domingo, 29 de novembro de 2009

Homilia Domingo I do Advento

A leitura do Evangelho deste primeiro domingo do Advento é mais um trecho da secção apocalíptica do Evangelho de São Lucas. Depois de afirmada a conquista e destruição de Jerusalém afirma-se a destruição do mundo, porque na concepção apocalíptica judaica uma destruição era inerente à outra. Sendo destruída Jerusalém, como centro do mundo, era inevitavelmente destruído também o mundo.
Esta concepção simplista, automática, da mentalidade apocalíptica judaica enquadra o texto de São Lucas, mas não mais que isso, porque a mensagem de Jesus que encontramos nestas palavras não é uma mensagem de destruição ou aniquilação, mas uma mensagem de salvação, uma mensagem de esperança, “levantai as vossas cabeças”. Mais do que um fim do mundo estamos perante o anúncio de um novo mundo, uma nova realidade e por isso a Igreja coloca este texto na liturgia da Palavra do primeiro domingo do Advento, assinalando essa novidade e mundo novo que somos convidados a procurar.
A imagem que Jesus nos apresenta da vinda do Filho do Homem com grande poder e glória sobre a nuvem não representa o fim, não é o último acontecimento da história, mas um movimento constante, um devir que está a acontecer na mesma história e portanto exige uma necessidade de atenção e de sabedoria para ser tornar perceptível e real. É esse convite e recomendação a estarmos vigilantes, atentos, para que o nosso coração não se torne pesado e não sermos surpreendidos quando comparecermos diante de Deus.
Mas o que significa estar vigilantes? Como podemos estar vigilantes em todo o momento? Colocar esta interrogação não é de todo descabido, porque se num primeiro momento podemos intuir vários sentidos para o que significa vigiar, é de todo importante sabermos como fazê-lo verdadeira e correctamente, como nos contratos que socialmente assinamos, em que lemos as rubricas das responsabilidades a que nos obrigamos. A que nos obriga o estado de vigilância cristã? Vamos tentar uma resposta.
Hoje podemos dizer que o nosso computador vigia quando hiberna. Para não gastar energia auto suspende-se e aguarda vigilante que a um pequeno toque nosso volte à actividade. O computador vigia, aguarda, mas não vai além disso. É esta a nossa vigilância? Aguardar que algo se passe!
Podemos também considerar que uma noitada de trabalho, uma directa, ou até uma saída à noite com os amigos, é uma vigilância. Muitas vezes uma vigilância até bastante organizada em que aparecem alguns químicos para não cairmos no sono e na desconexão do grupo. Vigiamos, mas para não nos perdermos; vigiamos mas centrados em nós e nas nossas necessidades.
A mãe que aguarda impaciente a chegada dos filhos, ou a família que espera pacientemente na sala do hospital faz também a sua vigilância, aguarda em expectativa uma notícia, uma presença que não é já a sua. Podemos não fazer nada, por vezes perdemos a paciência, mas estamos vigilantes e estamos por alguém, por um outro a que aguardamos ou desejamos.
Por fim temos também a vigilância daquele que se assume como responsável, a vigilância daquele que se encarrega de que não falte nada, de que a obra chegue a bom termo e sem prejuízo, a vigilância daquele que diz “deixa que eu tomarei conta”. Esta é a vigilância cristã, é a vigilância que nos é solicitada neste início de advento, uma vigilância activa e participativa, uma vigilância responsável e coerente.
Contudo, se o Advento nos solicita esta atitude de vigilância temos que perceber a sua total dimensão e realidade, porque de facto a expectativa da espera prende-se e relaciona-se com um acontecimento que já ocorreu na história, um acontecimento que tem já dois mil anos, o nascimento do Filho de Deus entre nós. Assim, como podemos vigiar e esperar algo que já ocorreu?
A resposta para esta questão é-nos dada pelo complemento da recomendação a vigiar, “orai em todo o tempo” e pelas palavras de São Paulo aos Tessalonicenses “o Senhor vos faça crescer na caridade uns para com os outros”. A caridade que manifestamos uns aos outros é esse vigiar activo e participativo, é esse actualizar constante e num eterno devir do acto de caridade e amor que se deu de forma plena na encarnação do Filho de Deus. O nosso vigiar deve traduzir-se no actualizar desse amor, no fazer com que no mundo e na história dos homens não tenha fim essa expectativa do amor e da felicidade. Para isso tomamos conta, arregaçamos as mangas e metemos mãos à obra.
E porque sabemos que muitas vezes nos deixamos subjugar pelas preocupações da vida, pelas armadilhas do mal, porque perdemos a esperança, a oração a que Jesus nos convida apresenta-se-nos como a sentinela que nãos nos permite adormecer nem deixar de vigiar. A oração liberta-nos de nós próprios e coloca-nos num estado de atenção aos outros, aos problemas, à própria intervenção de Deus na nossa história e na história dos homens nossos companheiros. A oração pode e deve ser a sentinela da nossa vigilância.
Até ao Natal, à festa do nascimento do nosso Salvador, temos quatro semanas para procurarmos viver esta expectativa da vinda de Deus até nós na nossa condição humana. Procuremos viver mantendo a nossa caridade e fraternidade activas e a nossa oração como uma sentinela vigilante que espera a aurora.

domingo, 22 de novembro de 2009

Homilia Solenidade de Cristo Rei

O ano litúrgico termina com esta celebração da Solenidade de Jesus Cristo como Rei do Universo. E ainda que a primeira leitura, do livro do profeta Daniel e a segunda leitura, do livro do Apocalipse, apresentem um rei celeste, divino, uma figura que até nos podemos atrever a apelidar de mítica, o Evangelho desta Solenidade pelo contrário apresenta-nos uma figura bastante limitada e humana, uma figura que nada tem de real, de nobre, de poder, na situação em que se encontra e se afirma como sendo rei.
O Evangelho de São João desta solenidade de Cristo Rei apresenta-nos o Jesus da paixão, o Jesus do processo judicial de Pilatos, o Jesus entregue para a condenação à morte por aqueles que bem pouco antes o tinham aclamado como o rei esperado de Israel. Contudo, é neste processo e nesta aniquilação, neste sofrimento e nesta morte ignominiosa que Jesus se revela como o verdadeiro Rei do Universo, da história e dos homens.
E revela-se como Rei porque se assume como verdadeiramente é oculto na figura humana desfigurada do homem, e porque se assume como o único que age por sua liberdade e vontade. Se no último momento da paixão, antes de expirar o último suspiro, diz “Pai nas tuas mãos entrego o meu espírito”, estas palavras são apenas a conclusão e a assumpção de toda a entrega que se inicia no momento da encarnação e de uma forma mais efectiva no momento da agonia do jardim das oliveiras.
Pilatos pergunta a Jesus se ele é rei, mas Jesus não lhe responde à primeira, bem pelo contrário contra interroga Pilatos para que seja ele próprio a encontrar a resposta para a questão que coloca. O silêncio de Jesus é a resposta, porque de facto só os outros podem dizer de Jesus se ele é rei ou não, só os que o aceitam é que podem proclamar essa realeza.
Este silêncio de Jesus, ou não resposta directa, contrapõe-se à resposta que dá no jardim das oliveiras quando Judas com os soldados chegam para o prender e levar. À pergunta “és tu Jesus de Nazaré”, Jesus apresenta-se diante dos soldados e populaça e diz-lhes “eu sou”, provocando a queda de alguns e o recuo de outros. Neste momento Jesus diz quem é verdadeiramente e de uma forma crucial, depois de uma longa noite de oração com o Pai sobre o cumprimento da vontade e o cálice a beber. Jesus é Deus, o mesmo Deus que se tinha revelado a Moisés na sarça-ardente, e por isso os soldados caiem e a populaça recua. Jesus identifica-se na sua realidade e com toda a autoridade, revela-se e responde antecipadamente à pergunta de Pilatos, revela-se como o único que tem poder sobre a sua vida e a entrega que vai fazer para o cumprimento do projecto salvador de Deus.
Pilatos compreende de alguma forma a resposta de Jesus e ainda que depois de uma forma ambígua, mesclada de cobardia e poder, lave as mãos sobre o fim estabelecido para Jesus, a verdade é que quando é censurado por ter escrito na placa a colocar na cruz “Jesus de Nazaré Rei dos Judeus” não abdica do que escreveu, confirmando assim dessa forma não só a verdade que se revelava, mas também a resposta que tinha encontrado, ainda que difusa e pouco consistente para lhe permitir outra resposta e solução.
Testemunhas deste processo também nós somos confrontados por Jesus, porque de facto como Pilatos também nós somos chamados a dar uma resposta, a rascunhar uma resposta convicta e convincente. Somos capazes de a dar, ou como Pilatos preferimos olhar para o lado, para o politicamente correcto, e deixar Jesus seguir o seu fim trágico?
Hoje a resposta exige-se-nos quando nos entram pelos olhos adentro as situações de injustiça, de miséria, de violência e de ódio. As vítimas destas circunstâncias são hoje os nossos Cristos, as figuras humanamente desfiguradas, que exigem uma resposta, uma tomada de posição da nossa parte.
E neste sentido é bastante interessante olharmos para outro interveniente no processo de aniquilação de Jesus, da sua paixão e morte, para o centurião romano que depois de ver Jesus elevado na cruz, despojado de toda a dignidade, aniquilado na sua própria humanidade, proclama “ verdadeiramente este é o Filho de Deus”. É a proclamação de fé mais sublime, mas simultaneamente a maior proclamação da realeza de Jesus, porque no momento em que não é nada, em que está despojado de todo e qualquer poder, até mesmo da dignidade humana, há alguém que reconhece a realeza através da afirmação da filiação divina. É no aniquilamento, na entrega livre do seu espírito nas mãos do Pai que Jesus se revela como rei do universo.
Também nós somos convidados por Deus a ser como este centurião romano, o último da escala hierárquica do poder que tinha levado Jesus até à morte, mas que na sua simplicidade e limitação e perante a tragédia do outro é capaz de proclamar a sua compreensão do mistério que se revela. Também nós nas nossas limitações e circunstâncias podemos e devemos dar testemunho de Jesus Cristo, da sua realeza manifestada em cada situação de injustiça e mentira, de violência e exploração.
Os nossos medos, os nossos respeitos humanos, a mentira e o desprezo, alguma ligeireza das nossas convicções, o mesmo medo da cruz, podem ser formas de voltar a crucificar Jesus, de aniquilarmos ignominiosamente a realeza de Deus que se manifesta veladamente através de cada filho de Deus com quem partilhamos a vida.
Canta Salomão que preferiu a Sabedoria aos tronos e aos ceptros, possamos nós também cantar as mesmas palavras, porque preferimos a sabedoria aos poderes deste mundo, porque dispusemos da nossa vontade e liberdade para construir o Reino de Deus entre nós.

domingo, 15 de novembro de 2009

Homilia Domingo XXXIII do Tempo Comum

A primeira leitura e o Evangelho deste penúltimo domingo do ano litúrgico apresentam-nos a realidade do fim dos tempos, do fim da história e da humanidade.
Alguns filmes, como o “2012” que estreou esta semana, baseado em profecias diversas, apresentam-nos visualmente esse fim e como estamos marcados por essa mentalidade, essa concepção de um fim catastrófico, trágico, em que tudo e todos serão aniquilados.
A leitura da profecia de Daniel e o discurso de Jesus no Evangelho de São Marcos que escutámos estão alicerçados também nesta concepção, nesta ideia que surgiu no mundo bíblico por volta do século segundo antes de Cristo e que apenas tinha como objectivo dar uma resposta imediata e esperançada para as angústias dos que viviam aqueles tempos difíceis da perseguição, da exploração e da escravatura imperial. Os maus, os que violentavam e exploravam não seriam os vencedores finais.
Contudo, tanto a profecia de Daniel como as palavras de Jesus convidam-nos a olhar mais para além dessa realidade, dessa dimensão catastrófica e trágica, convidam-nos à esperança e a um estilo de vida que deve estar pautado por este fim ao qual todos estamos destinados, mas que não nos deve de modo nenhum condicionar nem privar da liberdade de acreditar e viver para além dele.
A profecia de Daniel diz-nos que o fim será um tempo de angústia, mas também nesse tempo e no meio dessa angústia virá a salvação, para aqueles que estiverem inscritos no livro de Deus. Nas palavras de Jesus serão os seus eleitos que serão reunidos dos quatro pontos cardeais, depois de um tempo de aflição. Ora, perante isto o importante não é o tempo, o acontecimento, mas a condição e o estatuto em que cada um for encontrado, porque como também nos diz Jesus ninguém sabe a hora nem o dia desse acontecimento final.
Na profecia de Daniel os sábios resplandecerão como a luz e os que tiverem ensinado o caminho da justiça serão como as estrelas. Assim, o que verdadeiramente conta nesse momento final é a sabedoria e a justiça, a sabedoria com que tivermos vivido e a justiça que tivermos praticado e ensinado a praticar. Nas palavras de Jesus esta sabedoria e justiça traduz-se nessa capacidade de discernimento de perceber nos sinais dos tempos, no rebentar da folha da figueira, o que verdadeiramente se está a passar e como Deus está a agir no mundo, e como nós podemos colaborar nessa acção.
E quando olhamos os sinais dos tempos e tentamos perceber o que significam, não podemos esquecer que tanto o mundo em que vivemos, como as pessoas que somos, são obra do amor de Deus, são fruto do seu amor e da sua misericórdia, e que Deus nunca abandonou a história a que deu origem a partir da primeira obra da criação, que tem estado presente, está presente e actuante, e mais que tudo interveio na história através da incarnação do seu Filho para nos libertar dessa mesma condição trágica de finitude a que estávamos condenados pelo pecado.
A encarnação de Jesus Cristo, a sua vida, paixão morte e ressurreição são o sinal mais inequívoco de que Deus quer saber de nós, não nos quer condenados, nem nos condena ou castiga a um fim trágico e aniquilador. Deus não abandonou a história do homem, não abandona a nossa história pessoal, nem deixa que um fim aniquilador se abata sobre nós.
Contudo, e para que seja assim, não podemos viver longe da verdade nem na injustiça; bem pelo contrário, temos que procurar em cada momento da nossa vida viver como sábios, como homens e mulheres que conscientes da sua liberdade e fim vivem com responsabilidade. As alterações climáticas a que estamos assistindo mostram-nos tal qual um sinal vermelho dos semáforos como levámos já longe a nossa irresponsabilidade na administração dos recursos naturais, da conservação das espécies e bens comuns da humanidade, e como é necessário inverter a marcha para que não terminemos numa catástrofe. Paralelamente, as violações das leis, a corrupção, a falta de verdade e transparência, a ganância e a mentira, mostram-nos como estamos à beira de um colapso das estruturas e mecanismos que construímos fundados na liberdade, no reconhecimento mutuo dos direitos e deveres. Os atentados à vida, como o aborto e a eutanásia, a desestruturação da família, a falta de valores que norteiem a educação e formação das crianças e jovens, a relativização de todo e qualquer valor moral ou ético, estão a conduzir-nos a outro fim que é o fim do mesmo homem enquanto medida da própria construção do mundo.
Deus não quer o nosso fim trágico, a nossa aniquilação, mas nós estamos irresponsavelmente a fazer tudo para que isso aconteça, impedindo assim que a obra de Deus continue e a salvação que o seu Filho nos trouxe seja consumada até ao fim dos tempos.
Este é um discurso apocalíptico, mas se é assim é porque de facto acreditamos que é possível a conversão, que é possível a mudança de estilo de vida, de princípios e valores, de comportamentos. Não está fora do nosso alcance essa mudança, está na nossa mão, e a Palavra de Deus e os seus mandamentos são pistas para a sua concretização, para a sua viabilização. E ainda que algumas pessoas o afirmem, a Palavra de Deus e os seus mandamentos não são uma ingerência na nossa vida privada, uma violência sobre a nossa autonomia e liberdade, bem pelo contrário são possibilidades de uma realização mais plena da nossa própria natureza e história pessoal e comunitária.
Perante todas as possibilidades de tragédia, de fins apocalípticos do mundo, a maior tragédia e o mais triste fim é vivermos à sombra do medo de Deus, na ignorância das possibilidades de realização total que Deus oferece à nossa existência.
Peçamos ao Senhor a Sabedoria para discernir os sinais dos tempos e viver a justiça a que somos convidados.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Frei José de Santo António (Castelo Branco)

Assento da Tomada de Hábito, como se encontra no original:

Aos 19 dias do mês de Março de 1701 tomou o hábito de pupilo nas mãos do Nosso Muito Reverendo Prior Provincial Padre Mestre frei José Galrão o Irmão frei José de Santo António que no século se chamava D. José de Castelo Branco, filho legítimo dos Condes de Pombeiro; em fé do que fiz este assento, dia mês e ano ut supra.
Frei André Rangel, Mestre dos Noviços
[À margem:] Faleceu no terramoto do primeiro de Novembro de 1755 sem que aparecesse o seu corpo.[1]
[1] AHD – Livro das Profissões do Convento de São Domingos de Lisboa, fólio nº 188.

Dominicanos falecidos no terramoto de Lisboa de 1755

Rezam as notícias que chegaram até nós, que no dia fatídico do terramoto de Lisboa de 1755 morreram três frades dominicanos no desabamento da igreja e complexo conventual e mais três leigos, um oficial da botica que existia na convento e dois criados do convento.
João Baptista de Castro na sua obra “Mapa de Portugal Antigo e Moderno” diz-nos que os frades falecidos foram:
O Padre Presentado frei Manuel dos Santos, excelente Pregador e aquele que estava destinado a pregar nesse mesmo dia;
O Padre frei José de Castelo Branco, filho dos Condes de Pombeiro;
O Padre frei António José César, organista.
À margem do assento da tomada de hábito de frei José de Castelo Branco, ou de Santo António, nome religioso que tomou, está registado que faleceu no terramoto do primeiro de Novembro de 1755 mas sem que aparecesse o seu corpo.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

A estrela de São Domingos

Qualquer imagem para ser reconhecível e identificável necessita de signos, de sinais identificadores únicos e inequívocos. Nas imagens religiosas tal facto nem sempre é possível, pois há signos e elementos identificadores, os chamados atributos iconográficos que se repetem e por isso geram muita confusão no momento de identificação da imagem.
Relativamente a São Domingos, à sua imagem e atributos iconográficos, temos que ter presente que eles foram fixados muito cedo, de uma forma muito rápida e pouco depois da morte do santo. São atributos que acompanharam a imagem no evoluir dos séculos e aos quais se acrescentaram outros conforme o tempo e o lugar em que a imagem era produzida.
Um desses atributos iconográficos é a estrela que se lhe apresenta na fronte, um atributo bastante precoce e que aparece ligado aos primeiros relatos hagiográficos.
Contudo, e ainda antes desses relatos terem sido redigidos, podemos ver que na carta que o Papa Gregório IX dirige em 1233 aos comissários de Bolonha, para que impulsionem o processo de canonização de São Domingos, se refere a este mesmo comparando-o com uma estrela.
Com razão se alegram muitos no nosso tempo por terem visto em pleno dia uma estrela, ainda quando recordam ter contemplado inumeráveis durante o decorrer da noite.”[1]
A partir dali todas as fontes identificaram São Domingos com esse símbolo, a estrela, inserindo-a nos relatos dos prodígios que rodearam o nascimento de Domingos ou do seu baptizado. Podemos encontrar em Constantino de Orvieto e em Pedro Ferrando as referências mais precisas e denunciadoras desta utilização.
Outro sinal que antecipa o futuro encontra-se na visão que teve uma senhora, nobre tanto pela sua honradez como pelas suas raízes, e que tinha retirado da pia baptismal a São Domingos. Viu como o menino Domingos tinha sobre a sua fronte uma estrela muito brilhante que iluminava toda a terra. Divinos presságios! A tocha e a estrela prefiguravam que Domingos seria como Elias.”[2]
Deus quis antecipar o que seria aquele menino e para tal serviu-se da sua madrinha, a qual, em sonhos teve a seguinte visão. Pareceu-lhe que o menino tinha na fronte uma estrela cuja luz iluminava toda a terra. Com isso dava a entender que seria luz das gentes e que iluminaria os que vivem nas trevas e nas sombras da morte. Quem teve esta visão era uma dama da nobreza, a qual estupefacta pelo que tinha contemplado, cheia de gozo, não deixou de o comunicar à mãe do menino.”[3]
Iconograficamente uma das primeiras representações deste atributo encontra-se numa das miniaturas dum livro de coro do Convento de Santa Maria Novela de Florença, um Antifonário composto por volta de 1275, e nela podemos ver o aparecimento da estrela na fronte de São Domingos no momento do seu baptismo.
A partir de então, relacionada com a representação deste momento da vida do Santo ou isoladamente, a estrela aparece como um dos atributos mais significativos de São Domingos.

[1] GREGÓRIO IX, Papa, Carta aos Comissários de Bolonha, in GALMES, Lorenzo e GOMEZ, Vito, Santo Domingo de Guzman Fuentes para su conocimiento. Madrid, BAC, 1987, 143.
[2] ORVIETO, Constantino de, Narração sobre São Domingos, in GALMES, Lorenzo e GOMEZ, Vito, Santo Domingo de Guzman Fuentes para su conocimiento. Madrid, BAC, 1987, 253.
[3] FERRANDO, Pedro, Narração sobre São Domingos, in GALMES, Lorenzo e GOMEZ, Vito, Santo Domingo de Guzman Fuentes para su conocimiento. Madrid, BAC, 1987, 223.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Frei José de Santo António (Castelo Branco)

Assento da Profissão Religiosa de frei José de Santo António, como se encontra no original:

Aos vinte e nove do mês de Junho de mil e setecentos e seis, das quatro para as cinco horas da tarde, em dia do Apostolo São Pedro, professou por filho deste Convento de São Domingos de Lisboa o Irmão frei José de Santo António, filho legítimo dos senhores Condes de Pombeiro, sendo Provincial desta Província o Muito Reverendo Padre Presentado frei Manuel de Sena e Prior deste Convento o Muito Reverendo Padre Presentado frei Rodrigo de Lancastre, em cujas mãos professou o dito frei José de Santo António; Mestre de Noviços o Padre frei Aberto de São Tomás ao qual irmão foi dito que pela profissão se obrigava a estreita obediência de nossas sagradas Constituições e Regra e que se em algum tempo se achasse que ele tinha passado alguma coisa que encontrasse a disposição que as nossas Sagradas Constituições ordenam ficaria a profissão nula, o que ele ratificou em fé do que fiz este assento, dia mês ano ut supra.
Frei Rodrigo de Lancastre, Prior
Frei Alberto de S. Tomás, Mestre de Noviços
Frei Joseph de Santo António

Homilia Domingo XXXII do Tempo Comum

Histórias estranhas as que nos apresentam a primeira leitura do Livro dos Reis e o Evangelho de São Marcos deste domingo. A uni-las não só as viúvas, essas pobres mulheres quase sem nada, mas também os homens e a postura diante da precariedade de cada uma delas, uma postura de certa forma até escandalosa.
Elias chega a Sarepta e encontra uma mulher que pouco mais tem que um resto de farinha e de azeite para se alimentar e juntamente com o filho esperar a morte. É no entanto a essa mulher prestes a experimentar a morte que Elias pede o alimento, pede o pouco que ela ainda possui, como se desejasse apressar o fim eminente e inevitável.
No templo de Jerusalém, diante da arca do tesouro, Jesus observa as esmolas que os fiéis deitam nessa mesma arca. Uns deitam bastante, parece que muito do que lhes sobra, outros deitam alguma coisa, o suficiente, mas uma viúva apresenta-se e deita as duas pequenas moedas que tem, as únicas que tem. Deita tudo. Jesus tudo observa, sem intervir, sem se manifestar, mesmo quando pouco antes tinha condenado aqueles que exploravam as viúvas com motivo de longas rezas.
Estas duas mulheres, estas pobres viúvas, são protagonistas de histórias de generosidade, dão tudo o que possuem, mas são também vítimas das exigências de um e da passividade de outro. Elias encontra-se com a viúva de Sarepta e depois de lhe pedir a água pede-lhe tudo o demais que tem. É a sua autoridade de profeta que exige e o impede de nem sequer a ajudar a recolher a pouca lenha que procurava para cozer o pão que ele pedia que lhe fizesse e desse. O profeta não só pede tudo, como se isenta de fazer alguma coisa, apenas apresenta uma promessa. Jesus, no templo, assiste a tudo e de uma forma passiva não impede que aquela pobre viúva se desfaça das duas moedas que possuía. Para alguém que criticava o templo, que um dia expulsara os vendilhões, era normal que se tivesse abeirado daquela viúva e a tivesse impedido de contribuir para afinal mais uma forma obsoleta de religiosidade. Mas nada fez, apenas assistiu a tudo permitindo que a viúva saísse mais pobre e o templo continuasse a enriquecer-se com o dinheiro dos pobres.
Nas duas histórias parece que as viúvas estão condenadas, que Deus não quer saber mesmo delas, que apesar da crítica profética e divina as viúvas foram mesmo feitas para serem exploradas. Deus parece tudo tomar e nada dar em troca.
A nossa história pessoal e de discípulos de Jesus Cristo tem muito de semelhante com a história desta viúvas, porque também a nós Deus vem pedir o que temos, o pouco que temos, mas é contudo muito porque nos garante ainda a subsistência até à morte. Como no caso da viúva de Sarepta Deus quer que lhe entreguemos o que ainda nos garante a segurança, o pouco que ainda nos possa restar, porque só na medida em que lhe entregarmos tudo, em que nos disponibilizarmos para a morte, Ele pode vir até nós na sua dádiva total.
E não é fácil esta entrega, a nossa generosidade, porque como à viúva de Sarepta o que nos é apresentado é apenas uma promessa, nada mais que isso. E ou confiamos nessa promessa e permitimos que Deus venha até nós, ou não confiamos e Deus pode passar ao nosso lado.
Elias diz à viúva, face à surpresa e ao absurdo do pedido, que não tenha medo, medo que também a nós nos paralisa e nos bloqueia a entrega total do que Deus nos pede. Porque muitas vezes, frequentemente, o que Deus nos pede não é muito do nosso património material, desse até somos capazes de nos desfazer e desprender com alguma facilidade. O que Deus nos pede é do nosso património espiritual, se assim o podemos chamar, é desse nosso narcisismo, desse nosso orgulho, da superficialidade, das nossas concepções egocêntricas que englobam o próprio Deus e a nossa relação com Ele.
Como dizia o Mestre Echkart o que Deus nos pede é que nos esvaziemos de nós próprios, dos nossos projectos, das nossas concepções, até de Deus, para que Deus possa verdadeiramente vir habitar em nós. E como isso é tão difícil, como nos custa tanto colocarmo-nos na mão do outro, dependentes, confiantes apenas numa palavra prometida. Queremos garantir o pouco, sempre um pouco que nos possa dar segurança até à morte, nem que seja a nossa imaginária fé em Deus.
E contudo, Jesus deixa-nos a promessa de que a nossa entrega total, a nossa generosidade absoluta tem uma recompensa, tem o seu olhar misericordioso, porque ele mesmo se entregou de forma total e radical para nos garantir que o cumprimento da promessa não era nenhuma ilusão.
É vã toda a segurança dos homens, canta-nos o salmista; contudo Senhor continuamos a confiar nessa segurança, continuamos a encher-nos dela, ocupando o espaço e o tempo que Vos pertence. Dá-nos Senhor um espírito de generosidade para nos irmos abandonando nas tuas mãos e à tua acção salvadora em nós. Ajuda-nos a que se cumpra em nós a tua Palavra.

domingo, 1 de novembro de 2009

Homilia Solenidade de Todos os Santos

Chegar a um sítio, para o qual se foi convidado, e deparar-se com uma multidão incontável, vinda de todos os povos e tribos, falando todas as línguas, não é muito agradável. É necessário ter um espírito muito cosmopolita e uma boa dose de à vontade para enfrentar esta multidão e sentir-se em casa e entre amigos.
Ora a leitura do livro do Apocalipse que nós escutámos nesta Festa de Todos os Santos é um convite a este espírito cosmopolita, não só para o momento do juízo final, mas sobretudo para o nosso dia a dia, para o nosso quotidiano e para a construção do reino de Deus neste mundo em que nos encontramos.
Porque de facto a grande multidão de que fala o autor do Apocalipse é a mesma multidão que povoa a terra e o mundo que habitamos, é a mesma multidão que se cruza connosco todos os dias na vida familiar, no trabalho, nos caminhos das cidades ou do campo. E como no juízo final vêm de todos os lados, falam línguas diferentes, são de povos e nações diferentes, têm outros valores, defendem outros princípios, lutam por outros direitos, podem até acreditar em um Deus outro.
Mas estão aí e como nós procuram viver a misericórdia, procuram ajudar o próximo, procuram a implantação da justiça e da paz, procuram o bem comum e a felicidade de um número cada vez maior de homens e mulheres. Podemos não acreditar, podemos até não querer, mas são bem-aventurados e para eles está também reservado o reino dos céus, a presença nessa grande assembleia que louva o Senhor.
O ancião do Apocalipse, face ao desconhecimento de João relativamente à razão da presença de tão numerosa assembleia, diz-lhe que todos aqueles que estão vestidos de túnicas brancas são os que vieram da grande tribulação e lavaram as suas túnicas no sangue do cordeiro. Ora o sangue do cordeiro foi derramado pela salvação dos homens, é o resultado de um crime violento contra um projecto de amor e de paz, que o Filho de Deus veio trazer aos homens seus irmãos. Desta forma todos aqueles que no seu viver se assemelham a este projecto, que derramam o seu sangue, fazem essa lavagem da sua túnica no sangue do Cordeiro e tornam-se dignos de participar na grande assembleia.
Ao falarmos de derramamento de sangue podemos limitar-nos apenas aos mártires, às vítimas mais violentas do ódio e da injustiça. Tal forma de pensar é restritiva e deixa de fora muitos outros homens e mulheres que não derramando o seu sangue, não sendo vítimas de violência, mesmo assim, não deixam de purificar a sua túnica no sangue do cordeiro.
Podemos e devemos pensar nas mães de família, nos enfermeiros e guardas prisionais, no irmão mais velho que protege o irmão mais novo, nas crianças que são deixadas abandonadas sem o carinho de um pai ou de uma mãe, podemos e devemos pensar em todos aqueles que sofrem, quer no corpo ou no espírito. Todos eles lavam as suas túnicas no sangue do Cordeiro, pois esse sangue foi derramado por todos e para salvação de todos.
Num mundo de imagens, em que uma imagem vale mais que mil palavras, esta realidade pode aparecer-nos como suspeita, como uma ilusão, como um ópio para alimentar a servidão e o sofrimento do povo. Face a essa suspeita não podemos deixar de ter presente as palavras da Carta de São João que escutámos, ou seja que neste momento ainda não se manifestou o que havemos de ser, que ainda não é visível ao nossos olhos, mas que no dia em que se manifestar veremos não só essas realidades tais como são mas também o próprio Deus tal como é.
A esperança dessa visão, e o agir de acordo com essa esperança através de gestos de bem e de verdade, leva-nos como diz São João a essa purificação. Temos já o meio da nossa purificação e por isso o importante é ir agindo, é ir realizando no mundo as acções que tornam essa purificação actuante e actual, realidade em nós e nos outros que nos rodeiam.
Celebramos hoje a festa de todos os santos, mas a verdade é que pouco lhes adianta a nossa celebração, uma vez que eles estão já purificados e contemplam a visão de Deus em toda a sua pureza. Esta celebração adianta-nos a nós, a nós que ainda caminhamos na esperança e na necessidade de nos irmos purificando através das obras de misericórdia. Os santos que celebramos, conhecidos e desconhecidos, dão-nos o exemplo de que é possível, de que está ao nosso alcance, com a graça de Deus e com a nossa esperança, esse processo de purificação para a contemplação final de Deus. Peçamos-lhes a sua intercessão para não desanimarmos e não perdermos a esperança.


Resposta a uma grata e Verdadeira Amiga

Desistir de publicar as homilias, de manter este blogue, de algumas outras coisas na minha vida presente, não foi algo que não me tenha passado já pela cabeça nestes últimos tempos. Interrogo-me sobre o sentido e a validade do que faço e do que vivo, quando a consciência nos acusa que é tudo tão superficial, tão momentâneo e tão frequentemente incoerente. Tudo tão sem sentido à luz de uns princípios dos quais já nem deles tenho qualquer certeza e por causa dos quais tenho desistido de outras coisas que me interrogam se devia desistir delas.
Não sei se devo pensar que é essa rebeldia adâmica de não nos satisfazermos em ser apenas instrumento, em querermos também para nós os louros de um trabalho que não é nosso mas é de Deus. Porque de facto se alguma coisa do que faço e escrevo está impregnado de profundidade, se adapta à sua realidade e a ajuda a gerar o silêncio de que necessita, não é da minha responsabilidade mas de Deus que ainda se vai servindo de mim para miseravelmente e através desta aridez em que me encontro fazer algum bem nos outros. Mas até quando…?