terça-feira, 31 de dezembro de 2013

No princípio era o Verbo. (Jo 1,1)

A terminar o ano e a semana da Oitava do Natal eis que a Liturgia da Palavra nos oferece uma vez mais o prólogo do Evangelho de São João.
Texto elaborado, composto com muito cuidado, no qual palavras como trevas, glória, luz, Verbo nos deixam perplexos pela abstracção, pela dificuldade de conjugação de todas as realidades entre si. Quanta aridez experimentada ao ler este texto que nos introduz na narração da vida de Jesus segundo a experiência do Apóstolo João.
E no entanto, bem lá no meio da aridez uma pérola perdida, um pequeno oásis, que nos dá a luz para compreender, que se faz chave de leitura de todo o texto: “o Verbo fez-se carne e habitou entre nós!”
Tudo se explica, porque afinal compreendemos que Deus estabeleceu entre nós a sua tenda, fez-se um de nós, assumiu a nossa carne com tudo o que ela tem de limitações e finitude. O Verbo, o Cristo, assume a nossa condição humana com tudo o que ela comporta de precário e instável.  
Deus, por Jesus Cristo, vem ao nosso encontro, coloca-se a caminhar connosco atravessando vales e desertos, perspectivando verdes campos de paz e de realização, iluminando as sombras e trevas da nossa existência.
E tudo se faz na radicalidade da nossa condição, da nossa carne, desmentindo qualquer pretensão de ilusão etérea, de realidade virtual. João viu a glória de Jesus, uma glória expressa de modo total, brutal até, na carne suspensa na cruz. Era o corpo entregue para que o pudéssemos verdadeiramente receber.
Não foi um equívoco, foi bem real a experiência e as suas consequências, porque a glória é o amor, é a descida até ao abismo, deixar-se fazer tudo para consigo levar tudo.
No princípio era o Verbo e o Verbo fez-se carne para que a nossa carne possa ser Verbo, possa experimentar a glória na sua condição limitada e frágil.
Face a esta transformação que alegria ser humano, constituído desta carne que o nosso Deus assumiu, e por meio dela experimentar o amor de Deus e viver a glória divina.
Deste-me um corpo Senhor, porque não queres sacrifícios nem holocaustos, mas apenas que este corpo seja habitação tua, manifestação da tua glória.

 
Ilustração: “Jesus Salvador”, de Josefa de Óbidos.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Ana pôs-se a falar do menino a todos. (Lc 2,38)

Maria e José sobem ao templo para cumprir o rito da apresentação do menino. Para eles é a primeira vez que tal acontece, mas para aqueles que se encontram no templo, sacerdotes e funcionários, é apenas mais um na rotina quotidiana.
Contudo, no rebuliço dessa rotina, eis que duas pessoas se apercebem de algo especial. Simeão e Ana, que desde há muito esperavam a vinda do Messias, impelidos pelo Espirito apercebem-se que aquele menino, trazido com carinho e humildade por Maria e José, é o Messias esperado, o cumprimento de tudo o que lhes tinha sido anunciado pelos profetas.
Que alegria para ambos encontrarem-se face a face com o Messias, verem na pequenez daquele menino a acção grandiosa de Deus. Mas que responsabilidade também, pois o tempo de espera passou à história e é necessário olhar o futuro.
Tendo presente o futuro, Simeão prepara Maria para os desafios que a esperam e que esperam o Menino. A dor da perda que como uma espada há-de trespassar-lhe o coração.
Ana, numa atitude mais universal, mais abrangente, dirige-se a todos e começa a falar do Menino. Que lhes teria dito? O que anunciaria? Onde estava o extraordinário?
O texto evangélico não nos diz, mas deixa-nos o desafio da atitude, pois qualquer um, mais velho ou mais novo, não pode ficar silencioso após o encontro com o Menino. No Mistério da Incarnação acontece uma tal revolução que é impossível silenciá-la, deixá-la escondida no silêncio da nossa experiência pessoal.
O encontro com o Menino provoca-nos na partilha da boa nova, impele-nos a anunciar aos outros que Deus veio ao nosso encontro, que Deus não nos abandonou, que Deus nos ama ao ponto de se fazer uma criança para que não o temamos e o acolhamos no nosso coração e na nossa vida.
A profetisa Ana esperou até aos oitenta e quatro anos para ver o Menino, para ver cumpridas as promessas do Messias. Saibamos nós, em cada Natal, não deixar passar a oportunidade e o momento de nos encontrarmos com o Menino e de partir a anunciá-lo aos outros.

 
Ilustração: “Simeão e Ana reconhecendo Jesus”, de Rembrandt, Kunsthalle Hamburg.

 

domingo, 29 de dezembro de 2013

Homilia da Festa da Sagrada Família

Após as leituras deste Domingo da Sagrada Família não podemos deixar de assumir e afirmar publicamente que elas nos atingiram, nos provocaram a cada um de nós na sua situação particular. Por muito que tenhamos estado distraídos as recomendações de que a mulher deve ser submissa ao marido, que os filhos devem respeitar os pais, e os maridos devem cuidar as esposas, não nos passaram despercebidas e podemos até imaginar que em algumas refeições de família estas recomendações e os textos bíblicos que as comportam serão objecto de debate.
Este é certamente um dos domingos no qual as leituras mais nos despertam, uma vez que todos nos situamos numa realidade referida, ou somos pais, ou somos filhos, ou somos esposos. Não existimos sem uma relação familiar e quando ela é colocada em questão, teoricamente ou de forma prática, é inevitável que nos sintamos implicados, questionados, provocados.
Neste sentido é bom ter presente que as três leituras mantêm um vínculo muito estreito entre si, mostrando-nos que a família é mais que uma realidade sociológica ou antropológica, que é mais que a célula base da sociedade. À luz das leituras que escutámos a família é uma experiência do dom de Deus, é uma realidade divina.
A leitura do Livro de Ben-Sira desafia-nos na forma como vivemos e experimentamos a misericórdia divina, mostrando-nos que a misericórdia e a compaixão pelos mais velhos através do perdão é a forma de nos prepararmos para a experiência da própria misericórdia e compaixão divina, para o perdão de Deus. É o amor ao próximo, a capacidade de lhe perdoar as suas faltas, de o desculpar dos seus erros, que nos abre e dá a experiência para podermos perceber e acolher o perdão de Deus.  
Para Ben-Sira necessitamos aprender a ser filhos e a ser pais para compreender o amor de Deus, para o perceber, acolher e traduzir, e essa aprendizagem só é possível na família que se respeita e ama, que vive na justiça as liberdades e responsabilidades de cada um.
A leitura da Carta de São Paulo aos Colossenses aprofunda as ideias do sábio Ben-Sira e mostra-nos que as relações familiares e as suas exigências não podem deixar de ter como modelo a própria realidade divina, as três pessoas da Santíssima Trindade.
Neste contexto São Paulo coloca um forte acento na necessidade do perdão como realidade que traduz não só as pessoas divinas, a própria acção de Deus na história do homem, mas também o verdadeiro amor. Quem ama é capaz de perdoar, é capaz de compreender os erros do outro e passar adiante.
O episódio da fuga da Sagrada Família para o Egipto, que nos foi relatado pelo Evangelho de São Mateus, mostra-nos como o dom de Deus é o fundamento constituinte da família e pode muitas vezes levar a situações imprevisíveis, insuspeitadas, como aconteceu com José.
É um episódio que uma vez mais nos vem confirmar que a vida da Sagrada Família de Nazaré não foi fácil, teve os seus percalços e contratempos. Mas é também um episódio que estranhamente se centra sobre José, cujo personagem principal é José, e no qual Maria e Jesus nos aparecem apenas com a mãe e o menino.  
Tal acontece porque estamos face a alguém a quem foi oferecida uma outra realidade familiar diferente da habitual, da antropologicamente comum. José constitui uma família a partir do dom do Filho de Deus, do acolhimento do dom de Deus, abdicando dos seus projectos familiares e da sua paternidade biológica.
A partir deste acolhimento as suas relações familiares são um puro dom, um dom total, quer a Maria quer a Jesus, desaparecendo assim a pretensão patriarcal de propriedade ou paternidade. A partir deste dom percebe-se a responsabilidade de José bem como o seu silêncio obediente. Para José nada mais havia a fazer ou a dizer para além de salvaguardar a integridade do menino, do dom confiado por Deus à sua vida como homem, como esposo e como pai.
Festejar a Sagrada Família é assim uma forma de percebermos o dom que somos convidados a acolher, a misericórdia e o amor de Deus que somos convidados a partilhar e a traduzir na nossa realidade, a disposição que nos é solicitada de nada querer para nós mas de tudo consagrar a Deus.
Este desafio não se confina contudo apenas à família, à dimensão familiar. Convidados a constituir uma grande família através da humanidade, somos responsáveis pela vivência destes mesmos valores e realidades nas nossas outras relações. De facto, o outro é sempre princípio e fim da minha realização, o outro é sempre um dom de Deus que é oferecido ao nosso acolhimento.
Saibamos pois ultrapassar os limites das nossas relações familiares e com a graça do Espirito Santo e à imagem de Jesus constituir uma outra família, fundada no dom que Deus nos faz do outro que é nosso irmão.

 
Ilustração: “Regresso da Sagrada Família do Egipto”, de Francesco Conti, Museu de Arte de Cleveland.       

sábado, 28 de dezembro de 2013

A tarefa que compete a todos

 
Há uma forma de pregação que nos compete a todos como tarefa diária: levar cada um o Evangelho às pessoas com quem se encontra, tanto aos mais íntimos como aos desconhecidos.
Papa Francisco, Evangelii Gaudium, 127.

Ilustração: Painel do Retábulo de São Domingos em Caleruega.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Os planos uniformizam

 
Quando somos nós que queremos construir a unidade com os nossos planos humanos, acabamos por impor a uniformidade e a homologação. E isto não ajuda a missão da Igreja.
Papa Francisco,Evangelii Gaudium, 131.

Ilustração: Base de candelabro na galeria dos espelhos do Palácio de Versalhes.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O Espirito Santo suscita a diversidade

 
As diferenças entre as pessoas e as comunidades, por vezes, são incómodas, mas o Espirito Santo, que suscita esta diversidade, de tudo pode tirar algo de bom e transformá-lo em dinamismo evangelizador que actua por atracção.
Papa Francisco, Evangelii Gaudium, 131.

Ilustração: Estandartes do Rosário na Peregrinação do Rosário a Lourdes em 2013.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Hoje desceu do céu a paz

 
Hoje desceu do céu para nós a verdadeira paz. Hoje brilhou para nós o dia de uma nova redenção, que foi preparado desde os tempos antigos e nos traz a felicidade eterna.
 
VOTOS DE UM SANTO NATAL PARA TODOS

Ilustração: Altar do Mistério do Nascimento na Basílica do Rosário em Lourdes.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

VOTOS DE SANTO NATAL

 
Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado. Tem o poder sobre os ombros e será chamado Conselheiro Admirável, Deus Forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz.

 
A todos os amigos e viajantes, que nos visitam nesta noite, votos de um Santo Natal.

Ilustração: “Menino Jesus”, de Andreas Jacob Muller.
 

O Senhor Deus fará brotar a justiça

 
Assim como a terra faz brotar os gérmenes, e o jardim as sementes, assim o Senhor Deus fará brotar a justiça e o louvor diante de todas as nações.
Isaías 61,11

Ilustração: Nascimento, Desenho de Edward Burn-Jones para uma placa de bronze, Fitzwilliam Museum.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Sétima Antífona do Ó

 
Ó Emanuel, nosso rei e legislador, esperança das nações e salvador do mundo: vinde salvar-nos, Senhor nosso Deus.
7º Antífona do Ó

Ilustração: Cristo Rei, pintura no tecto da igreja luterana de Balbronn, Alsácia.

domingo, 22 de dezembro de 2013

Homilia do IV Domingo do Advento

Estamos a celebrar o quarto e último domingo do Advento e a Liturgia da Palavra, através dos textos do Profeta Isaías e do Evangelho de São Mateus, apresenta-nos as figuras de José e do rei Acaz.
Alguns séculos os separa no tempo histórico, mas podemos dizer que se aproximam pelo facto de um e outro serem descendentes de David e depois pelo dilema que atravessam face ao filho que lhes é prometido.
São homens que têm os seus projectos, um tem projectos políticos e governamentais, outro tem projectos matrimoniais, projectos humanos que de um momento para o outro se vêem atravessados por uma proposta divina, por uma promessa que altera todos os planos.
Acaz é um rei que se encontra sitiado na sua cidade de Jerusalém, um rei que não aceitou uma aliança política e militar local e se refugiou numa aliança mais poderosa mas também mais distante.
José é um homem que vê o seu projecto matrimonial e patriarcal derrubado por um filho que não é seu e por isso se refugia no silêncio, num projecto de repúdio secreto, que inevitavelmente o isolará e fará sofrer.
São projectos e decisões humanas, projectos de segurança e de certa forma de sobrevivência face aos desafios que a realidade coloca. Numa e noutra situação, e apesar da fragilidade das garantias, parecem ser a solução ideal.
Face a estas soluções humanamente assumidas, a intervenção de Deus, a oferta de uma outra realidade, aparece como algo verdadeiramente catastrófico, desestabilizador, pois não só coloca em causa a decisão tomada como aponta para uma necessidade de risco elevado que é necessário correr.   
Num e noutro caso, tanto para Acaz como para José, a proposta de Deus é o acolhimento de um filho, de um filho que se apresenta como uma resposta totalmente outra e totalmente diversa, um filho que é dom de Deus para a realização do projecto de salvação.
Para Acaz significa o desafio de acreditar que a promessa feita ao rei David, de que a sua descendência não desapareceria, se mantinha de pé, apesar dos erros e pecados dos descendentes, e portanto não devia estar tão condicionado às alianças e aos perigos que o ameaçavam. Tal como lhe diz o profeta essas ameaças desaparecerão ainda antes do filho atingir a idade de conhecer o mal e o bem.
Para José significava que a sua tão desejada paternidade não seria biológica, não seria carnal, mas seria tão verdadeira e tão necessária como se o fosse, porque o Filho de Deus que Maria transportava no ventre necessitava de um pai humano para ser introduzido na vida dos homens, na sua cultura e na sua fé, na sua história e no seu futuro.
As duas histórias e os dilemas que acarretam mostram-nos que frequentemente aquelas realidades que parecem ser uma desordem, uma revolução nas nossas vidas, acabam por se revelar verdadeiras fontes de libertação e salvação. O Espirito de Deus leva-nos sempre mais longe do que poderíamos alguma vez suspeitar.
O convite do profeta Isaías para que o rei Acaz peça um sinal e o convite do anjo a José para que não tema o mistério que Maria transporta em si, mostram-nos que no meio dos nossos desastres, das nossas infidelidades, dos nossos medos, dos nossos passos incertos, Deus não deixa de estar presente, não deixa de se fazer presente e de modo quase táctil para que nós arrisquemos confiar nele.
Ao aproximar-se o Natal, em que podemos apreciar o Menino Deus na sua humildade e fragilidade de criança recém-nascida, não pode deixar de se colocar a questão da nossa confiança e do nosso medo face a Deus. Afinal de contas confiamos ou temos medo? Ousamos arriscar a confiança da fé ou refugiamo-nos nas nossas certezas e seguranças humanas?
José, numa atitude extraordinária, arriscou não temer, o que lhe valeu a capacidade de reconhecer a presença de Deus ao ponto de se silenciar para sempre, de não necessitar dizer mais nenhuma palavra. No amor confiante não necessitou perguntar nem dizer mais nada.
Que a contemplação do Filho de Deus menino deitado numa manjedoura ou nos braços de Maria, guardados por José, alimente a nossa confiança, a nossa fé, de modo a ousarmos não necessitar de mais palavras.

 

Ilustração: “São José Carpinteiro”, de Georges de la Tour, Museu do Louvre.

Sexta Antífona do Ó

 
Ó Rei nas nações e Pedra angular da Igreja: vinde salvar o homem que formastes do pó da terra.
6º Antífona do Ó

Ilustração: Jesus em Cafarnaum, de Rodolfo Amoedo, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Quinta Antífona do Ó

 
Ó Sol nascente, esplendor da luz eterna e sol de justiça: vinde iluminar os que vivem nas trevas e na sombra da morte.
5ª Antífona do Ó

Ilustração: Sermão da Montanha, na igreja de São Mateus em Copenhaga.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Homilia da Tomada de Posse da Paróquia de Cristo Rei

Meus Irmãos
Não podia ser mais oportuna, para esta celebração de tomada de posse como Pároco de Cristo Rei, a leitura que escutámos do Evangelho de São Lucas, no qual nos é relatado o anúncio do anjo Gabriel a Maria.
É um texto de marcados contornos vocacionais, como outros que encontramos na Sagrada Escritura. Um texto em que nos confrontamos com o chamamento de Deus, o convite de Deus a uma missão, neste caso trata-se da maternidade do Filho de Deus; a consciência das dificuldades e limitações por parte do chamado, Maria contrapõe às palavras do anjo a sua virgindade; e a promessa de que o chamamento, o projecto de Deus, é suficientemente poderoso e eficaz para superar essas dificuldades e limitações, a sombra do Altíssimo virá sobre Maria.
Tomar posse como pároco de uma comunidade de fiéis é também um chamamento de Deus para uma missão, ao qual é impossível não apresentar as nossas dificuldades e limitações, como o fez a jovem virgem de Nazaré. O nosso percurso de vida, opções vocacionais religiosas, tarefas ministeriais enquanto dominicano, fazem com que essas dificuldades e limitações pairem também no espirito face ao chamamento que o Senhor me faz para ser Pároco de Cristo Rei.
Contudo, e tal como a Virgem Maria, diante das limitações e dificuldades, não posso e não podemos, cada um de nós, deixar de fazer um acto de fé, não podemos deixar de nos abandonar à confiança da acção e do poder de Deus. Tal como Maria, necessitamos descentrar-nos de nós próprios e dos nossos projectos e assumir a proposta de Deus.
Só dessa forma, deixando de ser o centro e passando para a periferia, Deus se pode tornar presente na nossa vida e na nossa missão, só nesse processo de conversão Deus se pode tornar Emanuel, Deus connosco.
Um dominicano do século catorze bastante importante na história da mística cristã, o Mestre Eckhart, dizia aos seus ouvintes, que se não formos capazes de nos esvaziarmos de nós próprios Deus nunca terá espaço para fazer a sua habitação em nós.
A importância e a urgência deste processo advêm-lhe não só da possibilidade de Deus nascer em nós, de Deus fazer a sua habitação em nós, mas também da possibilidade de nos encontrarmos com os outros de uma forma mais completa, de uma forma mais plena e livre.
Quando o Papa Francisco nos interpela sobre a dimensão missionária da Igreja, a missão a que todos somos chamados, não deixa de nos advertir que, para que tal missão possa ser levada a cabo, necessitamos obrigatoriamente de nos deixarmos de preocupar connosco, temos que sair dos nossos esquemas, temos que nos descentrar do acessório e do que é apenas meio, para nos centrarmos no verdadeiramente fundamental.
Para São Domingos o fundamental, a sua grande preocupação, e para esse fim foi fundada a Ordem dos Pregadores, era a salvação das almas, ou seja o encontro com a verdade de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, a verdade que nos liberta e redime na nossa humanidade.
Como dominicano, e ao assumir o ofício de pároco de Cristo Rei, não posso deixar de ter presente essa preocupação e consequentemente a necessidade de vos apresentar Jesus e proporcionar o seu crescimento no vosso coração e na vossa vida.
Com este objectivo, e servindo-me da imagem do pastor, que o Papa Francisco utiliza para falar dos Bispos na Exortação Apostólica “A Alegria do Evangelho”, (nº31) umas vezes irei à frente de vós, outras vezes irei no meio de vós, e outras vezes atrás de vós.
Irei à frente de vós na exigência de vida, no testemunho fiel e alegre, no exercício do ministério sacramental; irei convosco partilhando os momentos de alegria e tristeza, os momentos de crescimento pessoal e comunitário; irei atrás de vós porque há irmãos mais débeis e cansados, que necessitam de tempo, mas também porque não somos donos exclusivos da verdade, nenhum de nós, e há homens e mulheres que pela sua posição avançada no terreno da nossa sociedade e cultura nos podem indicar que outro caminho é possível.
Contudo, este caminhar só é possível com a vossa participação, com a vossa fé e esperança, com o amor que nos faz reconhecer os outros como membros imprescindíveis à vida do corpo que é a nossa comunidade, a nossa igreja, a nossa paróquia.
Todos somos necessários e todos ainda somos poucos face aos desafios que o mundo nos coloca como discípulos de Jesus. Que o Espirito do Altíssimo desça sobre nós e nos dê a ousadia de Maria de arriscar servir o projecto de ser Mãe de Deus.

Ilustração: “A Anunciação”, de Beato Angélico, Claustro de São Marcos, Florença.

 

Quarta Antífona do Ó

 
Ó Chave da Casa de David, que abris e ninguém pode fechar, fechais e ninguém pode abrir: vinde libertar os que vivem nas trevas e nas sombras da morte.
4º Antífona do Ó

Ilustração: Jesus libertando os infernos, Ícone Russo, Museu do Hermitage.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Tu vais guardar silêncio! (Lc 1,20)

Os santuários estão cheios, apinham-se de gente na expectativa do ritual que se repete cada dia, cada ano.
No templo de Jerusalém um murmúrio percorre a multidão, uma inquietação atinge cada um que compõe a massa expectante. Zacarias, o sacerdote, há muito que entrou no interior do templo e não sai.
No templo moderno do centro comercial, uma outra multidão inquieta, irrequieta, fervilha e murmura. Não há tempo, já se esgotou, que aborrecimento, e impacientemente culpam-se os adolescentes irreverentes que não se calam.
Entre os murmúrios e as luzes, face à euforia de algo que se desconhece, num e noutro templo, eis que um convite se faz premente, silêncio! Silêncio por favor!
Zacarias saíu mudo do interior do templo, confirmando à multidão inquieta que algo tinha acontecido, algo de muito extraordinário. É o princípio de um silêncio que também a sua esposa Isabel vai guardar durante cinco meses, partilhando a mudez do sacerdote.
Um silêncio necessário, obrigatoriamente necessário, porque um e outro necessitam passar do estado de espera para o estado de acolhimento. Ambos necessitam deixar de esperar um filho para acolherem o filho que Deus lhes prometeu e anunciou.
Também nós, expectantes de uma festa de Natal, da ceia com a família, dos presentes e da alegria das crianças, necessitamos fazer silêncio, calar no nosso coração os ruídos externos e internos para que o Menino Deus possa ser acolhido.
Necessitamos passar da expectativa das luzes que brilham e rebrilham para o acolhimento da verdadeira luz que é Cristo, da luz que ilumina a nossa humanidade. Necessitamos passar das iguarias gastronómicas ao verdadeiro Pão que nos dá a vida. Necessitamos deixar de esperar uma prenda para podermos acolher o Dom de Deus que se nos oferece.
Silêncio! É tempo de fazer um pouco de silêncio, para que a transformação possa acontecer, para que possamos perceber nesse silêncio a semente de vida eterna que germina na humanidade e na nossa vida, para perceber e viver com alegria verdadeira a noite de paz e de luz que se aproxima.

 
Ilustração: “Aparição do anjo a Zacarias”, de Simão Rodrigues.  

Terceira Antífona do Ó

 
Ó Rebento da raiz de Jessé, sinal erguido diante dos povos: vinde libertar-nos, não tardeis mais.
3ª Antífona do Ó

Ilustração: Jesus Cristo, de Guiseppe Craffonara.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Quando José despertou do sono acolheu Maria (Mt 1,25)

O vento abana os ramos dos cedros e para lá do rugido do vento ouve-se a chuva que violentamente bate e se faz sentir. Pelas frestas entra o frio, o frio da noite, que escura encobre as casas e as árvores. Não se sente ninguém e nem o ladrar do cão se faz presente.
Desperto pela mágoa e pelo frio José encolhe-se, enrosca-se sobre si próprio, como procurando conforto, um pouco de calor que a pobre manta sobre si deitada não é capaz de lhe dar.
Diz-se que a noite é boa conselheira, mas José não tem nesta noite de tempestade tanta certeza disso, porque tal como o vento ruge fora e a chuva cai violenta também no seu coração as ideias passam como um furacão e magoam o amor por Maria.
Foi com cuidado, com carinho, tremendo certamente de medo pela sua reacção à notícia, que Maria lhe contou que estava de esperanças, que esperava um filho, um filho que não era seu, um filho que tão pouco era de outro homem, porque era Filho de Deus.
Desde esse momento a sua vida, os seus projectos, o sonho da sua família, foram levados pelo vento, caíram desmoronados como levados pela enxurrada da água. A sua Maria, a mulher que amava desde há tanto tempo, por quem tanto tempo tinha esperado, estava à espera de um filho que não era seu.
Na sua cabeça e no seu coração rodopiavam as ideias, os sentimentos contrários, porque por um momento a lei vingava a sua vergonha, mas logo o amor se sobrepunha e o fazia desejar proteger Maria e o filho que não era seu mas também não era de outro homem.
É este amor que o leva a conceber um projecto, a mentira, uma duplicidade de vida, porque não quer ver Maria sofrer a morte dolorosa da lapidação ditada pela lei de Moisés, contudo, no íntimo do lar ela saberá que o seu amor já não é o mesmo, ele será um estranho que viverá a dor e o amor apenas para si.
Quando tudo parece ajustado, o plano perfeito, eis que um clarão se faz sentir e, sem saber se por virtude de um trovão, alguém perfeitamente luminoso se apresenta diante dele e o convida a acolher Maria, a prescindir do seu plano secreto de repúdio.
Não há lugar para perguntas, para um diálogo, o anjo apenas lhe confirma as palavras de Maria, a verdade da sua história tão estranha e tão transformadora dos projectos de vida de um e de outro.
De um momento para o outro José vê-se confrontado com o acolhimento da verdade ou o soçobrar na mentira, com a possibilidade de um amor tão extraordinário como o mistério que lhe é revelado, ou a condenação à amargura da solidão e da dor do seu amor ferido.
Depois de uma noite fria e tormentosa, José vê-se convidado a passar da sua decisão humana e limitada a uma decisão surpreendente, à decisão da fé, e ao acolhimento do mistério que lhe é revelado e de que Maria é a guardiã e portadora.
Pelo seu sim, pelo acolhimento da solicitação divina, José alarga a sua vida às dimensões de Deus, e desde logo a sua casa, a sua pobre casa sobre a qual bate o vento e corre a água da chuva, transforma-se em casa do Emanuel, casa do Deus connosco.
Despertando desta noite tão fria e tão quente, tão obscura e tão luminosa, José acolhe Maria em sua casa, dá espaço ao acontecimento pleno do mistério de Deus, e ainda que não sendo pai transforma-se no pai do Filho de Deus que Maria transporta em si.
Neste Advento também nós somos convidados a acolher a novidade e a proposta inusitada de Deus, também nas nossas vidas batidas pelo vento da dor e molhadas pelas lágrimas do sofrimento somos convidados a abrir a porta, a permitir que a casa da nossa vida se transforme em casa do Emanuel, habitação de Deus connosco.
Que desça o orvalho do alto dos céus e as nuvens chovam o Justo para que na terra germine o Salvador!

 
Ilustração: “Sonho de São José”, de Vicente Lopez y Portaña, Museu do Prado, Madrid.

 

Segunda Antifona do Ó

 
Ó Chefe da Casa de Israel, que no Sinais deste a Lei a Moisés: vinde resgatar-nos com o poder do vosso braço!
2ª Antífona do Ó

Ilustração: Moisés recebe os Mandamentos, de Gebhard Fugel.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Primeira Antifona do Ó

 
Ó Sabedoria do Altíssimo, que tudo governais com firmeza e suavidade: vinde ensinar-nos o caminho da salvação.
1ª Antífona do Ó

Ilustração: Alameda com tons de Outono em Vernier, Genebra.

Genealogia de Jesus Cristo (Mt 1,1)

Encontramos no início do Evangelho de São Mateus a apresentação da genealogia de Jesus, a enumeração de quarenta e duas gerações de uma linhagem que retrocede até Abraão, o Pai da fé.
Diante da monotonia, qual formula matemática que se repete indefinidamente, não podemos deixar de nos questionar sobre esta genealogia, e sobretudo quando na última geração percebemos uma inversão, uma quebra na linhagem. No momento em que se previa que o autor assinalasse que José gerou Jesus, eis que é dito que Jesus nasceu de Maria, esposa de José.    
Estamos assim diante de uma inflexão, uma interrupção, que quebra a linhagem natural e revela por si própria uma novidade, uma outra realidade. Jesus é descendente da grande família que acredita e vive nas suas limitações humanas a fé num Deus único e salvador, mas é também o princípio de uma outra linhagem, de uma outra família.
Este corte revela-nos simplisticamente que Jesus não caiu do céu, não é um fenómeno extraterrestre, mas pelo contrário é herdeiro de uma história e de uma vida que assume plenamente com o que tem de fidelidade e infidelidade, de graça e de pecado.
Este corte revela-nos igualmente que a sua missão e a sua família são a totalidade do género humano e portanto não podia ficar confinado a uma tribo ou a um clã. A sua vida pertence à totalidade da humanidade.
Jesus Cristo, membro da família de Israel, é por Maria filho de Deus e por isso irmão de todos os homens e mulheres. Esta novidade misteriosa não pode deixar de nos tocar e implicar numa leitura mais abrangente das nossas relações.
Todos somos filhos da nossa família, do nosso povo, somos herdeiros de uma tradição e de uma fé que não podemos esquecer nem negar, mas pelo facto de sermos irmãos por Jesus Cristo estamos implicados no acolhimento e na realização plena do outro que é diferente, que não é da nossa família nem do nosso povo e que até pode não partilhar a nossa fé.
A filiação de Jesus por Maria abre-nos inevitavelmente à novidade e à surpresa do diferente.

 
Ilustração: “Árvore de Jessé”, de Absolon Stumme, Museu Nacional de Varsóvia.

Desejo oração

 
O teu desejo é a tua oração. Se o teu desejo for contínuo, contínua será também a tua oração. Não foi em vão que disse o Apóstolo: Orai sem cessar.
Santo Agostinho, Comentário aos Salmos.

Ilustração: Flecha da igreja sobre o telhado do Mosteiro de Saint-Gallen.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Também eu não vos digo com que autoridade faço isto! (Mt 21,27)

Não é uma questão sem importância, pois havia regras e estatutos para o funcionamento do templo. Aparecer alguém a ensinar no seu espaço, sem que para isso estivesse credenciado, representava de facto um atentado, um atentado ao instituído, ao poder estabelecido.
Competia aos sacerdotes e doutores da lei ensinar, apresentar e explicar a Lei de Deus, e todos aqueles que assumissem ou reivindicassem esse poder, esse serviço, entravam em conflito com a autoridade e o poder do templo.
É por esta razão que os príncipes dos sacerdotes se dirigem a Jesus, quando ele se encontra a ensinar no templo, e o interrogam sobre a autoridade para o fazer. Não era sacerdote, doutor da lei, e portanto infringia as normas e o estatuto do templo e da classe.
A questão colocada é assim legítima, mas se Jesus não responde aos príncipes dos sacerdotes, pelo contrário lhes coloca uma outra questão que aparentemente não tem nada a ver com o assunto, é porque aqueles que o questionavam não tinham nenhuma autoridade, a sua vida era uma mentira que imediatamente se torna patente.
Face à questão colocada por Jesus sobre o baptismo de João manifesta-se a duplicidade de critérios, a falsidade, o interesse em salvaguardar o estatuto e o poder. Aqueles que questionam Jesus são homens de coração duplo, apenas interessados em que a multidão não entre em conflito com eles. É a imagem que importa, a segurança do poder, mais que a verdade que deveriam defender e ensinar.
Face aos cálculos e à hipocrisia da resposta Jesus recusa-se determinantemente a responder, a justificar a sua acção e o seu ensino no templo, pois aqueles que o questionam não têm autoridade.
Este silêncio de Jesus é para nós um convite, um desafio, a discernirmos os nossos verdadeiros motivos, a verdade das nossas acções e dos nossos critérios. Necessitamos encontrar-nos com as nossas motivações mais profundas para que a nossa autoridade, a nossa palavra, ou o nosso testemunho não sejam colocados em causa, não sejam descobertos em praça e revelados na sua nudez de interesses.
Necessitamos confrontar-nos com a coerência e verdade da nossa vida, para que também cada um de nós possa dizer que não tem porque dizer as razões do que faz, uma vez que elas estão bem expostas e patentes naquilo mesmo que fazemos.
Que o Menino Jesus, que nos preparamos para acolher, nos ajude a discernir os nossos motivos e razões mais profundas, de modo a que a luz da verdade brilhe em nós como brilhou nele.

 
Ilustração: “Jesus ensinando no pórtico de Salomão”, de James Tissot, Brooklyn Museum.

Ver a Deus

 
É certo que ninguém pode ver a Deus na sua grandeza e glória inenarrável e continuar a viver, porque o Pai é inacessível. Mas em seu amor, sua bondade para com os homens e sua omnipotência, vai ao ponto de conceder aos que o amam esta graça: ver a Deus. É isto o que anunciam os profetas, porque o que é impossível aos homens é possível a Deus.
Santo Ireneu, Tratado Contra as Heresias.

Ilustração: Rosácea da Catedral de São Pedro de Genebra.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Homilia do III Domingo do Advento

O terceiro domingo do Advento é chamado o domingo “gaudete”, o domingo da alegria, pois a meio do caminho de preparação para o Natal a leitura do profeta Isaías convida-nos a viver em alegria face à acção libertadora de Deus. Por esta razão aliviamos um pouco a cor roxa do Advento e celebramos com paramentos cor-de-rosa.
Contudo, não podemos deixar de ter presente que este convite e esta alegria se compaginam no mesmo domingo com a leitura do Evangelho de São Mates em que nos é revelada a dúvida e a incerteza de João Baptista face a Jesus, face às atitudes de Jesus.
João Baptista, que tinha reconhecido junto ao Jordão Jesus como o Cordeiro de Deus, que tinha enviado discípulos seus a segui-lo, vê-se agora diante de um Jesus que não é capaz de reconhecer, que se lhe torna estranho pelas suas atitudes e gestos.
E por esta razão, não podendo fazê-lo pessoalmente, uma vez que se encontra preso, procura saber pelos seus discípulos se pode ou não continuar a acreditar em Jesus, se pode ou não continuar a esperar a libertação que tinha anunciado no deserto.
Esta pergunta de João Baptista, esta noite da fé, para usar uma expressão de São João da Cruz, este encontro que é desencontro, é extremamente importante porque não só nos revela as diferenças conceptuais entre Jesus e João, mas também a situação em que nós próprios tantas vezes, ou tão frequentemente, nos encontramos.
Sabemos que João Baptista era filho de sacerdote e por isso podia ter seguido naturalmente a carreira e função do pai. No entanto, movido pelo espirito, aventura-se no deserto e desde aquele lugar de encontro com Deus começa a apelar à conversão.
É desde o deserto que João Baptista denúncia os pecados dos fariseus e publicanos, daqueles que exploravam a fé e o povo, daqueles que pactuavam com o opressor e o ocupante. João não tem qualquer receio em lhes chamar raça de víboras. É também desde o deserto que João acusa Herodes, que torna explicita publicamente a sua imoralidade.
Contudo, e ainda que nas franjas da sociedade, João não deixa de estar integrado, não deixa de continuar enquadrado pelas formas e modelos religiosos que controlavam e condicionavam a sociedade. O apelo de João à conversão continua conceptualmente enquadrado nos esquemas sacerdotais herdados e aprendidos de seu pai.
Talvez por esta razão, quando Jesus faz o seu elogio, e diz que não há ninguém maior que ele entre os filhos de mulher, conclui assumindo que ainda assim o menor no Reino dos Céus é maior que ele. João Baptista necessitava também de converter-se, e de converter-se à novidade de Jesus, àquelas realidades que estranhava e o escandalizavam.
Tal era necessário porque Jesus se tinha colocado numa posição diametralmente oposta, pois não só continuava no meio do povo, não se tinha afastado para o deserto como João, como mostrava através das suas relações, da frequência das casas e banquetes dos publicanos e fariseus que também eles eram pessoas, que a conversão a acontecer era viável pela proximidade e atenção solidárias e não apenas pela denúncia.
Jesus não se contenta com a denúncia da situação, com a acusação, Jesus vai ao encontro das situações, situa-se num quadro de operatividade em que o estar e o interpelar são fundamentais. Para Jesus, para além da acção, para além da mudança de vida, estava a pessoa e a sua capacidade de se encontrar com a bondade de Deus e reconhecer o seu amor paterno.
A conversão que Jesus procura não é assim a conversão mecânica, a conversão dos gestos exteriores, não é a conversão ritual, mas a conversão do coração que passa antes de mais pela conversão do olhar, da forma como nos olhamos, como olhamos os outros e como olhamos Deus com bondade e através da bondade.
Revelador desta necessidade da conversão do olhar são as três perguntas que Jesus coloca à multidão depois dos enviados de João Baptista se terem retirado. Afinal o que tinham ido ver ao deserto, uma cana agitada pelo vento, alguém vestido de roupas finas, ou um profeta?
Estas perguntas, conduzindo ao inusitado do profeta baptista, conduzem igualmente à necessidade do acolhimento do outro e da sua novidade, e consequentemente por paralelismo ao acolhimento da novidade e da extravagância da acção de Deus por intermédio de Jesus.
Necessidade que se apresenta como o grande desafio que nos deixam os textos deste domingo da alegria, pois somos convocados a acolher na alegria, alicerçados na bondade, perseverantes na paciência, o inusitado e o estranho da acção de Deus.
Deus é sempre mais do que aquilo que podemos imaginar ou conceber e a sua acção amorosa não conhece barreiras nem fronteiras. Cabe-nos acolher a novidade sempre nova do seu amor.

 
Ilustração:
1 – “São João”, Autor desconhecido, Real Academia Catalã de Belas Artes Saint Jordi.
2 – “Última Ceia”, de Károly Kernstok, Galeria Nacional da Hungria.

 

A graça do amor

 
De vós Senhor vem a salvação e a bênção sobre o vosso povo, mas que é a vossa salvação senão a graça que nos concedeis de vos amarmos e de sermos amados por vós?
Guilherme de Saint-Thierry, Tratado da Contemplação de Deus.

Ilustração: Capital com a Anunciação na igreja do Santuário da Virgem de Estibaliz em Vitória.

sábado, 14 de dezembro de 2013

A missão da voz

 
Sou a voz que se faz ouvir apenas para introduzir a Palavra no vosso coração, mas esta não se dignará entrar onde pretendo introduzi-la se não preparardes o caminho.
Santo Agostinho, Sermões.

Ilustração: Púlpito da igreja luterana de Saint-Gallen.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

São como crianças sentadas na praça. (Mt 11,16)

É uma plateia expectante que procurar escutar Jesus, mas entre os presentes encontram-se fariseus e escribas, homens que assumiram que a lei existe à medida da sua compreensão, da forma como a esquadrinharam e a encerraram nos seus próprios esquemas.
Desta forma não há lugar para a novidade, não há lugar para a surpresa, pois tudo está feito, tudo está submetido aos mesmos princípios. Até Deus não escapa, pois a sua acção é ritmada pelo sabor das respostas preestabelecidas, prevista pelo cânone da compreensão do homem.
E quando o esquema se inverte, quando o mecanismo deixa de funcionar, porque não é um relógio suíço, e surpreende pela novidade e pela extravagância, eis que surge a crítica, o amuo, o desprezo, a negação da novidade.
Jesus coloca em evidência esta situação apelando à imagem das crianças sentadas na praça, crianças que reagem contrariamente ao que era suposto face ao tom e ao ritmo da música.
Mas ao fazê-lo coloca em evidência igualmente a surpresa de Deus, a liberdade de Deus, que vem ao encontro do homem nas formas mais inusitadas, fora de qualquer esquema, invertendo mesmo os esquemas mais perfeitos.
Os caminhos do Senhor são insondáveis, são desconhecidos para o coração do homem, porque só o amor conduz a acção de Deus, e por isso são surpreendentes todos os seus caminhos, os seus gestos, a sua Palavra.
Sentados na praça da vida cumpre assumir a forma tantas vezes condicionante como concebemos Deus, como respondemos a Deus, e converter essa nossa forma à surpresa de Deus, à novidade que todos os dias acontece se nos dispusermos a isso.

 
Ilustração: “Crianças brincando”, de Arpad Cserépy, Colecção Particular.