordem dos Pregadores. Desta feita apresentamos os registos feitos relativamente a frei Manuel de São José, que no século se chamava Manuel Forjais Pereira Pimentel Silva de Meneses e era filho do Conde da Feira. São registos da sua tomada de hábito como pupilo, do inicio do seu noviciado e da sua profissão religiosa.
A imagem é o assento da sua profissão religiosa, assinada pelo Prior do Convento de São Domingos de Lisboa, frei Veríssimo de Lima, mais tarde Prior Provincial, pelo Mestre de Noviços frei Alberto de São Tomás e pelo próprio professo frei Manuel de São José.

1703.Março.29
Tomada de hábito de pupilo em São Domingos de Lisboa.
Aos 29 de Março de 1703 anos tomou o hábito de pupilo o irmão Frei Manuel de São José filho do Conde da Feira que no século se chamava D. Manuel Forjais Pereira Pimentel Silva de Meneses, e tomou o dito hábito das mãos do Nosso Muito Reverendo Padre Mestre Provincial Frei João Baptista Marinis, em fé de que assinei aqui dia mês e ano ut supra.
Frei Manuel de Jesus, Mestre de Noviços

1708.Junho.3
Inicio do Noviciado
O irmão pupilo Frei Manuel de São José começou o seu ano de Noviciado em três de Junho de 1708 dia em que se celebrou o Mistério da Santíssima Trindade e se fez a festa da Rosa, e no dia antecedente declarou o Padre Prior deste convento o Padre Mestre Frei Manuel de Brito, que no dia dito da Santíssima Trindade começava o tal irmão o ano de aprovação, em fé do que fiz este assento, dia, mês, ano, ut supra.
Frei Alberto de São Tomás, Mestre de Noviços

1709.Junho.10
Profissão simples de frei Manuel de São José
Aos dez do mês de Junho de 1709 das três para as quatro horas da tarde, professou por filho deste Convento de São Domingos de Lisboa o irmão Frei Manuel de São José, aliás Forjais, filho do Conde da Feira, sendo Provincial desta Província o Muito Reverendo Padre Mestre Frei Manuel de Sena, e Prior deste Convento o Muito Reverendo Padre Presentado Frei Veríssimo de Lima, em cujas mãos professou, e Mestre de Noviços o Padre Frei Alberto de São Tomás, ao qual lhe foi dito que pela profissão se obrigava a estreita obediência de nossas Constituições e Regra e que se em algum tempo se achasse que ele tinha raça ou alguma coisa que encontrasse a disposição que nossas Constituições ordenam ficaria a profissão nula, o que ele ratificou, em fé do que fiz este assento. São Domingos de Lisboa, 12 de Junho de 1709.
Frei Veríssimo de Lima, Presentado e Prior
Frei Alberto de São Tomás, Mestre de noviços
Frei Manuel de São José

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Homilia do XXVIII Domingo do Tempo Comum

O Evangelho de São Lucas deste domingo coloca-nos perante mais um milagre de Jesus, mais uma cura. Contudo, se estamos perante mais uma cura de Jesus, a cura de dez leprosos, a narração de São Lucas tem algumas particularidades que nos mostram que algo mais está em jogo, que não se trata de uma simples cura física, de um simples milagre operado por Jesus.
Assim, e neste sentido, não podemos deixar de reparar que os leprosos não se aproximam de Jesus, se mantém à distancia, ou por não quererem tornar impura a própria pessoa de Jesus, uma vez que toda a lepra provocava a impureza, ou porque no contexto da narração eles estão ainda de facto longe de Jesus, fechados à revelação que se podia operar com a sua aproximação.
Depois não podemos deixar também de reparar que Jesus não actua como é habitual, não os questiona na sua fé nem tem qualquer gesto para com eles que índice uma acção particular, como acontece com outros milagres e curas em que Jesus toca e interpela aquele que é curado.
Ainda, e por fim, Jesus dá-lhes uma ordem, manda-os apresentarem-se aos sacerdotes para certificarem uma cura que no momento em que a ordem é dada ainda não se operou, ainda não aconteceu. Jesus remete para um cumprimento da lei de Moisés que não é normal, podemos até dizer descabido pois não há ainda cura. À luz da ordem dada por Eliseu ao general sírio para que se banhasse no rio Jordão, esta ordem de Jesus é ainda mais descabida, desconcertante na sua realidade imediata.
Mas se num primeiro momento e na narração tudo se organiza desta forma, tal acontece para evidenciar o regresso do leproso curado e da sua atitude. E assim vemos que perante a constatação da cura, no cumprimento da ordem dada por Jesus, um dos leprosos regressa a Jesus, e lançando se lhe aos pés dá graças pela cura alcançada. Perante tal reacção Jesus não só evidencia a atitude do leproso mas também a sua naturalidade, é samaritano, ou seja Jesus aponta para a sua condição de dupla exclusão provocada pela lepra e pela origem étnica e religiosa. E é aqui que ganha sentido a diferença de narração relativamente a outros milagres e curas, porque de facto o que está em causa é a capacidade de relação, é a exclusão inicial e a reintegração operada por Jesus. Não se trata de uma simples cura de doença de pele, da lepra física, mas trata-se da cura da doença leprosa que nos impede de nos aproximarmos uns dos outros, ou seja dos tabus e marginalizações que construímos em virtude da cor da pele, da raça, da religião, da opinião diferente, das opções de vida que se desenquadram da nossa concepção mental e cultural. Jesus vem curar-nos de tudo isso, vem reintegrar-nos numa unidade que não é normal, mas que é necessária para que o Reino de Deus se possa instaurar entre os homens e se possa viver como filhos de Deus e irmãos de Jesus.
Este relato põe ainda em evidência uma outra realidade, talvez até mais quotidiana na nossa vida de cristãos e muito mais necessitada de conversão, de cura. É a realidade do nosso recurso a Deus para a solução de alguns problemas da nossa vida, a nossa relação quase comercial com Deus para que nos obtenha alguma cura, uma boa nota num exame, um bom emprego, em troca de uma vela ou do cumprimento de uma qualquer promessa. Obtida a graça, satisfeito o pedido e o desejo, continuamos a nossa vida, ou seja com os outros nove leprosos continuamos o nosso caminho como se nada se tivesse alterado ou não fosse necessária uma outra atitude de vida.
Este leproso samaritano mostra-nos como é necessário pedirmos a Deus o que nos faz falta, os bens que necessitamos na nossa vida, o próprio Jesus a isso nos convida, até mesmo através do Pai-Nosso, mas mostra-nos também que depois de alcançada a graça a nossa vida necessita não só de um momento de agradecimento, mas de uma reorientação, de um novo caminho e caminhar. Nada pode ser igual, nada se pode manter igual depois de alcançada a satisfação de uma necessidade por parte de Deus, porque se Deus nos concede um bem, uma graça, é para que a nossa vida possa ser diferente, possa estar mais próxima e de acordo com aquilo que é o projecto para a nossa realização.
Neste sentido temos que aprender muito com este samaritano, mas também com as palavras de São Paulo a Timóteo, de que Deus se mantém fiel apesar das nossas infidelidade mas que nos negará se nós o negarmos também. E não reconhecer um dom, uma graça recebida, não agradecer e não viver de acordo com esse dom de modo a que ele frutifique e cresça para o Reino de Deus é de alguma forma negar Deus, é recusarmo-nos a participar e a partilhar da realização da vontade de Deus em nós.
Peçamos assim a sabedoria do Espírito Santo para sabermos reconhecer o que Deus nos vai concedendo, o temor de Deus para nos mostrarmos agradecidos pelo recebido e a piedade para vivermos fiéis a esse mesmo dom.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

São Bruno, Fundador dos Cartuxos

Olhando para trás e fazendo a comparação com os nossos dias, os nossos ritmos e ruídos, não deixa de surgir esta questão: Que mundo, que ruídos, que ritmos levaram aqueles homens medievais a procurarem o silêncio, o refugio em lugares desertos, ritmos de vida tão sincronizados que hoje mesmo nos assustam, ainda que, mais do que nunca, sejamos escravos de um tempo totalmente contabilizado.
São Bruno, natural de Colónia, onde nasceu por volta de 1035, educado em Paris e com uma carreira promissora de eclesiástico, abandona tudo e todos para se refugiar num lugar isolado, onde o silêncio não se nota e o tempo parece que desapareceu, tão domesticados estão pela austeridade e disciplina de vida.
Não foi um refúgio prolongado porque muito prontamente Roma e o Papa Urbano II o convocam para ajudar na resolução dos problemas difíceis que a Igreja enfrenta. Parece que, e como diz São Bruno numa carta aos seus cartuxos, “são muitos os que desejam ir para lá, para esse lugar tranquilo e seguro, são muitos os que se empenham com algum esforço em atingi-lo, mas não o conseguem, são muitos também aqueles que depois de o terem alcançado são excluídos porque a nenhum deles o céu concede tal graça. Pelo que, quem tenha gozado de tal bem e o tenha perdido por qualquer circunstância há-de lamentar-se até ao fim, se de facto sentir alguma preocupação e interesse pela salvação da sua alma”.
São Bruno lamentava-se do que tinha perdido, ou lhe tinha sido inviabilizado pelas necessidades dos homens e da Igreja, mas alegrava-se e dava graças pelo conjunto dos irmãos que observavam a disciplina com inflexível rigor, com zelo infatigável e um ideal de santidade e perfeição incomparável.
Neste dia em que a Igreja celebra a sua memória recordamos o quanto nos falta de silêncio, e de disciplina e zelo para o alcançarmos.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

São Francisco e São Domingos em Roma

É antiga a tradição que diz que São Domingos e São Francisco se encontraram em Roma. São antigas também as representações artísticas deste encontro, de que a imagem anexa é um exemplo. É uma obra barroca espanhola e encontra-se no convento dominicano de San Pablo de Valladolid.
Assim, e face à antiguidade da tradição e das representações é inevitável que regressemos à “Vitae Fratrum Ordinis Praedicatorum”, a essa compilação que Gerard de Frachet compôs sobre a vida dos primeiros irmãos da Ordem dos Pregadores. É aí que encontramos o primeiro relato deste encontro e a fonte da representação iconográfica.
Certo frade menor, virtuoso e digno de crédito, companheiro durante muitos anos de São Francisco contou a alguns irmãos que o bem-aventurado Domingos, enquanto estava em Roma, suplicando a Deus e ao Papa a confirmação da Ordem, certa noite mergulhado na oração, como era seu costume, pareceu-lhe ver Jesus levando em sua mão três lanças. A Virgem Maria, de joelhos rogava-lhe que se compadecesse dos homens e que temperasse a sua justiça com a misericórdia.
Jesus respondia-lhe: Não vês a maneira como me tratam? Pode a minha justiça passar por alto tanto mal?
A Virgem disse-lhe: Tu sabes tudo e sabes que ainda há um caminho pelo qual os homens voltarão a Ti. Tenho um servo fiel, envia-o ao mundo como teu mensageiro. Os homens te buscarão e te confessarão Salvador do mundo, pois o és. Outro servo o ajudará a levar por diante a missão.
Respondeu-lhe Jesus: Agrada-me o que me pedes. Diz-me a quem queres confiar tão difícil missão? Foi então que a Virgem Maria apresentou o bem-aventurado Domingos a Jesus, o qual disse: Sei que cumprirás o que dizes. Igualmente lhe apresentou o bem-aventurado Francisco.
O bem-aventurado Domingos ficou a contemplar o seu companheiro e, embora o não tivesse visto anteriormente reconheceu-o imediatamente no dia seguinte quando por casualidade o encontrou na igreja. Dirigiu-se a ele, beijou-o, abraçou-o e disse-lhe: ‘Tu és meu companheiro, irás sempre comigo, permaneçamos juntos’:
Contou-lhe a visão que tivera. E as suas vidas converteram-se em uma só alma e em um só coração diante de Deus. E isto mesmo desejaram para os seus filhos para sempre.”
O sonho de Domingos descrito neste relato de Gerard de Frachet é também a fonte iconográfica de uma outra representação, de que podemos encontrar um exemplar exposto no convento de Mafra.
Com este relato e estas duas imagens prestamos a nossa homenagem a São Francisco, que conjuntamente com São Domingos deu um novo rosto à Igreja de Cristo.

domingo, 3 de outubro de 2010

Homilia do XXVII Domingo do Tempo Comum

Os discípulos pedem a Jesus que lhes aumente a fé. É um pedido normal, consciente, de quem não só se sabe pecador mas também muito frágil, muito incipiente no conhecimento da revelação e na fidelidade que lhe deve ser consequente. Eles sabem muito pouco das condições que permitem o acesso ao Reino de que Jesus fala e sabem também das poucas condições que têm, ou não têm, de como não estão à altura das exigências que pressupõem vislumbrar. Neste pedido percebe-se, e dá se nos a perceber a consciência que os Apóstolos tinham que não se tratava de uma ideologia a que tinham que aderir, mas que era um processo de vida, era uma conversão que implicava muito mais aplicação da sua parte e um algo mais que não estava nas suas mãos.
A resposta de Jesus ao pedido dos Apóstolos é de alguma forma desconcertante, pois constrói-se numa lógica que assenta num conjunto de condições que são estranhas a este mundo. Assim, não é normal que se mova uma árvore enraizada no seu terreno e se consiga lançá-la ao mar e aí sobreviva plantada. E mais ainda, que tudo isto se faça com algo tão pequeno, tão minúsculo, comparável a uma semente de mostarda. Há uma desproporção abismal entre a fonte, o motor da acção, e os resultados da mesma, há um contracenso total entre os meios e os fins.
Contudo, esta disparidade serve apenas para mostrar como a fé funciona, como ela se desenquadra de tudo o que pode ser concebido mentalmente, de acordo com as leis do pensamento humano. Há razões que a razão desconhece e no caso da fé há processos e meios cujos fins ultrapassam tudo o que é racionalmente concebível, previsível, calculável.
Perante esta realidade a atitude a tomar é a da atenção solícita, a da disponibilidade total a um dom que nos escapa da mão e do controlo mas que não podemos deixar de procurar e de querer conquistar e possuir. E é tendo em perspectiva esta situação, este processo, que Jesus continua a parábola narrando um procedimento que choca com a nossa mentalidade social, que podemos considerar como uma violação e um abuso de autoridade e poder.
Assim, Jesus narra que depois de um dia de trabalho, o servo que chega a casa vê-se ainda confrontado com o pedido do senhor e patrão para que lhe prepare a comida e o sirva, podendo só depois disso alimentar-se na sua fraqueza. É um escravo que passou o dia a guardar os rebanhos e que no momento do descanso se vê ainda solicitado com este extra de trabalho do serviço à mesa.
Para nós hoje, e face à organização social e laboral, aos direitos dos trabalhadores, é algo que nos choca, mas tendo em conta a cultura e o tempo histórico em que a parábola é contada estamos perante algo que é uma revolução, algo muito próximo da parábola do filho pródigo. Os escravos que tomavam conta do gado no campo não estavam autorizados a aproximar-se do senhor e muito menos da sua mesa. Esse era um serviço dos íntimos, daqueles que podiam partilhar e privar da presença do senhor e patrão. Entre nós, e até há ainda bem poucos anos, podíamos encontrar em algumas casas mais abastadas os criados de fora e os criados de dentro, e as tarefas não se confundiam, nem havia misturas.
Ora, nesta parábola há misturas, há uma alteração de funções e um assumir de uma dignidade que uma vez mais não é natural e foge aos parâmetros do estabelecido. O escravo ao servir o senhor abandona a sua condição de escravitude, de afastamento da casa e mesa do senhor, e passa a participar e partilhar da sua intimidade, também da sua mesa de que depois se pode alimentar. Adquire assim uma outra natureza e uma outra dignidade, que não lhe advêm do trabalho realizado mas do senhor que o introduz dentro de casa e junto de si através do pedido feito. É o senhor que o transforma e lhe dá o que por ele próprio não conseguiria obter por si e pelo seu esforço.
Tudo isto se relaciona com a fé e com o pedido dos Apóstolos a que o Senhor lhes aumente a fé. Há um trabalho quotidiano a realizar, um trabalho da fé, que se compara ao trabalho do campo do escravo. Está nas nossas mãos fazê-lo, procurar fazê-lo, percebendo os limites e as possibilidades que se nos apresentam nesse conhecimento da vontade de Deus e na busca da vivência fiel a essa mesma vontade.
Mas quando chegamos ao fim do trabalho, dessa tentativa de conhecimento e fidelidade, temos que perceber que há ainda um serviço a cumprir, uma partilha a realizar, a do serviço à mesa do Senhor, que nos alterará definitivamente não por nosso mérito mas por bondade e amor do Senhor. É então que a fé se faz dom e supera todas as nossas expectativas, todas as nossas buscas, nos ultrapassa na fragilidade da nossa condição, como pequeno grão de mostarda é capaz de mover montanhas.
A Eucaristia, com o que comporta de mesa e refeição, de intimidade com o Senhor, e o mandamento do amor, a caridade e a solidariedade, como o que implica de serviço a um outro que partilha a nossa vida, são ou podem ser, afinal, esse extra que nos é exigido ao final de cada dia, de cada jornada, pode ser esse serviço que nos introduz na intimidade do Senhor e nos dá outro estatuto, outra dignidade.
Peçamos portanto, aumenta Senhor a nossa fé, mas também a nossa disponibilidade e abertura para depois das canseiras, das buscas e das lutas estarmos dispostos a servir-te à mesa, a encontrarmo-nos contigo na intimidade da Palavra, do Pão e dos irmãos, a fazermos o que devemos fazer.

sábado, 2 de outubro de 2010

Os Anjos da Guarda

Habituámo-nos a eles e tão habituados andamos que já nem damos conta da sua presença. Mas estão lá, permanecem, ainda que silenciosos, transparentes, atentos, à espera. Funcionamos com eles como com o “kit de emergência”, confiantes que estejam lá, à espera que os procuremos quando tivermos necessidade deles.
E no entanto quando os procuramos não estão, ou não têm a resposta que queríamos, parece que se ausentaram para parte incerta e nos deixaram sós, entregues a nós mesmos.
E de facto não estão lá, porque simplesmente não podem estar. Eles caminham à nossa frente, abrem-nos à Porta, ateiam-nos para a Luz, despertam-nos para a Vida, guiam-nos no Caminho. Estão sempre à frente e de pé como no quadro de Jacek Malczewski. Onde mais poderiam estar aqueles que contemplam Deus face a face senão à frente?
Assim, quando os procuramos, quando nos dirigimos a eles, a cada um deles, não pode ser senão para lhes pedir que nos conduzam a Deus, para nos convertermos, para nos levantar-mos da nossa preguiça e seguirmos nas suas pisadas, para nos ensinar a ser para com os nossos irmãos outros tantos anjos da guarda.