Caros Irmãos
A leitura do Evangelho de São Marcos
que acabámos de escutar narra-nos o encontro de Jesus com um escriba, um homem
que apresenta a Jesus uma questão pertinente, poderíamos dizer uma questão que
habita o coração de cada um de nós, qual é o primeiro dos mandamentos?
Este encontro é precedido por outros
semelhantes, outros escribas, doutores da lei e fariseus colocaram igualmente a
Jesus questões pertinentes, embora enviesadas de segundas intenções, armadilhas
para apanharem Jesus, que não encontramos neste homem desejoso de saber o que o
Mestre tem a dizer sobre o primeiro dos mandamentos.
Esta questão não nos pode escandalizar,
nem podemos julgar este escriba no seu questionamento, pois habituado a estudar
a Lei este homem estava consciente dos 613 preceitos ou mandamentos que deviam
orientar a vida social e religiosa do povo eleito, bem como da discussão que
geravam sobre a precedência de uns sobre os outros. À data o primeiro
mandamento que era considerado era “não matar”, era ele que ocupava o topo da
hierarquia.
Conhecedor desta discussão Jesus
apresenta ao escriba o que era do seu conhecimento, o mandamento do Deuteronómio
que apresenta Deus como único e a consequente obrigação de o amar com todo o
coração, alma, entendimento e forças. Mas porque não se resolve tudo nesse
único andamento, Jesus apresenta imediatamente o mandamento de amar o próximo como
a si mesmo, uma referência do Levítico, o livro das coisas sagradas, se assim
podemos dizer.
À questão de um mandamento como
primeiro ou cabeça de toda a hierarquia de mandamentos e preceitos Jesus
apresenta dois, entrelaçando-os de tal modo que a partir daquele momento não se
pode querer amar a Deus sem amar os irmãos e nem se pode amar verdadeiramente
os irmãos se não se amar a Deus. Tarefa de equilíbrio difícil de realizar, mas
que nos pode ser facilitada se não perdermos de vista a introdução do próprio
mandamento de amar a Deus, o primeiro elemento do mandamento, “escuta Israel!”.
Este convite, ou ordenação,
aparece-nos constantemente ao longo da revelação de Deus, contrapondo-se ao
desejo humano de ver a Deus. É escutando que se pode conhecer Deus, porque ninguém
pode viver contemplando-o face a face. Jesus perante o elogio da sua mãe por
parte da mulher da multidão responde-lhe que felizes são os que escutam a
Palavra de Deus e a colocam em prática. É na escuta que está o segredo, porque
escutar é já obedecer, viver o mandamento.
Neste sentido é importante que nos
detenhamos sobre a nossa escuta, quer da obra da criação, quer dos nossos
irmãos e de nós próprios em primeiro ou último lugar. Como escutamos o que Deus
nos vai dizendo pela beleza e harmonia da obra da criação? São Tomás de Aquino
apresenta a obra da criação como uma das vias para o conhecimento de Deus. Como
escutamos as realidades dos nossos irmãos, que tempo lhes dedicamos e como
percebemos neles a presença de Deus, eles que foram feitos à imagem e semelhança
de Deus? E como nos escutamos a nós próprios, nos nossos desejos, nas nossas
paixões, nas alegrias e nas frustrações? Se não nos conhecermos nem nos amarmos
dificilmente poderemos conhecer e amar o outro, dificilmente poderemos entrar
em relação com alguém e com Deus, uma vez que não temos o terreno sólido do conhecimento
da nossa escuta para lançar os alicerces da relação.
É face a este mandamento de via dupla
que Jesus apresenta ao escriba, amor humano versus amor divino, que encontramos
a revalorização do lugar dos sacrifícios e holocaustos na vida pessoal, com os
outros e com Deus. Amar a Deus com todo o coração, com todo o entendimento e
todas as forças e amar o próximo como a si próprio vale mais que todos os sacrifícios
e holocaustos. A partir desta revalorização podemos e devemos olhar os modos
como amamos e se de certa forma eles não estão adulterados por uma dimensão sacrificial
aniquiladora.
Olhemos antes de mais o amor do “eros”,
que tantas vezes nos domina e não controlamos, que nos enche de fantasmas os sonhos
da noite. Deixamo-nos dominar por ele, como um bicho furioso e indomável, ou
pelo contrário reconhecemo-lo como uma força vital, que nos habita e
possibilita estar uns com os outros na nossa identidade, que assumimos no seu
devido lugar como fonte de prazer que todos necessitamos para viver?
Outra forma de amor, tão querida aos clássicos
gregos, é a “philia”, a amizade, predileção, que domina as nossas eleições e preferências,
ou as nossas repulsas e aversões, tantas vezes de forma incontrolável, inconsciente
e injustificada, conduzindo em algumas circunstâncias a desastres e perversões
cujos efeitos são irreparáveis e irreversíveis. As nossas amizades, predileções,
estarão bem orientadas para o bem comum, ou pelo contrário são uma manipulação
do outro e satisfação do nosso narcisismo?
A estes modos de amor intrinsecamente
humanos, Deus oferece o amor oblativo, o chamado “agapê”, um amor que se recebe,
um dom, para ser entregue e partilhado com outros sem apropriação nem subversão,
um amor que dignifica tanto aquele que o dá como aquele que o recebe; um amor
que nasce dum sacrifício e holocausto perfeitos que é a entrega do próprio Deus
às mãos dos homens. É com este amor que podemos iluminar e elevar os nossos
amores humanos, a nossa dimensão erótica e as nossas amizades, que passarão a
estar ao serviço de um bem maior, a glória de Deus na sua obra da criação, em
cada um dos nossos irmãos e na nossa própria corporeidade.
Freud perguntou um dia se o amor se
podia ordenar como um mandamento. Temos inevitavelmente que responder que sim,
porque Deus o oferece a cada um de nós para o crescimento e a plenitude de
todas as nossas dimensões existenciais, e tal só acontecerá se acolhermos o
amor de Deus e o procurarmos imbuir em tudo o que somos e fazemos. O amor é uma
missão, uma tarefa a desenvolver cada dia, para nos elevar divinamente. Na nossa
liberdade cabe comandá-lo, ordená-lo, orientá-lo, dar-lhe existência comprometida.
Ilustração:
O Amor Divino derrota o Amor Terrestre, de Giovanni Baglione, Gemaldegalerie, Berlim.