domingo, 22 de dezembro de 2019

Homilia IV Domingo do Advento - Ano A

Estamos a celebrar o quarto domingo do Advento e o nosso tempo de preparação para a celebração do Natal do Senhor Jesus chega ao seu término. E paradoxalmente, este tempo de preparação, de caminhada, termina com um episódio dramático, um conflito pessoal sobre opções.
O evangelho de São Mateus que escutámos coloca-nos face ao conflito de José, ao conflito desse homem que se vê desorientado e perdido face aos seus planos e expectativas. Deus trocou-lhe as voltas e confronta José com a necessidade de viver a sua justiça desde outro prisma.
O Evangelho de São Mateus assume desde o primeiro momento que José era um homem justo e é a partir dessa justiça que ele decide repudiar Maria em segredo após ter sabido da sua gravidez. José, como homem justo podia ter tomado outra atitude, como justo a partir do cumprimento da lei de Moisés, podia ter exposto Maria ao vexame e à condenação pública.
Contudo, não o fez. E ao agir dessa maneira abre uma brecha pela qual Deus vem penetrar e vem desafiar a uma atitude ainda mais forte e consistente que a da justiça, a atitude radical do amor e da confiança. Se o amor humano, o enamoramento por Maria, o podia ter levado a esse resguardo da pessoa amada, Deus vem agora pedir a José que aceite a novidade da surpresa dos seus planos baralhados.
Ao receber Maria como sua esposa, e o filho que ela trazia no seu ventre gerado pelo poder do Espirito Santo, José opta por aventurar-se na novidade de Deus, faz confiança na sua palavra e na sua promessa, torna-se profundamente justo porque não é já o dever que o leva à acção mas é o amor e uma confiança para além do expectável.
José aparece-nos assim na nossa caminhada de Advento, e de fé, como um exemplo, poderíamos dizer quase como uma paradigma do que deve ser a nossa opção e atitude face às propostas de Deus, face àquelas circunstâncias que tantas vezes se nos apresentam como uma noite escura, como um combate que temos que travar e do qual não sabemos o resultado.
José é um exemplo de confiança, de fé, de acolhimento na vontade e história pessoais de algo que nos ultrapassa, sobre o qual não temos o controlo. E como arriscamos nessa confiança Deus capacita-nos para podermos dar o nome ao fruto dessa confiança e fé, tal como confiou a José o poder de dar o nome a Jesus. A experiência da confiança em Deus abre-nos ao domínio dos frutos, das realidades que passamos a poder denominar, a dizer o que foram e o que significaram para nós em termos de transformação e vida.
Nesta dinâmica da fé, da opção confiante por Deus que nos envolve e nos acompanha, coloca-se muitas vezes o dilema dos sinais, daqueles que pedimos e não nos são concedidos, daqueles que nos recusamos a pedir como o rei Acaz da leitura do profeta Isaías, e também daqueles que nos são oferecidos mas que nos recusamos a ver, ou que nos passam indiferentes. E Deus envia os seus sinais, vai-nos iluminando para que possamos fazer o caminho, para que possamos fazer a opção mais justa, que é aquela que é mais fruto consequente do amor e da confiança plena.
Nas nossas mais diversas circunstâncias, nas rotinas do nosso quotidiano, quantos sinais nos são enviados? Naquelas situações de conflito de interesses quantas vezes não desperdiçamos os sinais e as palavras que Deus nos envia através de alguém, de um gesto ou de uma palavra, que vistos ou escutados atentamente poderiam fazer toda a diferença?
Ao aproximar-nos da celebração do Natal fica-nos este convite e desafio de olharmos os sinais que Deus nos vai enviando, de confiarmos na sua promessa, fica-nos o convite a olharmos com ternura o Menino Jesus, pois é o sinal mais forte e eloquente do amor de Deus, do seu desejo de se fazer presente, de habitar entre os homens, como nos é dito no Livro da Sabedoria.
Tal como enunciava São Paulo na Carta ao Romanos, nós somos amados por Deus, amados tão profundamente que o Verbo de Deus se fez carne da nossa carne, veio habitar entre os homens, para que pudéssemos ser santos, verdadeira e intrinsecamente justos, como Deus é santo e justo, para que pudéssemos viver nesta santidade e justiça que não se alcançam pelas nossas mãos nem pelos esforços e sacríficos, pelo cumprimento obcecado e escrupuloso da lei, mas pelo acolhimento livre e pleno da vontade de Deus, pela adesão aos seus planos extravagantes e revolucionários como o fez José.
Procuremos pois com amor e boa vontade acolher a justiça e a santidade que nos é revelada e confiada no Menino deitado na manjedoura, disponível a ser acolhido por todos.

 
Ilustração:
1 - O sonho de São José, do retábulo da igreja da Misericórdia de Tentúgal.
2 – O sonho de São José, Vicente López Portaña, Museu do Prado, Madrid.

 

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Jesus questiona! Mt 21,24

Jesus sobe ao templo e começa a ensinar. Uma provocação para os instituídos no cargo, para os detentores da doutrina. Quem te deu a autoridade para ensinar, para fazeres isto, para te sentares no nosso lugar?
Jesus não se acanha nem se acobarda e sai à luta com uma pergunta, novamente com uma pergunta, que destabiliza os seus beligerantes, que obriga a uma resposta. Jesus pergunta, pergunta sempre, até quando é procurado para uma cura. Tu acreditas que eu sou capaz de fazer o que me pedes? Jesus é provocador, questiona, coloca em causa, e destabiliza as seguranças e os egocentrismos.
Se hoje Jesus se nos dirige é para continuar a interpelar, a colocar questões. Pode perguntar-nos pela nossa fé, se acreditamos que ele verdadeiramente pode fazer o que lhe pedimos nas nossas súplicas e orações; mas pode perguntar-nos também pela verdade do nosso coração, pode interpelar-nos no sentido de um discernimento da nossa vida.
Afinal o que acontece e encontramos de bom e de belo é do céu ou é da terra? A alegria e a felicidade que experimentamos é uma graça divina ou meramente fruto dos nossos humores? O sofrimento e a morte são castigos de Deus ou consequência da nossa contingência e condição finita? O que vivemos termina no pó da terra ou tem uma dimensão eterna?
As perguntas que Jesus coloca conduzem-nos ao encontro com a verdade, com a luz que ilumina verdadeiramente a nossa vida, podemos dizer que nos abrem os olhos para um olhar penetrante e os ouvidos para as revelações de Deus, como aconteceu com o profeta Balaão.
Que as perguntas de Jesus não nos intimidem nem nos desesperem, que não as tomemos como uma ofensa, mas verdadeiramente como um caminho, uma táctica amorosa para nos fazer descobrir que Ele caminha connosco, que nunca se impõe, que se oferece e partilha humildemente a nossa busca e as nossas dúvidas sem qualquer julgamento.

 
Ilustração:
Salvador do Mundo, Antonio da Correggio, National Gallery of Art, Washington.

 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Homilia III Domingo do Advento - Ano A

Estamos a celebrar o domingo da alegria e a leitura do profeta Isaías coloca-nos nessa sintonia desde a primeira palavra. Alegrem-se! Contudo, a leitura do Evangelho de São Mateus, ainda que tenha subjacente uma nota de alegria através dos milagres que são referidos, deixa-nos uma questão pertinente e complexa para a qual temos que encontrar resposta.
Todos nos recordamos que quando João pregava no deserto um conjunto de enviados de Jerusalém foi ter com ele para saber se era o Messias. João foi muito claro e taxativo na sua resposta, “não sou”. Hoje, João encontra-se na prisão e é da sua parte que são enviados a Jesus um conjunto de discípulos para fazer a mesma pergunta. És tu aquele que há-de vir?
Podemos compreender a necessidade de uma resposta para João. Afinal ele tinha consciência da sua missão, tinha pregado a conversão em ordem à próxima vinda do Messias. No entanto, aquele que com ele tinha convivido, que lhe tinha sido manifestado como enviado, não se enquadra na sua lógica, poderíamos dizer no seu programa, estava demasiado fora do expectável.
João sente-se assim perdido, desorientado, podemos dizer que vive a sua noite escura de fé, pois não só está na prisão, sem saber qual o futuro que lhe está destinado, mas sente que a sua vida e a sua pregação poderá ter sido em vão, pois aquele que se apresenta como Messias frequenta a casa de gente pouco recomendável, de pecadores e pecadoras, come e bebe com eles, é praticamente um marginal.
João necessita de uma resposta, mas ao contrário da sua, face aos enviados de Jerusalém, a de Jesus é uma outra pergunta, uma interpelação. Jesus não dá uma resposta taxativa, não diz que sim nem que não, mas bem pelo contrário coloca uma outra questão, uma questão para a qual a resposta tem que ser João a encontrá-la.
A resposta de Jesus aos enviados de João é a apresentação de um conjunto de factos, de realidades que mostram uma mudança, mas uma mudança que acontece fora dos esquemas habituais, da norma. Tudo se desenrola tal como profetizado, nomeadamente por Isaías, mas fora do preceituado pelo expectável. E é tão necessário que seja assim que aquele que vê, que toma conhecimento, não se pode escandalizar, mas deve acolher de coração aberto, na sua pobreza e simplicidade.
Jesus não se define a João como o Messias, responde-lhe com sinais que ele tem que discernir da verdade daquele que é o autor das mudanças e dos sinais. Jesus não se impõe, sugere-se, pedagogicamente deixa ao seu ouvinte a liberdade de o compreender, de o acolher, pois só dessa forma ele se pode tornar verdadeiramente acolhido e compreendido, só dessa forma pode ser Messias.
Como diz Santo Agostinho, a palavra gerada no coração, manifestada pela palavra, deve ser ouvida pelo outro e acolhida no coração para que possa fazer-se no outro também palavra. E como nos é dito em outra passagem do Evangelho é necessário tornar-se como criança, ser curioso, ter desejos de conhecer, para estar aberto a uma aventura com Deus que vai sempre para além do que podemos imaginar e conceber.
Mas tal como aconteceu com João Baptista acontece hoje connosco, Deus não se revela como uma fórmula matemática, uma equação cujo resultado final calcular. Deus em Jesus Cristo revela-se uma novidade, uma aventura, e por isso quando muitas vezes queremos uma resposta sua aos nossos problemas encontramos o silêncio, a ausência de resposta.
Afinal, como a João Baptista, Jesus remete-nos para os sinais, para as pequenas mudança que vão acontecendo na nossa vida e revelam a sua presença; o que vemos de diferente, o que ouvimos de novo, os pequenos passos que damos, a preguiça que vencemos, a liberdade que vamos alcançando sobre o nosso egoísmo, o bem que vamos fazendo apesar das nossa fragilidades e incoerências.
Não estaremos nós demasiados fixados nas coisas negativas? Tal como João, não estarão os nossos olhos cegos e cerrados pelo mal que preconceituosamente vamos apontando à nossa volta? Não estaremos fixados nas casas e pessoas de reputação menos boa, no que comem e bebem, na marginalidade em que vivem na nossa concepção?
É perante esta deturpação da realidade, perante este preconceito, que nos pode de facto impedir de ver o bem de Deus a acontecer e a realizar-se, que o profeta Isaías nos convida à coragem, a fortalecer as mãos fatigadas e a robustecer os joelhos vacilantes, a não deitar já a toalha ao chão, a acreditar ainda um pouco mais, a dar uma oportunidade, pois Deus vem ao nosso encontro.
E face a esta vinda e nomeadamente face aos pequenos sinais que a revelam devemos manifestar a nossa alegria, esse gozo interior de saber que algo de bom está a acontecer, que Deus não nos virou as costas, e que a pequena flor que desabrocha na magnólia da rua é uma manifestação do amor e da bondade de Deus.
Deus manifesta-se todos os dias e das mais diversa formas na simplicidade da nossa vida, num sorriso, numa troca de olhares, numa cumplicidade entre amigos, num gesto de ternura, num trabalho feito com amor e satisfação, num momento de paciência, numa palavra de incentivo e cuidado. Porque nos condenamos a ver tudo desde as grades da prisão do nosso preconceito, da nossa ideologia de perfeição, do desejo de ter tudo agora e definitivamente?
É perante esta condenação, que infligimos a nós próprios, que é bom recordar as palavras de São Tiago que hoje escutámos, “necessitamos esperar pacientemente o fruto da terra e fortalecer o nosso coração”. Muitas vezes, e na cultura actual mais do que nunca, queremos as coisas de imediato, não temos tempo para a gestação e a germinação, para o crescimento e o desenvolvimento. Tem que ser aqui e agora e obrigatoriamente já.
A fé que Deus nos concede em seu Filho Jesus Cristo é uma semente, uma pequena semente que nos é confiada no baptismo e que necessitamos cuidar, regar, alimentar, dar tempo para crescer e desenvolver-se, permitir-lhe que se vá manifestando umas vezes mais evidente outras vezes mais ténue. A fé não é uma auto-estrada mas uma sinuosa estrada de montanha que umas vezes sobe e outras desce, e que por vezes tem curvas fechadas que não nos permitem ver o que nos espera pela frente. E às vezes são paisagens deslumbrantes, horizontes que nos fazem regalar os olhos e louvar o Senhor numa simples palavra, “que beleza”.
Nesta caminhada de Advento peçamos ao Senhor que nos ilumine para saber discernir os pequenos sinais que nos manifestam já a sua presença no meio de nós, a sua vinda amorosa ao nosso encontro, a beleza de cada gesto e cada momento.

 
Ilustração:
São João Baptista, Jacek Malczewski, Museu Nacional de Varsóvia, Polónia.
Picos da Europa

 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

O maior dos filhos de homem! - Mt 11,11


João, o Baptista, está ainda bem escondido no seio de sua mãe Isabel quando Maria a visita. Levando também já Jesus no seu seio, Maria glorifica o Senhor após a saudação de sua prima dizendo que o Senhor derruba os poderosos e eleva os humildes. Maria está já imbuída da lógica do Reino, o Espirito Santo ilumina e fundamenta as suas palavras à luz das velhas promessas feitas ao povo de Israel.
Com Jesus, e assumida já nas palavras do Magnificat de Maria, realiza-se uma revolução, uma inversão radical das hierarquias e por isso quando fala de João o seu primo, Jesus apresenta-o como o maior entre os filhos dos homens, mas ainda assim e apesar disso, o mais pequeno no Reino dos céus é maior que ele. Disparidade de grandezas.
Quando na noite da última ceia Jesus se levanta e coloca aos pés dos discípulos para lhes lavar os pés, como um escravo, um humilde servo, ele mostra a inversão das hierarquias, mostra como no acto humilde do serviço aos outros se realiza a elevação, como os poderosos são derrubados porque estão encerrados no seu poder, na sua auto-suficiência, porque são incapazes dessa humildade que leva ao abaixar-se para elevar o outro.
Com Jesus deitado na manjedoura, cansado junto ao poço de Jacob pedindo água à samaritana, na última ceia lavando os pés aos discípulos, mesmo ao que seria o traidor, aprendemos que a verdadeira grandeza é o serviço aos irmãos, um serviço que os alimenta, que os dessedenta, que os lava e purifica dos seus traumas e os faz participantes de uma vida nova.
Ao colocarmos no presépio a manjedoura, na qual deitaremos a imagem do Menino Jesus na noite de Natal, teremos ainda a coragem de acreditar que não há maior amor que dar a vida pelos amigos?
Ao falar de João Baptista, Jesus diz que são os violentos que se apoderam do Reino, e mais tarde dirá mesmo que não veio trazer a paz à terra mas a guerra, um fogo que deseja que se expanda, que incendeie todos os homens e mulheres.
A coragem do humilde serviço aos irmãos, de dar a vida pelos amigos, é um acto de violência, sobretudo sobre o nosso orgulho e egoísmo. Estaremos nós dispostos a viver essa violência, a conquistar o Reino pelos nossos braços e combates, ou apenas a esperar passivamente que ele nos seja concedido pela misericórdia de Deus?
Se a misericórdia implica colocar-se no lugar do outro, sentir a dor do outro, fazer-se o outro no seu sofrimento, uma atitude passiva de espera não nos deixará viver verdadeiramente essas realidades, não nos permitirá ser misericordiosos. Necessitamos da violência do amor, da violência da inversão das hierarquias e dos valores, de continuar a realizar a revolução de Jesus. O Natal desafia-nos a essa revolução!

 
Ilustração:
Jesus lavando os pés aos discípulos, Palma il Giovane, San Giovanni in Bragora, Veneza.
 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Vinde a mim! Mt 11,28

Vinde a mim! É o apelo de Jesus que o Evangelho de Mateus nos transmite de forma lapidar.
Mas este grito, este apelo, atravessa a história da humanidade, a história da aliança de Deus com os homens. Podemos dizer que é o refrão da música divina, como que uma voz de encantamento que procura seduzir-nos no nosso afastamento.
Desde a criação que Deus nos apela, e este apelo ouvir-se-á até ao fim dos tempos. Deus chama-nos para a sua órbita, para a sua vida, quer-nos com Ele. E em Jesus este apelo é mais premente.
Desde o presépio ao calvário, os gestos, as palavras, a vida plena de Jesus são um apelo constante. No alto da cruz o grito “tenho sede” é a manifestação de um desejo eterno e intimo, de um desejo de saciar a sede no encontro com os homens para que estes possam ter a vida divina.
No seu Filho feito homem Deus revela-se como um mendicante, um pedinte que estende a mão na expectativa e na esperança de uma esmola, de uma dádiva, por ínfima que seja. E esta dádiva feita com doçura e humildade faz com que se torne força, uma força capaz de tornar ligeiro o fardo que carregamos todos os dias.
Depois de ouvirmos do Mestre o apelo, e de termos aprendido com Ele que a resposta humilde e confiante nos fortalece para seguirmos em caminho, que os nossos cansaços e jugos não nos impeçam de lhe responder confiadamente.

 
Ilustração:
Aparição de Jesus a Francisco e companheiros, Jose Benlliure y Gil.

 

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Desgarrar-se para se encontrar - Mt 18,12

Estou a lembrar-me de alguns filmes americanos em que assistimos ansiosos a uma perseguição a alta velocidade e ficamos surpreendidos como os vilões conhecem tão bem as saídas das auto-estradas. Em outros filmes, geralmente catastróficos, vemos as longas filas paradas nas imensas auto-estradas americanas sem nenhum movimento de avanço que permita a fuga.
São surpreendentes as auto-estradas, com os seus painéis de sinalização, com os quilómetros que nos faltam, com as saídas que se aproximam, com a indicação do destino final. Por vezes, gostávamos que a nossa vida fosse como as auto-estradas, com sinais bem precisos de quanto nos falta andar e onde devemos sair. Era tudo tão mais fácil, tudo avançaria impecavelmente.
Mas a nossa vida não é uma auto-estrada, é mais como uma estrada regional, que serpenteia no meio da montanha ou da planície, na qual tantas vezes os sinais desaparecem, nas quais sem nos aperceber já nos perdemos.
Recordo com graça uma viagem para Castelo Branco, no início da década de noventa do século passado; íamos para a ordenação do Padre Marcelino, quando nos deparámos no meio de um caminho rural, apesar de o mapa pelo qual nos guiávamos indicar uma estrada naquele lugar. Ao ver-nos desgarrados do caminho certo alguém nos disse que de facto se podia passar por ali, mas apenas de jipe, e nós tínhamos um pequeno Corsa.
Nas auto-estradas não corremos o risco de nos desgarrarmos, mas nas estradas rurais isso pode facilmente acontecer. Contudo, estarmos desgarrados não significa que estamos perdidos, porque aquele que se desgarrou não perdeu tudo, tem no mínimo a oportunidade de voltar atrás, de refazer o caminho, vai necessitar de estar atento, de ver com olhos de ver e pode até encontrar alguém que lhe indica qual o caminho a seguir.
O risco de nos perdermos acontece inacreditavelmente nas auto-estradas, porque aí, se não estivermos atentos aos sinais para sairmos na saída certa, se não estivermos atentos aos quilómetros que nos faltam e aos litros de combustível que nos restam, podemos perecer no meio do nada, sem possibilidade de voltar atrás e sem alguém para nos dizer o que quer que seja de como prosseguir.
Nos extravios da nossa vida, misteriosamente, vem ao nosso encontro Aquele que nos indica o caminho certo, o que fazer e como fazer, como necessitamos fazer uma estrada no deserto ou aplanar os nossos montes de orgulho. Deus vem ao encontro dos extraviados e desgarrados, porque para eles nada está perdido, há um olhar que se pode apurar, há um caminho que se fez e pode ser refeito, há um desejo de encontro com alguém que nos pode salvar.
Alegremo-nos neste Advento de cada vez que nos desgarrarmos dos nossos propósitos aferrados e firmemente ancorados porque é por esse caminho misterioso que a promessa de salvação chega ao coração das nossas existências imprevisíveis, é por eles que a misericórdia do Pai nos espera.
 
Ilustração:
Sinais em cruzamento, Ithaca, Nova York.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Perdoar os pecados - Lc 5,23

A cena é estranha, inusitada, mas certamente não poderia deixar de ser de outra maneira, pois enquadra uma questão verdadeiramente incomum, paradoxal.
O que é mais fácil dizer: os teus pecados estão perdoados, ou levanta-te e anda?
Para os escribas e fariseus a primeira afirmação era uma blasfémia, mas o que significava para eles a segunda? Se só Deus pode perdoar os pecados poderá qualquer homem dizer ao seu irmão, levanta-te e anda? Qual o peso destas palavras, desta ordem?
Jesus ordena ao paralítico que se levante e ande, que carregue a sua enxerga e volte para casa. Mas tal ordem é apenas para manifestar o poder da primeira afirmação, a sua realidade actuante. É o perdão dos pecados que liberta, que ergue e faz andar, que permite carregar a enxerga e voltar para casa.
Hoje perguntamos muitas vezes porque não acontecem tantos milagres como aconteceram no tempo de Jesus, porque não nos ordena ele também que nos libertemos das nossas paralisias e andemos erguidos.
A tal pergunta, Jesus interpela-nos e questiona-nos sobre o perdão dos pecados, se acreditamos verdadeiramente que ele nos perdoa dos nossos pecados, que tem poder para nos erguer da nossa infidelidade e miséria egocêntrica. Acreditamos que ele tem poder para tal? E se acreditamos, acreditamos que tal verdadeiramente acontece?
A pergunta de Jesus põe de manifesto o que verdadeiramente é mais fácil para Deus, o que está mais de acordo com a sua natureza, que é perdoar. Os milagres que nos podem pôr a andar, a ver, que nos podem curar, são intervenções secundárias para Deus, se assim se pode falar, pois interferem com o movimento natural da matéria de que somos constituídos. No mínimo, e como nos diz o Evangelho de São Lucas, são manifestações para colocar em evidência a misericórdia. Esta é a natural acção de Deus.
No nosso caminhar em ordem à celebração do Natal do Senhor podemos e devemos questionar-nos sobre a nossa fé no perdão dos pecados. Temos consciência das nossas falhas, dos nossos pecados, do que fizemos de mal ou do bem que deixámos de fazer? Acreditamos que Jesus nos perdoa? E acreditando, percebemos como a graça do perdão nos ergue e nos transforma, nos dá uma vida nova, uma vitalidade que nos permite carregar com a enxerga que é a cruz de cada dia?
Que neste Advento escutemos no nosso coração “os teus pecados estão perdoados” e nos sintamos erguidos para procurar viver dignamente como filhos de Deus.

 
Ilustração:
Jesus envia o paralítico para casa, Anthony van Dyck, Royal Collection, Windsor Castle.

 

domingo, 8 de dezembro de 2019

Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria - Homilia

A Solenidade da Imaculada Conceição de Maria que hoje celebramos apresenta-nos na primeira leitura do livro do Génesis o encontro de Deus com o homem e a mulher depois de estes terem comido do fruto da árvore proibida. É o primeiro momento em que o homem e a mulher, depois de darem conta que estão nus, se encontram com Deus.

É pena que a leitura que escutámos não inclua o versículo imediato, porque nele é-nos dito que Deus fez um vestido de peles para cobrir o homem e a mulher. Com o texto que nos é apresentado ficamos apenas com a lógica do castigo pela transgressão, podemos até dizer que com um espirito de vingança expresso na promessa feita de a mulher esmagar a cabeça da serpente. E afinal trata-se de muito mais que isso.

Assim, podemos e devemos unir a leitura do livro do Génesis com o Evangelho de São Lucas, com o relato da anunciação, e ver num e noutro momento o grande movimento de Deus, a sua actividade existencial que se realiza em vir ao encontro do homem. Deus vem ao encontro do homem pecador para o salvar, para o proteger da sua própria desgraça, desse desejo íntimo de querer ser Deus e não se reconhecer criatura.

Após comerem do fruto da árvore proibida o homem e a mulher descobrem-se nus, e tentam infantilmente cobrir essa nudez entrelaçando folhas de figueira à volta da cintura, como se a sua condição pudesse ser salva pelas suas mãos. Apesar de vestidos, cobertos nas suas vergonhas, não estão aptos a apresentar-se diante de Deus que vem ao seu encontro.

Face a esta desgraça, à transgressão cometida, e da qual resulta esta incapacidade de se apresentarem, Deus cobre-os com um vestido de pele, porque sem ela seriam chagas vivas, horrores monstruosos que nem se poderiam olhar. Ainda hoje, cada um de nós, como se tivesse estado presente naquele momento, quando vê uma ferida, a pele arranhada, uma escoriação, não deixa de sentir uma certa repugnância, um mal-estar que leva a desviar o olhar.

A pele com que Deus cobre o primeiro homem e a primeira mulher é um gesto de misericórdia, é a reabilitação da capacidade de relação e acolhimento. Deus vem em salvação do homem pecador e transgressor e abre-lhe novamente as portas da relação, da possibilidade do encontro com o outro e consigo próprio, pois como dirá Job, na minha carne verei a Deus.

Estas palavras de Job ganham uma dimensão superior quando olhamos para a anunciação do nascimento do Filho de Deus, para o mistério da Encarnação do Verbo. A salvação oferecida aos nossos primeiros pais, com o vestido de peles, não é suficiente para o verdadeiro e pleno encontro com Deus. Podemos encontrar-nos uns com os outros, podemos até dirigir-nos a Deus, mas haverá sempre uma barreira, a opacidade da nossa fragilidade e contingência da nossa finitude. Na nossa pele continuamos a ser seres finitos.

No seu amor extremo e infinito pela obra criada à sua imagem e semelhança Deus vem habitar na própria carne do homem, nessa carne que pudicamente escondemos e da qual desviamos o olhar quando ela se nos apresenta ferida, sangrenta, em chaga. No seu amor infinito pelo homem Deus não se exclui dessa experiência dolorosa, e se no momento do nascimento como homem podemos contemplar a carne imaculada e divina de um recém-nascido, no momento da sua morte sobre o madeira da cruz vemos a carne macerada e ferida, trespassada pelos ferros, e da qual todos desviam o olhar.

Deus veio habitar na nossa carne, na sua infinita e suprema misericórdia, para nos libertar da tentação de querermos ser como deuses, de querermos ser anjos ou até super-homens. Jesus Cristo oferece-nos a divinização na nossa carne, na nossa condição humana, e por isso já não necessitamos de nada de extraordinário para nos encontrarmos com Deus e até para nos encontrarmos verdadeiramente com os nossos irmãos. É na nossa humanidade vivida, bem vivida, assumida na sua fragilidade e na sua eternidade, que nos encontramos uns com os outros e com Deus presente em cada um de nós, na nossa carne.

O mistério da Imaculada Conceição de Maria, como rezamos na oração da colecta desta solenidade, é uma preparação de uma digna morada para o Filho de Deus, uma morada histórica e temporal enquanto necessária ao nascimento de Cristo na nossa carne humana; mas é também uma antecipação do que a todos nos é oferecido, a possibilidade do nascimento de Cristo na nossa vida, na nossa carne, a purificação das nossas chagas putrificadas do pecado, na medida em que a deixarmos ser habitada pelo Espirito Santo de Deus.

A Solenidade da Imaculada Conceição de Maria coloca-nos diante do grande movimento de Deus ao encontro do homem, um movimento que pode ser rejeitado, contraposto com o nosso movimento de orgulho, ou que pode ser acolhido como Maria o fez diante da anunciação do anjo Gabriel. Na Carta aos Romanos, São Paulo convida-nos a acolhermo-nos uns aos outros como Cristo nos acolheu para glória de Deus.

Dispostos a celebrar a vinda do Filho de Deus ao nosso encontro, no Natal do Senhor, estejamos também dispostos a acolher todos os nossos irmãos que se dirigem a nós, pois na sua humanidade, na sua carne muitas vezes ferida e magoada, está presente o Verbo de Deus. Que nestes dias de Advento o procuremos ver!

 
Ilustração:
1 – Adão e Eva após o pecado, Johan Vilhelm Gertner, Coleccção Privada, Dinamarca.
2 – Imaculada Conceição, Peter Paul Rubens, Museu do Prado, Madrid.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Acreditais? Mt, 9,28


A caminho da celebração do Natal de Jesus o próprio Senhor coloca-se em caminho connosco. Vem ao nosso encontro, acompanha-nos, passa por nós e desperta-nos o desejo de o seguir. Tal como os cegos do Evangelho seguimos Jesus, gritando ou sussurrando o nosso pedido de misericórdia: Filho de David tem piedade de nós.
Ao entrar em casa, face a face, uma pergunta que nos desconcerta, que nos descoloca no nosso seguimento e no nosso grito: Mas vós acreditais que posso fazer o que pedis?
Acreditamos? Acreditamos verdadeiramente? A questão de Jesus é uma provocação à nossa demanda, à nossa fé, à confiança que depositamos nele. Confiamos verdadeira e plenamente nele?
Face à resposta crente e confiante dos cegos, Jesus responde que tudo será feito segundo a sua fé. E àqueles que tinham pedido piedade Jesus concede-lhes a visão, toca-lhes nos olhos e eles podem vê-lo.
Quando também nós pedimos a piedade e a misericórdia de Deus estamos dispostos a ser tocados na nossa cegueira e a despertar para a visão de Deus?
A nossa fé, expressa na oração de petição, leva-nos à visão do Filho de Deus que é o maior e verdadeiro bem que podemos desejar. Estamos dispostos a tal?
Que a nossa oração deste Advento esteja imbuída deste desejo e desta fé, e então veremos o Filho de Deus fazer-se carne da nossa carne, habitar em nós e entre nós.

Ilustração:
Cegos, de Frantisek Bilek, Citygallery, Praga, República Checa.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Ouvir a Palavra Mt 7


A caminho do Natal uma voz que vem de longe faz estremecer a noite.
Tantas vezes é a minha voz, que na noite grita: “Senhor, Senhor”!
Tu pareces surdo, e não respondes. E o grito ecoa na noite escura.
Mas quando silencio o meu grito, então oiço a voz que vem de longe, a voz que faz estremecer a noite.
Escuta! Escuta! Escuta!
Cada vez que grito no meio da noite, tu respondes “escuta!”
No silêncio, compreendo então que tu me conduzes, que me levas pelo caminho da Palavra.
Escutar a tua Palavra, deixar que ela me ilumine o coração, deixar-me conduzir por ela.
No silêncio da escuta permito que construas em mim a tua obra.
No silêncio consinto que assentes a minha vida e coração sobre a rocha que és Tu.
No silêncio da escuta da tua Palavra o coração recobra vida, a vida que dás àqueles que te escutam.
Podem vir as chuvas e os ventos, a tempestade que abala a casa e o coração.
Tudo poderei e suportarei, no silêncio da escuta estou assente na rocha.
Vivo em ti e tu vives em mim, vivo como Tu, entregando a vida aos meus irmãos entre a chuva e as tempestades.
Vivo já no teu Reino, no Reino inaugurado quando viestes viver entre nós.
Hoje, como sempre, a porta do Reino abre-se pela Palavra.
Que o silêncio se faça em mim neste Advento!
Para te escutar!

Ilustração:
A solidão de Cristo, Alphonse Osbert, Thos. Agnew & Sons Ldt. Londres.


quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Para não desfalecer - Mt 15,


Nunca é demais recordar que estamos em caminho, somos um povo em caminho. Esta é uma realidade intrínseca à nossa condição de crentes, de homens e mulheres de fé. Tal como Abraão somos convidados por Deus a deixar a nossa terra, as nossas seguranças e a ir para a terra nova da sua promessa, a terra nova que é o próprio Deus.
Como povo em caminho podemos desfalecer na caminhada, desesperar das condições em que caminhamos, desanimar face à falta de ver a terra prometida no nosso horizonte, tal como aconteceu com o povo de Israel no deserto e depois de ter visto os grandes sinais realizados por Deus no momento da libertação da terra da escravidão.
E como podemos desfalecer, Jesus o Filho de Deus feito homem não se alheia desta realidade, não lhe é indiferente a nossa situação e o perigo que corremos. Assim, quando a multidão sobe ao monte para se encontrar com ele, para que ele cure os coxos e os cegos, os doentes trazidos em braços, para o escutar na sua palavra iluminadora, Jesus preocupa-se com o regresso da multidão, com a possibilidade de desfalecerem no regresso a casa.
Jesus na sua misericórdia multiplica o pão, e multiplica-o de forma abundante, não quer que ninguém desfaleça, quer aqueles que o procuram bem alimentados. E para tal conta connosco, com aquilo que cada um pode oferecer, com a nossa modesta oferenda, da qual é capaz de tirar a superabundância. Jesus realiza o extraordinário, o milagre, mas a partir do ordinário, do quotidiano, para o nosso quotidiano.
Na nossa caminhada de Advento, o quotidiano, a rotina do nosso dia a dia, o ordinário das nossas vidas, não podem deixar de ser oferta, não podem deixar de ser apresentadas a Deus. É a partir delas, dessa oferta que o Filho de Deus feito homem realiza o milagre, multiplica o pão e nos alimenta para não desfalecermos na caminhada.
Que em cada dia deste Advento sejamos capazes, ao terminar o dia, de apresentar a nossa modesta oferta, tantas vezes miserável oferta, para que no dia seguinte ela seja alimento transformado por Deus para nos fortalecer para novos passos, novos desafios, uma outra e melhor oferta.

Ilustração:
Anoitecer na Beira Alta.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Revelação aos pequeninos - Lc 10,21

O Advento é um tempo de caminhada, de nos pormos em caminho e a caminho para o Natal do Senhor. É um tempo para dar passos, um de cada vez, comos os pequeninos que balançam em cada novo ensaio de um passo, porque afinal é aos pequeninos que são reveladas as verdades que são escondidas aos sábios e inteligentes.
O Advento é um tempo para sermos pequeninos, vivermos humildemente, à semelhança daquele que se fez humilde para se encontrar connosco, porque é pela humildade que somos atraídos[1], é na humildade que Deus se encontra connosco e se une a nós.
Ser pequeno e ser humilde é literalmente ser alguém sem voz, é ser alguém que não sabe como exprimir em palavras o que lhe é dado conhecer e viver, o que lhe foi revelado.
Jesus chama bem-aventurados os seus discípulos porque vêem o que muitos quiseram ver e ouvem o que muitos quiseram ouvir, mas apesar disso falta-lhes as palavras, são incapazes de dizer do mistério que presenciam e vivem. Experimentam qualquer coisa de indizível e para o qual as palavras são demasiado opacas e diminutas.
Felizes seremos quando nesta caminhada de Advento pressentirmos qualquer coisa do indizível, qualquer coisa do mistério de Deus, ainda que as palavras nos faltem ou nos façam sentir ignorantes, apesar da incapacidade de um balbuciar. Nesse rubor da pele ou fremir do coração o Eterno faz-se próximo, toca-nos, Deus humildemente vem ao encontro da nossa pequenez. Deixemos que nos toque e que nos guie nos caminhos que só Ele conhece.

 
Ilustração:
Primeiros passos, Vincent van Gogh, Metropolitan Museum of Art, Nova York.



[1] Cf. Papa Francisco – Admirabile  signum, nº 1.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Ir ao encontro de Jesus - Mt 8,5

Ao iniciarmos o Advento coloca-se diante de nós a figura do centurião romano que São Mateus nos apresenta em Cafarnaum dirigindo-se a Jesus. É um pagão, adorador de outros deuses feitos de metal e barro, homem habituado à guerra e ao domínio sobre os outros, tem subalternos aos quais ordena e lhe obedecem cegamente. Mas apesar disso é um homem com um coração, e um coração bondoso, tem sentimentos e sente o sofrimento do seu servo, que jaz paralítico em casa. Sai para ir ao encontro de Jesus.
Ao iniciarmos o Advento de 2019 somos também convidados a sair, a ir ao encontro de Jesus, “somos convidados a colocar-nos espiritualmente a caminho”[1], a não nos deixarmos prender no que possam ser as nossas dificuldades, as nossas infidelidades, os cultos que prestamos a outros deuses cujos pés de barro os tornam mais frágeis que nós próprios.
Como o centurião romano de Cafarnaum também nós temos coração, também nós sentimos, a nossa dor, a mágoa dos nossos desaires, a dor dos nossos irmãos, os seus sofrimentos, a desordem das nossas vidas pessoais, familiares ou profissionais. Que não sejam elas a impedir-nos de caminhar ao encontro de Jesus, a procurar celebrar dignamente o nascimento do Filho de Deus na nossa humanidade.
Que a nossa dor ou a dor do outro nos leve a dar o primeiro passo, a ir ao encontro de Jesus, para que também nós possamos escutar dos lábios de Cristo que a nossa fé é grande.

 
Ilustração:
Jesus e o centurião, Paolo Veronese, Museu do Prado, Madrid.



[1] Papa Francisco – Admirabile signum, nº 1.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Homilia I Domingo do Advento - Ano A

Iniciamos hoje o tempo de preparação para o Natal, o Advento, e com ele iniciamos mais um ano litúrgico. Acendemos a nossa primeira vela da coroa de Advento, um costume e tradição que remonta aos cristãos luteranos do século dezasseis e que nos meados do século vinte integrámos nas nossas tradições natalícias. Os nossos bisavós não conheceram a coroa de Advento, e a árvore de Natal era um mero apontamento decorativo do presépio, um ramo de pinheiro com uns flocos de algodão para encenar o frio da noite do nascimento do Menino.

A coroa de Natal que este ano decora a nossa igreja tem muito pouco de coroa, assemelha-se mais com uma cruz, uma cruz feita de cepas e ramos de videira. Através dela procuramos ilustrar a mensagem que nos foi proposta pelo programa pastoral da Diocese do Porto, centrado no sacramento do Baptismo.

No Baptismo somos enxertados em Cristo, somos os ramos novos dessa cepa sagrada que lança as suas raízes mais profundas no jardim do paraíso, no qual a árvore da Vida se encontrava; somos os ramos novos desse tronco que cresce desde o seio de Jessé através de reis, profetas e sacerdotes; somos aqueles que foram purificados e alimentados dessa água e sangue que brotaram do lado de Cristo pregado no madeiro da cruz, a nova Árvore da Vida.

As crianças que acolhemos nesta celebração em ordem à recepção do Baptismo serão vides novas, novos enxertos, para que iluminados por Cristo produzam fruto abundante. Tal como eles foram convidados a caminhar à luz de Cristo também cada um de nós é convidado a caminhar e viver à luz do Senhor, a ser testemunhas para eles, que agora dão os primeiros passos, da vida iluminada que recebemos no Baptismo.

Por isso acendemos esta vela, para nos recordar que não podemos andar nas trevas, que a noite vai adiantada e que só à luz de Cristo podemos verdadeiramente vigiar sobre a nossa vida e perceber os passos que o Senhor dá ao nosso encontro. Ao fazer-se homem como nós, ao nascer em Belém, o Senhor deu o maior passo ao nosso encontro, mostrou-nos que na nossa humanidade está o caminho para nos encontrarmos com ele, que não necessitamos de nada muito extraordinário. Hoje, em cada momento de encontro e em cada homem e mulher que se cruzam na nossa vida, Jesus continua a nascer para nós e a querer fazer-se carne da nossa carne.

A nossa vida é uma longa gestação e o Advento recorda-nos essa fundamental realidade do nosso ser e existência; vivemos em esperança, na esperança da vinda de Cristo, que veio na nossa carne há dois mil anos, que virá para nos julgar no fim dos tempos, mas que vem existencialmente em cada dia da nossa vida, numa hora e num momento que nos é desconhecido.

O Natal do Senhor e o Advento que nos prepara para a sua celebração dizem-nos que não podemos estar encerrados, fechados na previsibilidade, Deus é uma surpresa, uma novidade que acontece em cada dia. O Advento e o Natal desafiam-nos a essa abertura fundamental da existência ao outro, a uma concepção da vida como uma realidade que vai para lá do imediato, em que “nós não somos uma espécie animal empenhada numa lógica de sobrevivência, porque ao mesmo tempo que nos é dada a consciência da nossa mortalidade é-nos estendida a mão do Eterno para participarmos com Ele na Vida”.[1]

Livres da lógica da sobrevivência podemos viver dignamente, como nos recomenda São Paulo na Carta aos Romanos que escutamos, podemos viver sem excessos, quer sejam na comida, quer sejam na bebida, ou até mesmo no ócio. Não se trata de ter tudo para não perecer, de satisfazer todos os apetites, pois tais exageros levam à corrupção do próprio corpo e também da consciência, ao nascimento dos ódios e invejas; mas trata-se, como nos recorda o Papa Francisco na Encíclica Laudato Si, de “procurar conduzir todas as coisas a Deus”[2], para a sua glória, quer no conjunto da dinâmica da obra da criação quer no serviço que prestam ao homem para a sua realização plena.

Imbuídos deste espirito somos assim convidados neste Advento de 2019 a estar atentos à nossa condição baptismal de filhos de Deus, a não perdermos de vista que Jesus Cristo nos ilumina e transfigura no mais recôndito na nossa condição, e que a partir desta iluminação e transfiguração podemos e devemos relativizar o que materialmente necessitamos, a moderar o nosso consumo, a cuidar a nossa casa comum que é o planeta que habitamos, que mais importante que dar presentes é estar presente, é fazer-se presente.

Para que estes propósitos possam encarnar-se em cada um de nós, vamos nesta primeira semana assumir as palavras do salmista no Salmo 121, que rezámos hoje como Salmo Responsorial; vamos pedir para os nossos irmãos e para o nosso coração a paz, que haja tranquilidade nos nossos corações, que vivamos seguros e vivam seguros aqueles que amamos porque Deus habita nos nossos corações e não desampara os que caminham à sua luz e se revestem da graça do seu Filho.

 
Ilustração:
Coroa / Cruz de Advento preparada na igreja de Cristo Rei, Porto.



[1] Muller-Colard, Marion – Éclats d’Évangile, 200.
[2] Papa Francisco – Laudato si, nº 83