sexta-feira, 31 de outubro de 2014

É lícito ou não curar ao sábado? (Lc 14,3)

Ainda que convidado para a casa de um dos principais dos fariseus, Jesus não se intimida com aqueles que o rodeiam, com o estatuto social daqueles que são os seus anfitriões.
Acima de tudo está a verdade e o bem do homem, e por isso quando se depara com um hidrópico no meio dos presentes não se coíbe de colocar uma questão pertinente, antes de realizar a cura que nascera já no seu coração.
Não é que necessitasse de autorização, nunca a pedira, mas era para que o bem que ia realizar pudesse refulgir em todo o seu esplendor, pudesse chegar ao coração daqueles homens que o tinham convidado, mas que davam mais importância ao formalismo e ao rito que ao bem e ao outro.
A questão é directa, clara e sem qualquer subterfúgio, “é lícito ou não curar ao sábado”, como se o sábado pudesse ser um obstáculo à cura, à realização do bem, na medida em que interditava toda a actividade. Podia ser o sábado maior que o bem e o amor?
O silêncio dos convivas evidencia a hipocrisia, a mentira da subjugação à Lei apenas naquilo que era conveniente, porque no caso do salvamento de um filho ou de um boi já não se respeitava o preceito da inactividade. Os bens e propriedades ultrapassavam a prescrição da lei.
A cura do homem que estava doente revela assim uma vez mais o valor absoluto do homem, e o valor instrumental da Lei que está ao serviço do homem para o libertar e não para o escravizar. A lei era um instrumento de dignificação e tinha-se tornado num instrumento de tortura e sofrimento.
Tal como nos diz o Evangelho em outro momento, Jesus não veio abolir a Lei, não veio proclamar a anarquia, mas veio completar a lei, dar-lhe o sentido verdadeiro e profundo que tinha perdido no emaranhado dos preceitos e do tempo.
A Lei está feita para o homem, é um meio, um instrumento, para ajudar o homem a viver a sua condição e a sua dignidade. A lei no conjunto dos mandamentos e preceitos é uma manifestação da fundamental lei do amor e um meio para o desenvolvimento desse amor.
Deus é amor, e por isso amar antes de mais e agir segundo o amor é o princípio que deve presidir a toda a regulamentação e a toda a actividade.

 
Ilustração: “A crua do hidrópico”, fresco na Catedral de Tsalenjikha, Geórgia.      

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Jesus escolheu doze entre eles. (Lc 6,13)

Após uma noite passada em oração, Jesus chamou os discípulos e escolheu doze de entre eles. Missão difícil, uma vez que toda e qualquer escolha representa sempre um risco, uma aposta num desconhecido.
Jesus não sabe de antemão qual o futuro da sua escolha, os resultados da eleição que realiza entre os seus discípulos e seguidores. Cada um é um mundo, e um mundo no qual a liberdade pode alterar toda a expectativa e esperança.
Tal como nós, Jesus sabe que os discípulos esperam e desejam um Messias vencedor, alguém que provoque a alteração necessária à mudança de vida. Estas aspirações vão estar presentes no seguimento e vão marcar a relação mesmo depois da morte na cruz.
Contudo, o caminho e o processo de seguimento dos discípulos é igual ao nosso, uma vez que todos os caminhos devem passar pela cruz e pela aceitação do aniquilamento do Mestre, pois só dessa forma se poder aceder a uma outra compreensão da missão de Jesus, da nossa própria missão.
A escolha de Jesus passa pela cruz e portanto essa escolha é também o sinal de marca que determina todos aqueles que o seguem. Seguir com a cruz é o apelo e o convite deixado por Jesus a todos os que escolhe.
Demasiada loucura, ou extraordinário amor, porque tomar a cruz, qualquer cruz, e seguir em frente é colocar-se nas mãos de um outro, significa entregar-se à fragilidade e limitações próprias e confiar, confiar sempre que não se está só.
A experiência e a cruz de Jesus mostram-nos que nesta fraqueza e debilidade, quando caímos sob o peso da cruz, o Senhor da cruz nos levanta, pois estamos nas suas mãos, estamos guardados pelo seu amor e nesse amor Ele não abandona nenhum daqueles que chamou e em quem confiou.
Eleitos de Deus, objectos de um amor incondicional, procuremos levar a cruz, confiantes que ela é já carregada por alguém que nos precede, que a leva connosco e por nós quando nos faltam as forças.

 
Ilustração: “O Apóstolo Simão”, de Anthony van Dyck, J. Paul Getty Museum.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Mulher estás livre! (Lc 13,12)

 
Jesus encontra-se na sinagoga a ensinar e sem que nada o tenha previsto aparece por lá uma mulher curvada, uma mulher enferma havia já dezoito anos. É uma mera coincidência, a mulher vem apenas pela sua rotina, no cumprimento dos seus preceitos religiosos.
Colocando nela os olhos Jesus toma a iniciativa de a chamar e de a livrar da enfermidade, sem lhe perguntar da sua disposição ou vontade. É Jesus que toma a iniciativa, pois no seu amor não pode suportar o sofrimento do outro, não pode ver humilhada aquela mulher curvada sobre si mesma.
O milagre e a cura provocam a indignação do chefe da sinagoga, perturbado pela quebra do protocolo instituído, mas provocam na multidão uma grande alegria pela maravilha realizada. A multidão no seu anonimato e pobreza percebe a novidade, percebe a libertação e a nova vida que é possibilitada àquela mulher.
Sem que o saiba, a multidão partilha da alegria celeste, da alegria que brota do processo de libertação que ocorre com toda a humanidade e de que aquele milagre é apenas mais um testemunho, mais um sinal.
Naquela mulher Jesus manifesta a libertação da humanidade, manifesta a elevação de todos os homens e mulheres, que a partir do mistério da redenção pode já olhar Deus de olhos nos olhos, de frente, pois foi-lhe restituída a dignidade da semelhança.
A alegria da multidão deve ser assim a nossa alegria, pois sabemo-nos libertados; e sabemos também que nenhuma lei, nenhum preceito ou obrigação ainda que religiosa se pode interpor ou impedir a manifestação do amor de Deus por todos nós.

 
Ilustração: “Cura da mulher ao sábado”, iluminura de Matthias Gerung na Bíblia Ottheinrich.

domingo, 26 de outubro de 2014

Homilia do XXX Domingo do Tempo Comum

Após a leitura do Evangelho deste domingo, no qual nos confrontamos com uma armadilha que é tecida para experimentar Jesus e uma resposta que todos conhecemos de memória, creio que podemos perguntar-nos se, face a esta resposta e à forma como a assumimos e vivemos, não nos situamos na pele daquele doutor da Lei.
Pode parecer-nos estranho, e até de difícil compreensão, como um doutor da Lei coloca esta questão a Jesus, quando ele e nós conhecemos os mandamentos da Lei de Deus, ou seja o que é verdadeiramente importante, o que deve ser tido em conta.
Contudo, não podemos deixar de ter presente que para além dos mandamentos da Lei, dada por Deus a Moisés no monte Sinai, havia ainda mais 248 preceitos e 365 proibições que regulavam a vida religiosa e comunitária do povo judeu.
Tendo diante de si alguém que reconhecem como mestre, os fariseus, através do doutor da Lei, desejam saber qual é para Jesus o preceito que determina a sua doutrina, o preceito a partir do qual constrói todo o edifício da sua doutrina, pois todos os mestres tinham um preceito que consideravam mais importante.
Ao deixar de lado o Decálogo dos mandamentos e ao responder com um texto que era recitado quotidianamente, a oração diária do Shema “Escuta Israel”, Jesus está não só a manifestar a hipocrisia e falsidade daquele que tem diante de si, mas a retirar toda e qualquer força obrigatória à literalidade da Lei.
Os preceitos e proibições, os mandamentos, estão ao serviço e são instrumentos de uma realidade muito mais importante, muito mais fundamental, uma realidade que constitui o próprio homem enquanto pessoa. É o amor a Deus e o amor ao próximo que definem o homem e a partir dele determinam e fundamentam todos os preceitos, todas as obrigações e proibições, todos os mandamentos.
A resposta de Jesus reporta-se ao âmago da revelação de Deus e por isso numa síntese fundamental une um mandamento que estava prescrito no Livro do Deuteronómio com um outro que estava prescrito no Livro do Levítico. São os dois alicerces de todos os outros mandamentos e preceitos, as duas vias de acesso a Deus
Assim, quando, tal como os fariseus e o doutor da Lei, procuramos privilegiar um preceito, procuramos encontrar um elemento acessório, um meio instrumental, para alicerçar a nossa vida e fidelidade à Palavra de Deus, acabamos por desviar-nos do que é verdadeiramente fundamental e deve de facto alicerçar a nossa vida e a nossa fé. Colocamos os meios como fins, esquecendo que o nosso princípio e o nosso fim são verdadeiramente o amor, o amor a Deus e aos irmãos.
A resposta de Jesus nesta junção do mandamento do amor a Deus e aos irmãos coloca-nos face a uma exigência que poderemos considerar louca, impossível, demasiado elevada para nós, mas que não pode deixar de ser tentada todos os dias, de modo a não desesperarmos de nós próprios, a não perdermos o sentido da nossa vida e realização.
Esta exigência, este desafio, é expresso por Jesus no tempo verbal futuro em que coloca o verbo amar, o que não significa um adiamento para mais tarde, mas uma oportunidade e uma possibilidade constantes que não podemos deixar de apreciar e procurar aproveitar. Amar apresenta-se-nos assim como verdadeiramente estrutural à nossa existência. Existimos para amar e sem amor morremos.
Por esta razão é necessário recomeçar, voltar a tentar sempre que nos estatelamos no chão do nosso egoísmo, ou nos deixamos vencer pela nossa auto-suficiência, pois não só a felicidade depende deste recomeçar, como também a nossa realização como homens e mulheres filhos de Deus.
E porque esta é uma verdade fundamental, o Papa João Paulo II não se cansou de repetir que o mundo necessitava descobrir o amor e que os cristãos necessitavam manifestá-lo e testemunhá-lo em todas as circunstâncias, pois o cristianismo é a religião do amor.
É o exemplo de que nos fala São Paulo quando se dirige aos Tessalonicenses e de que falava também o Papa Paulo VI quando nos alertava que o mundo necessita mais de testemunhas que de mestres, pois as testemunhas pela sua vida revelam uma verdade que os mestres podem ocultar com as suas palavras.
Amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com todo o espírito e amar o próximo como a si mesmo é assim um processo, que apenas pode ser vivido em equilibro e profunda relação, uma vez que amar o outro é reconhecer nele a presença e a vida de Deus que somos convidados a amar com todas as nossas potências.
E como nos diz São João como poderemos dizer que amamos a Deus se somos incapazes de amar os irmãos?

 
Ilustração:
1 – “Jesus dialogando com Nicodemos”, de Jacob Jordaens.
2 – “As Sete Obras de Misericórdia Corporais”, de David Teniers, o Jovem, Dulwich Picture Gallery.

domingo, 19 de outubro de 2014

Visita da Rainha D Maria I à Batalha

Já aqui demos notícia da visita da Rainha D. Maria I ao Mosteiro da Batalha em Outubro de 1786.
Nessa data servimo-nos das referências que se encontram numa Carta que o Príncipe D. João, futuro Rei D. João VI, enviou à sua irmã a Infanta Mariana Vitória, no dia seguinte à visita ao Mosteiro.
Mas também nesse mesmo dia, 16 de Outubro, a rainha D. Maria I escreveu à filha, partilhando as novidades da jornada. Nessa carta, e numa outra enviada quatro dias depois, a Rainha deixa a sua apreciação do que viu aquando da visita ao Mosteiro.
São essas breves apreciações que partilhamos agora, pois se a Rainha se mostra encantada com a igreja e as capelas, fica de alguma forma insatisfeita com a parte conventual que pôde visitar.
Ontem fomos à Batalha, que achei magnífica, a igreja e a capela em que está enterrado el-Rei D. João o Primeiro e a mulher e filhos e também umas capelas, que estão por acabar. Mas tudo me faz muita tristeza, faltando-me teu pai.[1]
 
Na Carta de 20 de Outubro, a Rainha comenta:
Fomos à Batalha. Achei a igreja magnífica e a capela aonde está enterrado el-Rei D. João o Primeiro. O convento não é bom.[2]


[1] LÁZARO, Alice – Com o mais fino Amor. Cartas Íntimas da Rainha Dona Maria I para a Filha (1785-1787). Lisboa, Chiado Editora, 2014, página 283.
[2] LÁZARO, Alice – Com o mais fino Amor. Cartas Íntimas da Rainha Dona Maria I para a Filha (1785-1787). Lisboa, Chiado Editora, 2014, página 285.

Homilia do XXIX Domingo do Tempo Comum

A leitura do profeta Isaías que escutámos nesta celebração coloca-nos em sintonia com o Dia Mundial das Missões que hoje celebramos. Tal como nos diz o profeta, fomos escolhidos e cingidos para que se saiba do Oriente ao Ocidente que não há outro Deus senão o Senhor.
Durante muitos anos, e ainda para alguns dos nossos irmãos, este dia dedicado às missões reflectia as grandes acções missionárias da Igreja em outros continentes e povos. Podemos dizer que era um dia e uma reflexão dedicada à missão “ad gentes”, para o exterior da Igreja.
Hoje, contudo, esta ideia tem outra dimensão, e ainda que se tenham presentes os missionários e missionárias que anunciam a Boa Nova de Jesus aos povos que o desconhecem, temos presente a missão que cada um de nós está chamado a realizar no seu meio ambiente, nas diversas circunstâncias da vida.
E neste sentido, a leitura do profeta Isaías é extremamente importante, uma vez que nos revela que desde o princípio, ainda antes de conhecermos Deus, já Ele nos tinha chamado para que o pudéssemos conhecer e dar a conhecer. A missão anunciadora é assim inerente à nossa própria condição, à nossa própria natureza. Poderíamos dizer que nascemos para anunciar Deus.
E esta verdade é ainda mais profunda quando nos recordamos que fomos criados à imagem e semelhança de Deus. A nossa natureza na semelhança e imagem é portanto uma natureza enviada, missionária, e realiza-se na medida em que anuncia a beleza e o amor de Deus.
Nós próprios, pela nossa existência, já somos anúncio e na medida em que vivemos com dignidade a nossa condição humana esse anúncio torna-se mais evidente e verdadeiro.
Esta verdade e a sua consciência ajuda-nos a perceber o cabal alcance da discussão de Jesus com os fariseus e herodianos quando estes se lhe apresentaram para o procurar apanhar com uma questão sobre pagamento de impostos.
É diante da moeda do tributo que Jesus faz a destrinça entre o que é devido a Deus e o que é devido a César, ou seja, o que é devido ao mundo material, às circunstâncias sociais e políticas e o que é devido a Deus pela nossa própria condição de filhos de Deus.
Neste sentido é bom termos presente o verbo que na língua original do texto é utilizado, “apodídomi”, que significa devolver, e não apenas dar, como encontramos na tradução que foi utilizada para as leituras que escutámos.
De facto aquele que dá entrega alguma coisa sua, o que lhe é próprio, mas o que devolve entrega aquilo que lhe foi confiado, o que não é seu. E é isso que está em causa quando Jesus chama a atenção para a inscrição que estava na moeda do tributo que lhe apresentaram.
Ao dizer aos fariseus que se devolvesse a César o que era de César e a Deus o que era de Deus, Jesus estava a retirar o homem da sua condição de mercadoria e de moeda de troca. O homem é para ser devolvido a Deus, é para ser entregue a Deus, porque é o seu verdadeiro proprietário e senhor.
Este sentido da devolução, da entrega do homem a Deus, mostra-nos também como a dignidade do homem e da mulher se encontra nessa entrega, nessa devolução, porque Deus é não só o princípio mas também o fim do homem, a sua fonte de plena realização.
Esta distinção, que pode parecer dualista, coloca-nos no entanto no verdadeiro sentido de todas as realidades e na sua hierarquia interna. Não se trata de diabolizar ou condenar as realidades do mundo, as estruturas e formas que a humanidade desenvolveu para se organizar e viver, mas de as colocar na sua relação com a dignidade divina de cada homem e mulher, de as colocar ao serviço da realização da humanidade.
Por esta razão São Tomás defendia a desobediência às leis civis quando estas não serviam a humanidade, quando não estavam ao serviço da plena realização do homem e da mulher, da construção da resposta dignificante a dar a Deus. O que não serve o homem e a sua dignidade não pode ser acolhido nem aceite.
A resposta de Jesus face à moeda do tributo a César e a teologia de São Tomás colocam-nos assim grandes desafios no que diz respeito às nossas opções do quotidiano e à forma como assumimos nessas opções que a nossa existência deve ser anúncio de um Deus que nos ama e nos dignifica com o seu amor.
Em todos os momentos e circunstâncias estamos chamados a anunciar a todos os homens e mulheres que há um só Deus, o qual nos chamou pelo nome próprio a usufruir de um título glorioso, que é o de filhos de Deus. Procuremos pois dignificar este título e condição vivendo na verdade, na justiça e no amor.

 
Ilustração:
1 – “A Moeda do Tributo”, de Bernardo Strozzi, Museu de Belas Artes de Budapeste.
2 –  “Tributo a César”, de Jacek Malczewski, Polónia.

domingo, 12 de outubro de 2014

Homilia do XXVIII Domingo do Tempo Comum

Com a parábola que escutámos termina neste domingo o confronto que Jesus manteve com os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo em Jerusalém depois da sua entrada triunfal, da expulsão dos vendedores do templo e do seu gesto ousado de se ter colocado a ensinar no templo sem ter autoridade para isso.
Termina assim uma polémica e um conjunto de parábolas que visava mostrar aos seus interlocutores como se tinham desviado do projecto inicial de Deus, como se tinham recusado ao convite que lhes tinha sido dirigido para participarem num banquete em que seriam servidos delicioso pratos e bebidas.
Uma vez mais Jesus faz recurso do profeta Isaías para mostrar o projecto de Deus, a missão a que o povo eleito tinha sido destinado, mas que pelo seu egoísmo, pelo seu orgulho, se tinha perdido e inviabilizado. Uma vez mais Jesus serve-se dos textos que os seus interlocutores conheciam, lhes eram familiares, para se inserir numa linhagem que lhe garantia autoridade, até a autoridade para ensinar no templo que tinha sido questionada.
Contudo, o Evangelho de São Mateus não se fica pela questão polémica, por esse exercício de mostrar que o projecto de Deus era universal e portanto aberto a todos os povos desde o princípio. Consciente dos perigos que espreitavam já a sua comunidade, aqueles aos quais se dirigia no seu Evangelho, São Mateus apresenta justaposta à parábola do banquete que é recusado a parábola do convidado que se apresenta sem traje nupcial.
Parábola que inevitavelmente nos escandaliza, nos desconcerta, pois pouco antes é dito que o rei que servia o banquete tinha mandado trazer para a festa todos os que se encontrassem, e portanto a sala estava cheia de bons e maus. É assim descabido que ao entrar na sala se escandalize com um dos convidados sem traje. Estariam os outros de traje nupcial tendo sido recolhidos nas encruzilhadas dos caminhos?
A verdade é que temos neste convidado sem traje alguém mais que um simples convidado trazido de qualquer encruzilhada do caminho, temos alguém que o rei trata já por amigo, que de alguma forma tem já outro estatuto diante dos olhos do rei. Esta expressão denuncia uma outra realidade, uma outra relação.
Podemos dizer que ao aceitarem o convite para se apresentarem no banquete todos de certa forma mudavam de traje e colocavam uma roupa mais digna e festiva, e portanto aquele convidado sem traje nupcial seria um intruso, alguém desatento e descuidado face a essa necessidade de mudar de roupa, de se apresentar dignamente.
Contudo, parece que não se trata de uma questão moral expressa metaforicamente no traje nupcial, estavam lá bons e maus, mas trata-se de uma questão relacional, uma questão de amizade. Aquele amigo era já alguém especial aos olhos do rei e portanto deveria estar devidamente preparado para a festa que se dava e na qual se apresentava.
São Mateus ao falar deste amigo tem já em conta alguns dos membros da sua comunidade que viviam a sua fé de uma forma estereotipada, exteriorizada, e portanto ainda que bons ou maus nas suas atitudes se sentavam à mesa do banquete, se achavam convidados a participar no banquete da Eucaristia.
O Evangelista quer assim chamar a atenção para a necessidade de uma relação pessoal, de uma amizade que se traduz num traje, em obras coerentes e em fidelidade, para não se correr o risco de se cair na condenação e crítica que Jesus tinha feito aos príncipes dos sacerdotes e anciãos do povo.
Podemos relacionar este amigo sem traje com o filho da primeira parábola que diz que vai trabalhar para a vinha do pai mas depois e de facto não vai. O verdadeiro amigo e aquele que se apresenta com traje ao banquete nupcial é aquele que não só diz que vai trabalhar mas trabalha de facto na vinha do pai, aquele que é fiel nas palavras e nas obras.
Fidelidade que descobrimos possível, e até bastante acessível quando temos em conta as palavras de São Paulo aos Filipenses quando nos diz que aprendeu a viver na pobreza e na riqueza, na alegria e na dor, a viver em íntima união com Aquele que o conforta em todas as realidades.  
É a construção sobre a rocha, esta fidelidade e intimidade com Jesus que nos permite viver todas as realidades com uma grande liberdade, poderíamos dizer com bastante relatividade, pois sabemos que tudo é passageiro, tudo é efémero, menos o amor do amigo, a amizade de Jesus. Como nos diz São Paulo em outra passagem das suas cartas tudo podemos com Cristo.
Esta parábola do banquete e o convite que lhe é inerente tem também o mérito de nos mostrar que todos nós somos convidados, que todos podemos arranjar um traje digno para estar presente no banquete, mas sobretudo que em cada celebração da Eucaristia vamos já fazendo a experiência desta festa e da comunhão que nos é oferecida por Deus a todos.
Em cada Eucaristia somos convidados a sentar-nos à mesa do nosso rei, a descobrir-nos nas nossas fraquezas, mas também a experimentar a graça do Senhor que nos dignifica para podermos participar. O Senhor é o alimento, é a mesa, é a festa, mas é também o próprio traje. Na medida em que nos vamos configurando com Jesus e nos vamos transformando, alimentando a nossa vida da sua palavra e do seu corpo vamos costurando o traje nupcial que nos dignifica para participal plenamente.
Procuremos pois viver fielmente a fé que professamos, em palavras e em obras, com dignidade e dignificando a nossa condição de filhos e convidados, e a celebração da Eucaristia em que participamos, que é já um aperitivo do banquete que o Senhor nos tem preparado.

 
Ilustração:
1 – “Parábola do Banquete”, de Brunswick Monogrammist, Museu Nacional de Varsóvia.
2 – “Parábola do Filho Pródigo”, de Master of the Female Half-Lengths, Colecção Privada.

domingo, 5 de outubro de 2014

Homilia do XXVII Domingo do Tempo Comum

O Evangelho de São Mateus que acabámos de escutar apresenta-nos hoje a parábola dos vinhateiros homicidas, uma parábola carregada de violência, não só na atitude dos vinhateiros mas também no juízo que os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo proferem face ao sucedido. Para compreendermos esta violência não podemos deixar de ter presente o contexto em que a parábola é proferida e os incidentes que a precedem, bem como a linhagem histórica em que se insere.
Assim, temos que ter presente que esta é a segunda parábola, de um conjunto de três, que Jesus dirige aos príncipes dos sacerdotes e anciãos do povo depois da sua entrada gloriosa em Jerusalém, do incidente da expulsão dos vendedores do templo e da ousadia de Jesus começar a ensinar no templo sem ter para isso poder.
Acontecimentos que se sucedem em cadeia e provocam inevitavelmente as autoridades religiosas instituídas, pois estamos diante de uma perversão de tudo o que estava instituído e era observado religiosa e socialmente. Tudo estava enquadrado e ordenado num sistema jurídico e ritual que Jesus nas suas palavras e atitudes punha em causa e questionava.
No entanto, esta contestação de Jesus insere-se numa longa tradição, numa história antiga de que a referência ao texto do profeta Isaías é apenas mais um elo na cadeia sucessória. Tal como Jesus, também nós sabemos que a construção do templo não foi bem acolhida por parte de Deus no tempo do rei David, que após a construção pelo rei Salomão foi um dos motivos para a separação do reino do norte e portanto para o fracasso do projecto dum povo único e que os profetas foram bastante críticos face à instituição do templo.
A parábola dos vinhateiros homicidas encerra assim uma forte condenação dos interlocutores de Jesus, dos príncipes dos sacerdotes e anciãos do povo, daqueles que podemos chamar os agentes da religião, mas encerra igualmente uma condenação da própria instituição religiosa tal como estava constituída, e de que os príncipes dos sacerdotes e anciãos do povo se apercebem e não podem permitir. Sabemos já o que se seguiu.
Contudo, se os Evangelhos guardaram na memória esta parábola não foi apenas para nos apresentar mais um dos motivos porque Jesus foi condenado e morto, mas porque ela diz respeito a todos, porque todos podemos cair no mesmo erro e ser vítimas da mesma condenação. A parábola é uma chamada de atenção para todos nós, tal como se percebe na falta de traje que ocorre na terceira parábola, e chama-nos a atenção em dois polos diferentes, ainda que ligados pela mesma liberalidade e cuidado que lhes está subjacente.
O primeiro desses polos está associado inevitavelmente ao senhor da vida, que tal como nos diz o profeta Isaías não deixa de a cuidar, não deixar de estar vigilante, que faz tudo para que a vinha produza o que é devido. Tanto o texto de Isaías como a parábola de Jesus apresentam-nos um senhor verdadeiramente interessado pelos bons frutos da vinha e fazendo tudo para que eles surjam.
Esta atitude atenta do Senhor da vinha deveria ser para nós fonte de uma grande confiança e esperança, pois mostra-nos que Deus não desiste de nós, nem se descuida no seu cuidado para que realizemos o que nos é devido realizar. Quantas vezes agimos sem essa esperança, como se tudo só dependesse de nós e estivéssemos sozinhos no combate, esquecendo-nos que Deus vai à nossa frente, abrindo ou limpando o caminho.
Quantas vezes agimos esquecendo-nos que ainda hoje o Senhor da vinha nos envia cada dia o seu Filho e que na Eucaristia o podemos acolher como aquele que nos traz o pagamento do nosso trabalho, o alimento para continuarmos na nossa tarefa no meio da vinha.
A este cuidado atento do Senhor da vinha deveria corresponder a liberalidade e a justiça dos vinhateiros, daqueles aos quais foi entregue o cuidado da vinha. Os bons vinhateiros reconhecem que a vinha não é sua e portanto entregam os frutos no devido tempo.
O motivo básico para a condenação dos vinhateiros da parábola prende-se com essa incapacidade de verem o que não lhes pertence, com a apropriação daquilo que não lhes era devido. E aqui podemos e devemos interrogar-nos sobre a forma como estamos a usar os dons que Deus nos concedeu, as oportunidades que nos vai concedendo, pois podem perfeita mas muito erradamente estarem a ser usadas apenas para nossa satisfação e engrandecimento.
A condenação explanada na parábola, precedida da expulsão dos vendedores do templo, prende-se com essa tentação de idolatria do que nos é concedido, de adoração duma realidade que nos é concedida como um meio, como um instrumento para a realização da missão, e que nós colocamos como um fim.
Diante desta tentação é bom que não deixemos de ter presente as palavras de São Paulo aos Filipenses, que tudo o que é verdadeiro e nobre, tudo o que é justo e puro, tudo o que é amável e de boa reputação, tudo o que é virtude e digno de louvor deve estar no nosso pensamento. A abertura de espirito, a liberalidade do nosso coração, o acolhimento da riqueza da diversidade, ajuda-nos a não nos fecharmos e a não idolatrar aquilo que temos ou somos.
Se Deus continua a cuidar amorosamente a sua vinha não podemos deixar de corresponder com o cuidado da entrega generosa dos frutos que lhe pertencem, uma vez que só dessa forma participamos dos mesmos frutos.

 
Ilustração:
1 – Jesus expulsando os vendedores do templo, de Luca Giordano, Museu do Hermitage.
2 – Iluminura da parábola dos vinhateiros homicidas, Speculum Humanae Salvationis.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Em memória da Madre Isabel Gutierrez Rodellar, OP

Levada pelo seu anjo da guarda, partiu hoje para a casa do Pai a Irmã Isabel.
Muitas pessoas, nomeadamente em Castelo Branco a conheceram como Madre Isabel, outras conheceram-na como Sister Isabel enquanto viveu no Bom Sucesso, e num período muito recente em Vitória foi conhecida como Soror Isabel.
Para mim foi e continuará a ser a Irmã Isabel, a minha “santinha” como o frei José Maria a baptizou, depois de tantos telefonemas para o Convento de São Domingos de Lisboa, sempre em busca de um sacerdote que lhe assegurasse a Eucaristia.   
Na sua ânsia de silêncio e recolhimento, de responder à primeira vocação para a clausura, não realizada por razões familiares, e que nestes últimos tempos acompanhei como irmão e confessor, sei que não aprovaria esta exposição, ainda que pelas diversas circunstâncias da vida e cargos que desempenhou tivesse sempre estado muito exposta.
Contudo não posso deixar de partilhar neste momento de dor e tristeza o muito que se lhe deve da minha vocação dominicana. Não posso deixar de recordar a minha primeira visita a Caleruega, completamente organizada por ela, os livros que me facultou, os rosários que me ofereceu para o hábito, as horas de partilha fraterna.
Não posso deixar de recordar as suas palavras experientes, o seu carinho e preocupação, os incentivos a não desistir quando me diziam que esta vida não era para mim. Pouco antes do noviciado comentava-me o grande desafio da vida religiosa: não são os votos, pobreza, castidade e obediência, os mais difíceis, esses vão-se vivendo, o maior desafio da vida consagrada e dominicana é a vida comum, a nossa vida comunitária. Como diz o nosso antigo Mestre da Ordem Timotyh Radcliffe, é de facto surpreendente como tantos gatos bravos conseguem viver metidos no mesmo saco.  
Não posso deixar também de recordar o seu gosto pela Eucaristia bem celebrada, pela beleza e cuidado da celebração. Vivia profundamente essas realidades, ordenadas, equilibradas, sem direito a invenções ou devaneios. O mistério era para ela demasiado grande para se brincar com ele. Quanta dor o Senhor lhe conhece por não ter tido acesso nos últimos tempos à celebração da Eucaristia.
Dor sentida também pela impossibilidade de usar o hábito e de não ver as pessoas que a assistiam no seu leito de sofrimento vestidas com o hábito. E quantas voltas na vida lhe deu essa fidelidade ao hábito. Amava profundamente o nosso hábito branco e negro, e nele a Ordem de São Domingos em que tinha professado.
As fotografias que ilustram esta breve memória foram tiradas em Maio de dois mil e treze, em Vitória, Espanha, quando se retirava para a vida de clausura e silêncio a que aspirava.
A luz que entra pela porta do Santuário da Virgem de Estibaliz é imagem dessa luz que sempre procurou na sua vida religiosa, que o Mosteiro de Santa Cruz em Vitória parecia oferecer-lhe e agora contempla já na sua fonte original.
Surpreendida, enquanto tomávamos um chá num bar, ouço-a ainda dizer-me “seu maroto”, como tantas vezes me disse, sempre que brincava com ela. Mas não é verdade que só brincamos com aqueles que sentimos verdadeiramente nossos irmãos?
Junto de Deus não deixes minha “santinha” de pedir pela minha fidelidade tal como pedistes aqui na terra.