quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O amor faz-nos melhores

 
Que maravilha que seja suficiente amar para ser melhor. Mesmo perigoso, todo o amor, por si só, nos engrandece um pouco, uma vez que ele nos faz amar qualquer coisa para além de nós. São as circunstâncias, as consequências, que são perigosas.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Flores de gardénia do jardim da casa dos meus pais.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Os fins da arquitectura religiosa

 
A arquitectura religiosa comporta outros fins que a arquitectura profana, os fins espirituais. Uma igreja não é uma sala fechada arejada, iluminada, aquecida, para muitas pessoas. Ela deve produzir sempre um certo efeito de fronteira, nela entra-se num outro mundo. Ao mesmo tempo não é apenas um lugar de partida, qual Finisterra, uma vez que ela abriga a Presença real.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Fonte do Pocito na cripta da igreja de São Domingos em Caleruega.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Os problemas que se resolvem

 
Há muitos problemas que se resolvem por si próprios, outros que o curso do tempo que passa basta para os resolver, eles são solúveis no tempo como dizemos do que é solúvel na água.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Jacto de água no Lago Leman em Genebra.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Jesus escolheu doze entre os quais Simão e Judas (Lc 6,13-16)

Entre o conjunto de discípulos escolhidos por Jesus para seus Apóstolos encontramos Simão, chamado o zelote, e Judas filho de Tiago, também conhecido por Tadeu.
São discípulos que passam quase despercebidos no conjunto e na narração dos Evangelhos, mas que nos desafiam na medida da sua vocação, do chamamento de que são objecto por parte de Jesus.
O primeiro a desafiar-nos é Simão, que face à referência ideológica e partidária nos leva a perceber uma grande conversão, uma mudança radical de ideologia e de método.
Ao ser denominado por zelote, o autor do Evangelho informa-nos da procedência de Simão, do grupo político a que pertencia, um grupo que pretendia e lutava pela libertação do jugo romano através da força, daquilo que hoje denominamos a guerrilha. Sabemos que historicamente foi um grupo que teve os seus ideólogos e os seus mártires.
Ao incorporar o grupo dos discípulos e depois dos Apóstolos Simão teve que redirigir a sua força revolucionária para uma outra dimensão ou realidade; da força da violência Simão viu-se convidado à força da Palavra, à força do mandamento do amor. Se havia alguma liberdade a conquistar ela não podia ser conquistada pela violência, mas pela obediência e pelo serviço ao outro, mesmo que esse outro fosse o opressor.
Diante de Simão somos também nós convidados e desafiados a reorientar a nossa força, a violência que algumas vezes desponta em nós e nos conduz à tentativa de submissão ou destruição do outro. A nossa força não pode deixar de ser o amor e o serviço, só eles podem ter alguma influência na conversão o outro.
Judas Tadeu mostra-nos na sua vocação a habitabilidade de Deus entre os homens, no coração de cada homem que opta por acolher com amor a Palavra de Jesus.
É no momento da última ceia, depois da primeira promessa do Espirito Santo, que Judas Tadeu pergunta a Jesus sobre o momento da sua manifestação. Perante a possibilidade de uma manifestação mais pessoal ou mais universal, Jesus oferece a Judas Tadeu a única manifestação possível, ou seja a do seu amoroso acolhimento, a da habitabilidade de Deus com cada homem e consequentemente com toda a humanidade na medida do amor que se lhe tem. Deus faz morada naquele que lhe tem amor e acolhe a sua Palavra.
Neste sentido, e face a esta resposta a Judas Tadeu, somos também convidados a manifestar a presença de Deus através do acolhimento apaixonado da sua Palavra, a deixar que ela habite em nós e ilumine todas as realidades que nos rodeiam.
Simão e Judas conduzem-nos assim, neste dia em que celebramos a sua festa, a uma fé relacional, a uma fé viva e activa, à consciência da habitação de Deus connosco, às palavras de São Paulo que em nós são ainda um projecto, “não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim”.

 
Ilustração: “Virgem Maria com o Menino Jesus e São Simão e São Judas”, de Federico Barocci, Galeria Nacional delle Marche, Urbino.    

Atmosfera cristã

 
Há uma certa atmosfera cristã, uma certa atmosfera da vida humana cristã, e como que uma espécie de atmosfera natural da graça. É difícil de definir, mas sente-se muito bem no Evangelho, e parece-me que o âmbito das bem-aventuranças lhe dá o tom.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Cúpula central da Basílica do Rosário no Santuário de Lourdes.  

domingo, 27 de outubro de 2013

Homília do XXX Domingo do Tempo Comum

A parábola que Jesus conta para aqueles que se consideravam justos e desprezavam os outros vem ao encontro de uma questão extremamente importante e que se nos apresenta com relativa frequência quando deparamos com aquilo que parece ser um problema de comunicação entre nós e Deus.
Quando nos prestamos a rezar a Deus, quando dirigimos a Deus os nossos pedidos, com perseverança como nos era recomendado no domingo passado, e somos confrontados com o silêncio de Deus, com a sua ausência de resposta, perguntamo-nos inevitavelmente porque Deus não nos responde, porque não nos alcança as graças que solicitamos, e irreflectidamente concluímos que afinal Deus não é justo nem é bom connosco como nos foi dito.
Este sentimento e esta conclusão são ainda mais flagrantes e mais acutilantes na medida em que vemos outros irmãos nossos, sem qualquer preocupação moral ou religiosa, singrar na vida, serem favorecidos, alcançarem o que desejávamos, enquanto nós, que procuramos levar uma vida justa e religiosa, não alcançamos o desejado, nem sequer o bem que desejamos.
É para facultar uma resposta a este dilema que, depois de ter insistido na necessidade de perseverar na oração, Jesus apresenta a parábola do fariseu e do publicano que sobem ao templo para rezar. Uma parábola bastante simples e até muito prática, facilmente verificável para aqueles que escutavam Jesus.
Temos assim um fariseu que sobe ao templo para dar graças a Deus, é essa a sua oração, e neste sentido não há qualquer orgulho da sua parte face a Deus. Ele reconhece e agradece a Deus o dom da predilecção, do bem que é capaz de realizar. Ainda que tendo presente os outros como ponto de referência, ele reconhece e agradece a justiça que vem de Deus e encontra na sua vida. Podemos dizer que a sua oração é por um lado o elenco das suas virtudes e por outro lado a lista dos pecados que os outros cometem mas ele não comete.
Diante desta oração não podemos deixar de recordar como muitas vezes a acusação das nossas faltas no sacramento da reconciliação se assemelha bastante a estas palavras do fariseu, também nós muitas vezes confessamos mais os pecados daqueles que nos rodeiam que verdadeiramente os nossos.
No outro lado do templo encontramos o publicano, um homem que tem consciência de ser pecador e por isso se mantém afastado e de olhos baixos. Tem vergonha da sua situação, mas ainda assim não apresenta nenhuma lista de pecados cometidos e nem manifesta qualquer propósito de emenda. É meramente pecador e espera a compaixão de Deus face às suas faltas.
Neste sentido, diante de um e outro, podemos assumir que ambos são honestos e verdadeiros na sua oração, na forma como se dirigem a Deus, o que nos questiona sobre o que afinal Jesus queria dizer com esta parábola e a situação destes dois homens.
É o estribilho de conclusão da parábola que nos dá a resposta para a pergunta e a razão de Jesus contar esta parábola, ou seja, quem se humilha será exaltado e quem se exalta será humilhado.   
O pobre publicano, na sua humildade de quem está em dívida, foi capaz de pedir perdão a Deus das suas faltas e das suas misérias, foi capaz de sair de si e encontrar-se com Deus, ao passo que o fariseu se manteve sempre centrado em si mesmo e no bem que era capaz de realizar, não pedindo por isso nada a Deus.
O fariseu regressou por isso a casa sem justificação, apenas consigo próprio, vazio, sem perceber nada de Deus nem da sua misericórdia, enquanto o publicano regressava justificado, na medida em que tinha solicitado o perdão de Deus, na medida em que se tinha aberto a um futuro que podia ser de outra forma.
O fariseu ao não pedir o perdão a Deus ficou apenas no passado vivido, no já alcançado, no bem que praticava sem mais, enquanto o publicano abria para si uma nova oportunidade, um futuro cheio de novas oportunidades.
A parábola do fariseu e do publicano que sobem ao templo para rezar ajuda-nos assim a perceber que algum do silêncio de Deus, alguma daquela que consideramos injustiça de Deus face à nossa oração, se pode dever ao nosso olhar centrado em nós próprios, à autojustificação do bem que realizamos, bem como a uma percepção errada da misericórdia de Deus, que não se limita apenas a perdoar mas abre portas de futuro, coloca diante de nós a exigência do desafio da confiança em Deus.
Neste sentido, a nossa oração e os nossos pedidos a Deus não devem estar iluminados pelos outros, pelo bem ou mal que os outros façam, não devem estar justificado por qualquer bem que tenhamos realizado, mas devem estar apenas centrados no amor de Deus, na sua misericórdia, e na exigência que lhe é inerente de fidelidade confiante e responsável.
Que saibamos humildemente encontrar-nos com Deus nesta Eucaristia de modo a regressarmos a casa cheios da sua graça amorosa.

 
Ilustração: “O Fariseu e o Publicano”, medalhão decorativo de um dos confessionários da Igreja da Abadia de Saint-Gallen na Suíça.

A atmosfera da caridade

 
A atmosfera do génio não é a atmosfera da caridade, e as condições nas quais o génio desabrocha não são aquelas nas quais pode nascer e crescer a caridade. A caridade é um muito humilde amor, na intimidade, mas igualmente na obscuridade da noite.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Vela da procissão das velas no santuário de Lourdes.

sábado, 26 de outubro de 2013

A vocação é uma nova incarnação

 
Toda a vocação religiosa é uma homenagem a Deus através de uma nova incarnação do seu Filho. Os três votos, pobreza, castidade, obediência têm por fruto e por oferta o próprio Menino Jesus.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Cela monástica do Convento de Mafra.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A paixão alimenta-se de tudo

 
A paixão alimenta-se de tudo. Não há mais que deixar passar o tempo para poder curar tudo.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Grupo escultórico em chumbo dos jardins do Palácio de Queluz.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Eu vim trazer a divisão! (Lc 12,51)

As palavras de Jesus são muitas vezes de difícil interpretação, deixam-nos desconcertados e por isso não nos pode surpreender que os discípulos tenham tantas vezes compreendido tão pouco do que Jesus lhes dizia.
Uma das situações em que nos confrontamos com a dificuldade da compreensão da palavra de Jesus é quando ele nos diz que não veio estabelecer a paz na terra mas trazer a divisão, palavras que com toda a certeza deixaram os discípulos desesperados e desconcertados.
E quando olhamos para as referências familiares, pais contra filhos e filhos contra pais, podemos imaginar ainda melhor o desassossego que os discípulos sentiram face a tais palavras, uma vez que no projecto de seguimento de Jesus havia a ideia de uma nova família, um conjunto de relações fundadas sobre o amor e construídas na paz.
Contudo, e como os primeiros discípulos rapidamente puderam experimentar, Jesus provoca a divisão, gera o confronto, e não só exterior, face aos outros, mas sobretudo interior, face às forças que nos escravizam na medida em estão longe da justiça e não nos conduzem à santidade como diz São Paulo na Carta aos Romanos.
Os Evangelhos, quando nos referem as aspirações da mãe de Tiago e João, as pretensões de Pedro face à perspectiva de poder, a tragédia de Judas, não deixam de nos fazer presente esse conflito, essa divisão provocada por Jesus naqueles que estavam mais próximos de si.
Diante dela e do paradoxo face ao mandamento do amor e ao projecto de paz, não podemos deixar de assumir que se tal divisão existe, se Jesus provoca a divisão, é porque em nós existe a liberdade e a possibilidade do acolhimento ou da recusa.
Tal como podemos ler na Carta aos Romanos, nós podemos sujeitar-nos à escravidão dos nossos apetites ou sujeitar-nos ao dom de Deus, podemos acolher a via que conduz à vida, via de justiça e de santidade, ou podemos acolher a via que nos leva à morte.
É a nossa liberdade de opção que gera o conflito, que traça a divisão, pois como nos diz Jesus em uma outra passagem dos Evangelhos não se pode servir a dois senhores, ou se ama um ou se ama o outro.
Uma vez que nos é oferecido em Jesus o dom gratuito de Deus, procuremos pois, e apesar das dificuldades, acolhê-lo, confiantes que esse mesmo dom garante a força para prosseguir no caminho da fidelidade e da santificação.

 
Ilustração: “Mártires Cristãos no Coliseu”, de Konstantin Flavitsky, Russia.

A beleza aumenta a força de amar

 
A contemplação do mundo? A partir de um certo patamar as distrações são ilusórias; toda a doçura, toda a beleza do mundo ao dilatarem o coração não fazem mais que aumentar a força de amar.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Rosa branca do jardim da casa dos meus pais.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Quem é o administrador fiel e prudente? (Lc 12,42)

Face ao convite à vigilância, Pedro questiona Jesus sobre os destinatários das palavras proferidas, interessa-lhe saber se elas se dirigem a todos ou apenas aos discípulos.
A resposta de Jesus é uma parábola, uma outra parábola sobre a actividade da vigilância, sobre o serviço a exercer durante o tempo de espera pela vinda do Senhor.
Parábola que encerra uma questão extremamente importante, pois Jesus pergunta quem é o administrador fiel e prudente que o senhor estabelecerá à frente da sua casa, para dar a cada um a sua ração de trigo.
A vigilância comporta assim uma dimensão de fidelidade a par de uma dimensão de prudência. Aquele que vigia espera com fidelidade e exerce o seu serviço de forma prudente.
Para cada um de nós esta dupla dimensão é um desafio exigente pois não podemos deixar arrefecer o desejo que sustenta a fidelidade, como também não podemos desperdiçar as oportunidades de fazer frutificar os dons que recebemos.
Há a necessidade de um equilibro, necessidade dessa virtude da prudência que nos leva a não desperdiçar os dons recebidos e a saber trabalhá-los e utilizá-los de forma justa e significativa na expectativa e na esperança de que o verdadeiro dono deles vem para os receber.
Que o Senhor nos fortaleça na nossa fidelidade e nos ilumine na forma de prudentemente colocarmos ao seu serviço e ao serviço dos irmãos os dons que nos foram confiados.

 
Ilustração: “José vigiando os celeiros do faraó”, de Lawrence Alma-Tadema.  

O mistério da Incarnação

 
A incarnação que nos oferece Deus, que nos permite fixar nele os nossos olhos, esconde-o também. É o menino pobre, é o crucificado. Realidade da Incarnação: submissão a todas as condições normais.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Pintura do Nascimento de Jesus do Museu de Arte e História de Genebra.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Felizes os servos que o Senhor encontrar vigilantes (Lc 12,37)

Em diversas passagens dos Evangelhos Jesus convida-nos a viver em vigilância, em atitude de quem espera a chegada de alguém importante.
É um tempo de espera, de uma espera que não é passiva, inactiva, mas bem pelo contrário é um tempo de actividade, um tempo de serviço, um tempo em que é necessário manter acesas as lâmpadas.
O convite de Jesus, que encontramos no Evangelho de São Lucas, remete inevitavelmente para a parábola das virgens loucas e insensatas do Evangelho de São Mateus, pois numa e noutra parábola se trata de manter acesas as lâmpadas enquanto se espera a vinda do Senhor.
É o azeite do desejo que é necessário preservar numa e noutra parábola. Enquanto se espera na noite, no meio das dificuldades e até da sonolência do desânimo, não se pode deixar apagar o desejo pelo noivo que vem de núpcias.  
Por outra parte, o convite de Jesus remete ainda para outra parábola do Evangelho de São Mateus, para a parábola dos administradores dos talentos, em que também se espera a vinda do Senhor e na qual os bons administradores são convidados a partilhar da intimidade daquele que chega para fazer contas.
Numa síntese única, São Lucas une as duas parábolas de Mateus e mostra-nos que a vigilância, o tempo de espera que somos convidados a viver vigilantes, é um tempo de desejo e um tempo de serviço.
Neste tempo de espera pela vinda do Mestre somos convidados a viver no quotidiano, a não nos preocuparmos com o extraordinário, com obras fora do comum, mas a viver cada gesto, cada palavra, cada momento, marcados por esse desejo de que o Senhor venha.
É um dinamismo interior, um espirito, que deve marcar o nosso agir, é o amor livre e desinteressado que deve marcar a diferença e cunhar cada realidade com o sinal da espera de quem virá enquanto vem já em cada momento do nosso agir amante.

 
Ilustração: “Madalena Penitente”, de Georges de La Tour, National Gallery of Art, Washington.

A velhice da alma

 
Fora da graça e do ambiente da graça a alma envelhece como o corpo.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Jardim Eaux-Vives em Genebra coberto de neve.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Vou construir uns celeiros maiores (Lc 12,18)

Alguns séculos antes de Jesus habitar entre os homens, um jovem da sua raça, vendido como escravo e levado para o Egipto, de nome José, construiu num período de abundância grandes celeiros para guardar o trigo das colheitas da nação. Previdente e sábio guardou o alimento para os anos de fome que posteriormente se seguiram.  
A parábola que Jesus conta sobre um homem rico que tem uma grande colheita e decide deitar abaixo os seus celeiros para construir outros maiores e guardar toda a sua produção não se diferencia muito da história de José na sua materialidade.
Contudo, uma e outra história estão separadas por um abismo tremendo, são a antítese uma da outra, pois o homem rico da parábola guarda o trigo da sua produção apenas para si, para seu deleite pessoal, enquanto José guarda o trigo para o poder distribuir por todos no momento de necessidade, até mesmo por aqueles que o venderam.
Jesus remata a parábola tratando o homem rico de louco e insensato, pois não tem garantia nenhuma de poder gozar de tudo aquilo que acumulou. Jesus mostra-nos nesta insensatez a perda do sentido da vida, da sua plenitude e realização na companhia dos outros. A loucura é não perceber o outro, é não ter consciência do outro, de alguém que nos estende a mão ou a quem podemos estender a mão. Os loucos estão sós.
Neste sentido, e face aos frutos do nosso trabalho, é necessário tomarmos consciência de que é justo e bom que gozemos deles, é bom que construamos celeiros maiores, mas que isso nos conduz à loucura se perdermos a necessidade de partilhar com os outros, de fazer os outros gozar também do que colhemos e ganhámos.
Podemos perguntar-nos se alguma da loucura do nosso mundo não é consequência desta ausência de partilha, da solidão em que nos encerrámos com todos os nossos bens e riquezas.
É o outro que nos enriquece na partilha, é o outro que nos liberta da loucura.

 
Ilustração: “José recebe o seu pai e irmãos no Egipto”, de Salomon de Bray, Colecção Particular.

O envelhecimento

 
Vejo perfeitamente que envelheço. Quando era mais jovem não conhecia os remorsos, qualquer prazer ou algumas horas bastavam para os curar, certamente até a própria seiva da juventude; agora sinto que me fazem feridas que não terminam de sarar.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Estátua de Francisco de Sá de Meneses no pedestal da Estátua de Camões ao Chiado.

domingo, 20 de outubro de 2013

Tenho um Hábito Branco


Neste dia em que celebro o décimo segundo aniversário da Tomada de Hábito veio parar-me às mãos por meio do Facebook um texto de Jairo del Agua sobre os dominicanos, os nossos irmãos dominicanos espanhóis.
 
Como o artigo fala do Hábito branco dominicano e do seu uso e termina com a poesia ao Hábito de frei José Maria Guervos, aproveito para a traduzir neste aniversário.

 

Eu tenho um hábito, branco
Como uma vida que começa.
E, como um grito de morte,
Cobre-o uma capa negra…
E não é já a morte sinal
De terrores e de tristezas,
Não é já nem morte apenas,
Que é porta de vida eterna!

Vida e morte pela mão
Juntas pela mesma senda…
Que meditação tão profunda
O meu corpo sobre si leva!

A morte, com os seus abismos
A vida, com suas promessas
Branco é o Hábito meu
O mesmo que a açucena

E negro como a noite
De furacões e tempestades.
Branco como o sorriso
Negro como a tristeza
Branco como a alegria
E negro como a pena…
É branco como a lua
E seu cortejo de estrelas,
É negro como os ventos
Gritando entre ramos secos…

Que meditação tão profunda
O meu corpo sobre si leva!
A vida e a morte juntas
Como alegres companheiras.

Que prodígio de equilíbrio,
E que lição de prudência!
Negro e branco, morte e vida
Seguireis sendo na terra
Mas no céu sereis
Negro e branco, vida eterna!


Homília do XXIX Domingo do Tempo Comum

É inegável que as leituras deste domingo são um convite à perseverança, à permanência firme na fé, como nos diz a Carta de São Paulo a Timóteo, à necessidade de orar sem desanimar como nos diz o Evangelho de São Lucas, e ao combate constante que tal perseverança comporta como nos expressa a leitura do Livro do Êxodo.
No Evangelho de São Lucas que escutámos, para explicitar esta necessidade de rezar sem desanimar, Jesus conta a parábola do juiz iníquo que atende o pedido da viúva para se libertar do incómodo da perseverança dessa mulher.
À boa maneira da construção do pensamento no mundo semita Jesus extrapola o resultado desta história para a relação com Deus, para a oração que cada homem é convidado a dirigir a Deus. Assim, se o juiz atende a viúva pela sua perseverança, também Deus não deixará de atender os pedidos daqueles que se lhe dirigem. E não por cansaço, por incómodo, mas porque Deus ama a sua obra e deseja que lhe seja feita justiça.
Importa por isso tentar perceber porque as nossas orações, os nossos pedidos a Deus parecem muitas vezes sem resposta. Neste sentido, e antes de mais, temos que assumir, tal como se expressa São Tiago na sua Carta, que os nossos pedidos a Deus, a nossa oração, estão muitas vezes marcados pelas nossas paixões, pelo nosso espirito de auto-satisfação e portanto não chegam aos ouvidos de Deus.
Por outro lado, e tendo presente as palavras de Jesus na interpretação da parábola, não podemos esquecer que a resposta de Deus é sempre no sentido da realização da justiça, o que obrigatoriamente nos deve questionar sobre a verdade e a justiça inerente aos nossos pedidos e a resposta consequente de Deus.
A resposta de Deus à nossa oração vem assim, e sempre, ao encontro da nossa realização plena, do nosso fim último, e por isso muitas vezes não percebemos a resposta, pois permanecemos no imediato do tempo. A justiça de Deus revela-se na restauração da dignidade e divindade do homem, no mistério da nossa redenção, e portanto as suas respostas pessoais e individuais a cada um de nós não podem estar em oposição a este princípio.
Outro factor a ter em conta, face ao aparente silêncio de Deus aos nossos pedidos, é o da adequação da nossa realidade, da nossa vida, à resposta de Deus. Há necessidade de tempo para que a graça de Deus, a sua justiça, se faça sentir presente, nos transforme, para que desencadeie em nós a realização de todas as potencialidades.
A necessidade de orar sem desanimar, de perseverar na oração, comporta por isso um dinamismo de combate, de esforço, e até de um apoio exterior, como podemos constatar na leitura do Livro do Êxodo que escutámos na primeira leitura.
Tal como Moisés necessitava manter os braços levantados para que Josué pudesse vencer Amalec e foi nesse esforço físico ajudado por Aarão e Hur também nós necessitamos manter a atenção, o espirito e o desejo da oração em constante acção, em alerta, elevados para que a vitória seja alcançada.
Há um esforço necessário, uma luta diária constante contra a preguiça e as distracções, um combate contra a falta de tempo e de disposição. E tal como na guerra de Refidim também nós temos que ter presente que é nos momentos mais difíceis que este esforço e combate se devem fazer sentir mais intensos, mais actuantes. A vitória sobre o mal com a inerente resposta de Deus está em estreita relação com a intensidade desse esforço.
Esforço este que está igualmente dependente da firmeza da nossa fé, daquilo que como diz São Paulo a Timóteo aprendemos como certo. É a experiência da Igreja, é o testemunho dos santos, é a Palavra Sagrada, é a nossa própria experiência, ainda que pobre e miserável mas possível com a graça de Deus, que nos permitem continuar a rezar sem desanimar, a perseverar na oração, pois tudo nos conduz a uma inevitável resposta de Deus.
Deus responde e nós sabemos isso, embora muitas vezes actuemos como se não respondesse ou nós desconhecêssemos que ele responde. Necessitamos assim de insistir, de proclamar, de exortar, com toda a paciência e doutrina. Necessitamos a propósito e a despropósito dizer-nos a nós próprios que a oração não é tempo perdido, não é um discurso de encantamento, não é um exercício de comércio, mas o acolhimento da realização progressiva e cooperante da justiça divina em cada um de nós.

 
Ilustração: “O Pequeno Samuel”, de Joshua Reynolds, Museu Fabre.

Pedir é o mais simples

 
Há muitas formas de oração. A mais simples e a mais natural é um pedido. Deus está à nossa espera em posição continua de solicitador; porque hesitamos em lhe pedir tudo o que temos necessidade?
La Rose et le Rosaire, de Paul Claudel

Ilustração: Peregrinos aguardando a Procissão do Santíssimo no santuário de Lourdes.

sábado, 19 de outubro de 2013

Avé ó cheia de graça

 
É por esta razão que a Escritura, querendo mostrar até que ponto Maria está vazia, nos diz que ela está “cheia de graça”, que não há nada mais nela que possa oferecer à vontade de Deus obstáculo ou resistência, que ela não é mais que uma capacidade em estado de aceitação e de desejo.
La Rose et le Rosaire, de Paul Claudel

Ilustração: Mosaico da Anunciação na Basílica do Rosário em Lourdes.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O Terço que nos identifica

 
Cada unidade deste Terço é um esforço, uma iniciativa sempre recomeçada, a repetição de um acto. Nós identificamo-nos sucessivamente pela contemplação a cada uma das iniciativas através das quais um Deus incarnado proveu à obra da nossa redenção.
La Rose et le Rosaire, de Paul Claudel

Ilustração: Rosário de Hábito Dominicano.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Condições para uma obra religiosa

 
Para que uma obra seja religiosa é necessário que ela tenha sido feita religiosamente. É esta atitude radical, na qual entra o respeito e o amor, a humildade face ao que amamos, que deve permanecer sensível. É uma certa maneira, antes de mais, de olhar as coisas
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Catedral Ortodoxa de Genebra.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

O respeito devido ao corpo

 
É necessário respeitar o corpo porque ele pode sofrer, porque ele é um instrumento de sofrimento, e de redenção para a alma. Consequentemente não o deixar servir os maus prazeres nem retirar dele qualquer mau prazer.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Estátua do Museu de História e Arte de Genebra.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

A possivel evangelização dos ricos

 
Os pobres são evangelizados. Nós queríamos que fossem os ricos, enfim, que sejam. E eles o serão, não pela sua riqueza mas pela pobreza, pela miséria essencial que ela deixa neles, que ela escava possivelmente neles.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Abrigo para pássaros em pinheiro com neve no jardim Eaux Vives de Genebra.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Aquele que ama depende do amado

 
Todo o ser que ama entra na dependência do que ama, deseja fazer a felicidade do outro, mas deseja também obter dele toda a verdade, depender dele. É a necessidade de receber daqueles que amamos.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Escultura de Canova no Museu de História e Arte de Genebra.

domingo, 13 de outubro de 2013

Homília do XVIII Domingo do Tempo comum

Terminada a Liturgia da Palavra é facilmente perceptível que há uma grande relação e semelhança entre a primeira leitura do Segundo Livro dos Reis e o Evangelho de São Lucas. Não só estamos perante uma situação de lepra, de uma cura de lepra, mas igualmente de um conjunto de atitudes que não podem deixar de nos interessar enquanto crentes, enquanto homens e mulheres de fé.
Neste sentido importa ter presente que Naamã vem de longe para se encontrar com o profeta Eliseu na esperança de uma cura que lhe foi comunicada como possível. Vem carregado de esperanças, de expectativas, mas igualmente de um imaginário mágico e de um conjunto de riquezas para poder alcançar a cura desejada.
O encontro com o profeta Eliseu, que o general nem sequer conhece pessoalmente pois não sai ao seu encontro, revela-se num primeiro momento como um fracasso, pois o que lhe é pedido não corresponde às suas expectativas nem ao seu imaginário e poder aquisitivo. De acordo com as instruções veiculadas pelo profeta, Naamã necessita apenas encontrar-se com a sua condição humana, com a sua fragilidade, necessita apenas humildemente reconhecer o poder de Deus, um poder que não se pode comprar, do qual ele não se pode apoderar.
Operada a conversão, assumida com humildade a graça divina através da cura realizada nas águas do rio Jordão, o general Naamã pode regressar ao profeta Eliseu e manifestar-lhe o seu agradecimento, a descoberta do dom gratuito de Deus. Pode agora face a face manifestar a sua fé e dar início a uma nova vida e a uma nova relação com Deus simbolizada nesse gesto de levar alguma terra para construir sobre ela um altar.
O encontro de Jesus com os dez leprosos, quando passava entre a Samaria e a Galileia, assemelha-se ao encontro de Naamã com o profeta Eliseu nessa primeira distância que é mantida entre Jesus e os leprosos e na humildade do acolhimento das instruções apresentadas.
Assim, mantendo a distância que a impureza legal impunha, os leprosos pedem desde longe o auxílio de Jesus, pedem-lhe que tenha piedade deles, e contrariamente a outras situações de cura, em que Jesus se aproxima, em que Jesus toca o doente, neste caso dos dez leprosos a distância é mantida e estritamente salvaguardada, como se ela fosse de facto verdadeiramente importante e necessária.
E também, contrariamente a outras curas e milagres, Jesus não age directamente, mas ordena que os leprosos cumpram o que estava estipulado na lei para que fossem considerados curados, ou seja, que se apresentem diante dos sacerdotes.
O texto evangélico de São Lucas diz-nos que ao dirigirem-se para os sacerdotes conforme ordenado por Jesus os leprosos ficaram curados, ou seja, que a obediência às palavras de Jesus lhes tinha alcançado a cura. Contudo, e aparentemente numa atitude de desobediência, um dos leprosos ao ver-se curado voltou para trás, e veio prostrar-se aos pés de Jesus, agradecendo e louvando a Deus pela cura alcançada.   
É face a esta atitude, evidenciada para todos por Jesus face à condição de estrangeiro do curado, que percebemos que as ordens de Jesus e a distância mantida inicialmente se destinavam a revelar que ele era o verdadeiro sacerdote, o verdadeiro templo, e que os leprosos o deveriam ter reconhecido e era a ele que se deveriam ter dirigido.
Face a estas curas somos convidados a perceber, na nossa caminhada de fé e de discipulado, que não há distância que nos possa separar de Deus e da sua graça, que nada nos impede de nos aproximarmos de Deus e da sua misericórdia. Todos somos estrangeiros e samaritanos, mas se procuramos Deus com humildade e de coração aberto às suas palavras Ele não deixa de actuar em nós, não deixa de nos curar das nossas feridas, não deixa de nos rejuvenescer para uma nova vida.
Estas duas curas ajudam-nos também a perceber e a assumir que qualquer cura, qualquer conversão é uma pura ilusão, é vã, se não é acompanhada de uma atitude de louvor, de acção de graças, se não assumimos uma outra terra para prestar culto a Deus, ou seja, se a nossa vida não se torna outra.
Peçamos ao Senhor a graça da fidelidade, da perseverança, e da esperança na misericórdia de Deus face às nossas faltas, pois, como diz São Paulo a Timóteo, ainda que nós sejamos infiéis Deus não pode deixar de ser fiel às suas promessas.

 
Ilustração: “O profeta Eliseu recusando os presentes de Naamã”, de Pieter Fransz de Grebber.

Deus prefere os pequenos

 
Porquê esta preferência de Deus pelos mais pequenos? Porque eles são os seus filhos mais deserdados? Há uma razão mais profunda, eles estão mais na verdade da sua condição de criatura. Uma criatura é essencialmente um ser dependente, um ser que tem necessidade dum outro na vida.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Violetas do Cabo da casa dos meus pais.

sábado, 12 de outubro de 2013

O amor ajuda a compreender

 
É necessário nunca ter amado alguém para não compreender a atenção apaixonada dos santos por tudo o que diz respeito ao sofrimento de Nosso Senhor.
Marie-Alain Couturier

Ilustração: Pintura da Visitação no Museu de História e Arte de Genebra.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Maria mãe da nova incarnação

 
Tu és a sua mãe, disse-lhe solenemente Cristo na cruz. É ela que é encarregue de levar a bom termo esta espécie de nova incarnação.
La Rose et le Rosaire, de Paul Claudel

Ilustração: Imagem da Virgem Maria que me foi oferecida pelo Externato Marista de Lisboa

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Deus inventou-se para ti

 
Deus não podendo fazer-se conhecer inventou fazer-se nascer para ti! Ele inventou ser essa boca que não cessa de dizer ao Pai que Ele É para se confiar aos teus próprios meios. Humanidade, ele procurou em ti uma mãe.
La Rose et le Rosaire, de Paul Claudel

Ilustração: Imagem da Virgem Maria que me foi oferecida pelo Externato Marista de Lisboa.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A geração de cada um

 
Deus gera Deus, e a criatura, imagem de Deus fecundada pelo amor, gera a imagem de Deus.
La Rose et le Rosaire, de Paul Claudel

Ilustração: O sono do menino Jesus, de Benvenuto Tisi, Museu do Louvre.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

É o outro que plenifica a resposta a Deus

 
É o próximo, por toda a necessidade que tens dele e por toda a necessidade que ele tem de ti, que plenificará tudo que há em ti para responder a Deus de coração, de alma, de espirito e com a força de toda a natureza.
La Rose et le Rosaire, de Paul Claudel

Ilustração: “La Orana Maria”, de Paul Gauguin, Metropolitan Museum of Art.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A luz que vem ao desejo

 
Nós amamos o “Fiat lux!” da Vulgata, que nos mostra a luz não como uma fabricação mas como uma erupção de uma espontaneidade que responde a um desejo.
La Rose et le Rosaire, de Paul Claudel

Ilustração: Virgem dos Lírios, de William-Adolphe Bouguereau,