domingo, 26 de abril de 2015

Homilia do IV Domingo do Tempo Pascal

As leituras que escutámos neste Quarto Domingo do tempo Pascal, conhecido nos três anos litúrgicos como Domingo do Bom Pastor, conduzem-nos à identidade de Jesus, à sua personalidade, intuída não só por ele próprio mas também pelos discípulos já após as aparições do ressuscitado.
Neste sentido, é interessante ver na leitura dos Actos dos Apóstolos como São Pedro procura apresentar a pessoa de Jesus e a sua identidade.
Diante daqueles homens que tinham condenado Jesus e permitido a sua morte, porque não se encaixava na perspectiva de salvador e libertador do jugo do império romano, o apóstolo afirma a salvação operada por Jesus à luz do próprio nome.
Todos sabiam que o nome Jesus significava “Deus salva” ou “Deus vem salvar”, e portanto o apóstolo São Pedro procura mostrar àqueles homens e mulheres como de facto Jesus era o Messias esperado, o salvador, mais que não fosse pelo nome que lhe tinha sido dado.
Portanto, não havia que duvidar da identidade e da pessoa de Jesus, ainda que não tivesse libertado o povo do jugo e da opressão romanas. Jesus tinha de facto operado a salvação de todos os homens, tinha realizado a libertação do mal, e aquele homem curado diante de todos e pelo poder do nome de Jesus era a prova mais que evidente desse facto.
Contudo, o conhecimento desta identidade da pessoa de Jesus, para que possa ser revolucionário e libertador, não pode ficar apenas num plano teórico, não pode ser uma mera ideia, por muito nobre que seja, pois não vivemos só de ideias mas de relações que estabelecemos até com as próprias ideias.
E neste sentido o Evangelho de São João convida-nos a estabelecer uma relação com Jesus, a ter um conhecimento fundado e fundamentado através de uma imagem ou metáfora que Jesus usa para se identificar a si próprio, como é a do “Bom Pastor”.
É uma imagem que já o Antigo Testamento e nomeadamente alguns profetas utilizam para falar da relação de Deus com o povo eleito. Para um povo nómada, habituado a lidar com animais e rebanhos, era a imagem perfeita para significar o cuidado e a atenção de Deus para com o povo.
Jesus vai contudo mais longe, aprofunda essa imagem e relação, contrapondo não só a acção e os direitos que assistiam aos pastores, que podiam abandonar o rebanho face a determinados perigos e portanto de certa maneira se tornavam mercenários, mas pondo em evidência o amor que o verdadeiro pastor e dono das ovelhas manifestam diante delas, a vida que colocam em jogo para que o rebanho não se perca.
A entrega da vida do pastor pelas ovelhas é assim a manifestação do amor e da salvação, e na medida em que se acolhe essa entrega, que se opera uma apropriação por parte das ovelhas dessa vida entregue, estabelece-se uma relação e cria-se uma intimidade que permite um outro conhecimento.
A Igreja primitiva assumiu de forma clara esta metáfora do bom pastor e do que ela significava e portanto não é difícil encontrar nas primitivas representações iconográficas de Jesus Cristo a imagem do pastor com a ovelha aos ombros. As pinturas das catacumbas testemunham-nos esta assimilação e apropriação.
Mas testemunham-nos também uma outra ideia que encontramos na Carta de São João que lemos neste domingo. O Bom Pastor conduz as ovelhas para o paraíso perdido, para essa possibilidade de se manifestar o que verdadeiramente somos, ou seja, a nossa semelhança com Deus.
Desta forma, tem todo o sentido que rezemos neste domingo pelas vocações consagradas, sacerdotais e religiosas, pois no seu plano salvador Deus continua a chamar por homens e mulheres que queiram levar os seus irmãos aos ombros para os conduzir ao encontro do Bom Pastor que os reconduzirá à casa do Pai.
Hoje, quando tantos homens e mulheres, e sobretudo jovens, não têm conhecimento do nome de Jesus, do poder que nele se encerra, e da liberdade que nos alcança, somos chamados a tomar consciência desta urgente missão da Igreja, de todos nós baptizados, e a fazer alguma coisa por ela.
A oração é a primeira realidade que nunca pode deixar de estar presente e a acompanhar os pastores e as ovelhas. Rezemos pois pelos pastores da Igreja e pelas ovelhas que de modo particular sentem o chamamento de Jesus a segui-lo.


Ilustração:
“Bom Pastor”, de Philippe de Champaigne, Museu das Ursulinas de Mâcon.  

domingo, 12 de abril de 2015

Homilia II Domingo da Páscoa

Após uma semana da celebração da Páscoa da Ressurreição de Jesus voltamos a encontrar-nos, voltamos a escutar a Palavra de Deus e a confrontar-nos com os relatos desconcertantes desse grande mistério que foi a ressurreição de Jesus e a dificuldade da sua compreensão por parte dos discípulos.
Para as Igrejas cristãs, Católica, Orientais, Ortodoxa, este é o domingo de Tomé, desse discípulo que num momento impulsivo se oferece para acompanhar Jesus até à morte, mas que após a ressurreição e os testemunhos dos companheiros tem dificuldade em acreditar. Ele necessita de provas, necessita ver com os seus próprios olhos.
Neste sentido, Tomé é mais um entre o grupo, um grupo dividido entre a esperança e a fé nas palavras de algumas mulheres, como Maria Madalena que diz ter visto o Senhor, e a desilusão e o abandono como os discípulos de Emaús que partem de regresso às suas vidas normais já sem qualquer esperança.
Podemos assumir que também Tomé já se tinha separado do grupo, que vivia a desilusão, pois o relato de São João diz-nos que ele não estava presente no primeiro momento das aparições de Jesus. Tomé é um ausente, um descrente face à novidade da ressurreição e à evidência da morte que pôde ver e testemunhar.
Em Tomé encontra-se assim cada um de nós quando fazemos a experiência da desilusão, poderíamos dizer do desencontro de Deus com as nossas expectativas e esperanças, com as nossas necessidades. Um deus feito à nossa medida e à medida das nossas necessidades confronta-se com o Deus verdadeiro que tem outros caminhos que não são os caminhos dos homens.
Hoje celebra-se também o Domingo da Divina Misericórdia instituído pelo Papa e hoje Santo João Paulo II, e ainda que nada nas leituras deste domingo nos fale directamente dela, a acção de Jesus para com Tomé é o maior exemplo e testemunho da misericórdia de Deus.
Na sua misericórdia Deus vem ao encontro da humanidade, fez-se homem para que o homem pudesse participar da sua condição divina, desceu até ao mais recôndito da condição humana como é a experiência da morte, e mesmo quando o homem se recusa a acreditar, exige provas, e se encerra em si próprio, Deus não deixa de vir ao seu encontro, de se lhe colocar diante com a oferta do seu amor incondicional.
Tomé pôde fazer essa experiência, pôde verificar com os seus olhos os sinais da paixão e morte de Jesus, que exigia na sua racionalidade, mas pôde também verificar como afinal aquele mesmo Jesus tinha estado presente nos momentos da dúvida, da exigência das provas, no momento em que se tinha encerrado em si próprio por medo, como tão bem metaforicamente nos dizem as portas que se encontravam fechadas.
A aparição de Jesus a Tomé é assim uma profunda experiência da misericórdia de Deus, um Deus que não abandona nem deixa de se apresentar àqueles que exigem provas, que buscam um sentido, que procuram compreender, que tantas vezes se afastam porque não compreendem ou se sentem incapazes de viver em fidelidade a exigência do amor divino.
Jesus continua hoje a apresentar-se e a oferecer-se, pedindo apenas, como pediu a Tomé, que não sejamos incrédulos mas crentes, que acreditemos que é o Messias, pois é a fé Nele que vence o mundo, como escutávamos na Leitura da Primeira Epístola de São João, é a fé Nele que vence as nossas desilusões e frustrações, o nosso egoísmo que no encerra aos outros que são imagem e presença de Deus.
O episódio de Tomé com Jesus termina com a formulação daquela que poderemos chamar uma nova bem-aventurança, a bem-aventurança da fé, pois são felizes os que acreditam sem terem visto. Procuremos pois viver essa bem-aventurança, conscientes que a fé é um dom, mas um dom que nos compete procurar, fundamentar, viver, pois como nos diz São Paulo a fé sem obras é vã, sem a sua experimentação não nos servirá para vencer o mundo.

 
Ilustração:
“A Incredulidade de São Tomé”, de Vicente Lopez Portaña, Igreja de São Tomé em Toledo.