domingo, 31 de julho de 2011

Homilia do XVIII Domingo do Tempo Comum

A leitura do Evangelho de São Mateus deste domingo faz-nos regressar uma vez mais ao episódio chamado da multiplicação dos pães, e dizemos chamado porque de facto em nenhum momento o evangelista nos fala de multiplicação, mas bem pelo contrário de fracção, de partilha e distribuição.
O milagre que Jesus opera de alimentar cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças, é assim um sinal de uma outra realidade e de alguns desafios que se colocam aos seus discípulos.
Assim sendo, não podemos deixar de ter presente a construção do relato que São Mateus nos proporciona, relato no qual é dada maior ênfase aos preparativos, aos condicionalismos que levam ao milagre que à própria acção do milagre.
São Mateus preocupa-se em nos situar no espaço e no tempo, de nos transmitir a ansiedade dos discípulos nesse espaço e face a esse tempo diante da multidão que os surpreendeu na outra margem do lago. E só depois é narrada a acção de Jesus que se resume quase a uma ordem e a uma bênção.
Este milagre operado por Jesus, e ainda que na outra margem do lago, situa-se num lugar deserto, um lugar procurado por Jesus mas não alcançado em virtude da multidão que lhe aparece. Uma vez mais o deserto se apresenta como ponto de encontro, como lugar da experiência de Deus, e neste caso de um Deus que alimenta gratuitamente e em abundância, tal como tinha feito num outro deserto ao povo libertado do Egipto.
E o milagre acontece quando a hora já vai avançada, quando o dia parece que termina. Face a esta referência temporal não podemos deixar de nos relacionar com um outro acontecimento também de bênção e fracção do pão que encontramos no Evangelho de São Lucas a caminho de Emaus. Também aí a hora era já avançada e o dia declinava, mas foi graças a essa circunstância que os discípulos puderam convidar Jesus a ficar com eles e a partilhar da primeira refeição com o ressuscitado.
Os alimentos de que os discípulos dispõem, quando confrontados por Jesus para que sejam eles próprios a alimentar a multidão, são apenas dois peixes e cinco pães. Uma vez mais os alimentos de que Jesus se serve depois da ressurreição para se apresentar aos discípulos, para partilhar com eles da sua presença ressuscitada junto às margens do lago.
Neste sentido, e face a estas referências, o milagre da fracção do pão é inevitavelmente um sinal da Eucaristia, uma prefiguração da refeição que o Senhor deixaria aos seus discípulos como sinal da sua vida, da sua presença, e do tremendo amor de Deus, um amor gratuito e abundante, capaz de fazer do pouco e miserável um excesso magnifico.
Deste milagre derivam objectivamente consequências e implicações para os discípulos, para aqueles que partilharam do pão naquela hora e para aqueles que quotidianamente partilham do mesmo pão que é o Corpo do Senhor.
E a primeira dessas consequências é a da relativização face aos meios, das impossibilidades que muitas vezes criamos por medirmos e contabilizarmos as realidades e as possibilidades em função da nossa pequenez ou do nosso egoísmo, esquecendo-nos o quanto elas podem dar de si, da potência que comportam ou encerram e nos desafiam.
No caso do milagre de Jesus os discípulos apresentam os cinco pães e os dois peixes, sem confiança, desanimados face a tamanha insignificância diante de tanta gente cheia de fome. A fracção do pão que Jesus opera, e consequente satisfação até ao ponto de sobrarem doze cestos de bocados, mostra aos discípulos e a cada um de nós a possibilidade da partilha do pouco que possamos ter e podemos considerar insignificante. Aos nossos olhos e à nossa consciência pode não significar nada, ser uma miséria, mas para outros pode significar muito. E neste significado pode produzir mesmo um excesso, um excesso na alegria do outro que recebeu, e um excesso no despertar da responsabilidade de outros que podem partilhar mais e portanto pode sobrar mais ou dividir-se melhor.
Nesta partilha podemos falar de bens materiais, daquilo que de facto pode matar a fome e a sede do outro, mas podemos falar também da partilha de nós próprios, do nosso tempo e carinho, da nossa atenção face ao outro, ainda que nos possa parecer pouca, miserável e muitas vezes um desperdício. O milagre da fracção do pão e sua distribuição coloca-nos assim diante da inevitabilidade de partilhar, mesmo do que nos pode parecer pouco e insignificante.
Outra das consequências do milagre da fracção do pão é a da responsabilização, não só porque diante da chamada de atenção, feita por parte dos discípulos, Jesus os convida a alimentar a multidão, mas também porque depois da fracção são eles mesmos que o distribuem à multidão. Os discípulos são completamente implicados não só no encontro de uma solução para o problema mas depois na concretização dessa solução.
O que nos inviabiliza qualquer desculpa de incapacidade e irresponsabilidade uma vez que podemos participar sempre na solução de qualquer problema, quer seja com uma ideia, com uma proposta, com a concepção de um projecto, ou a simples realização de uma tarefa humilde e imperceptível mas indispensável à prossecução dos objectivos e possível aos nossos meios e forças.
Uma outra consequência que deriva do milagre da fracção do pão é a da relação com Deus, da implicação de Deus na solução dos problemas e necessidades. É inquestionável que através deste milagre Deus nos implica de sobremaneira, mas também é inquestionável que não se exclui, que não se põe de fora da solução dos nossos problemas.
E neste sentido não podemos esquecer as palavras do profeta Isaías que nos convida a dirigirmo-nos a Deus para alcançar vinho e leite de uma forma gratuita, a procurar o alimento que verdadeiramente nos sacia e alimenta. Contudo, e como nos diz o profeta, para tal temos que ter o ouvido atento, temos que escutar com atenção, porque de facto o alimento que verdadeiramente nos sacia é a Palavra, é o próprio Deus que se nos oferece e se nos entrega como alimento, para que também nós saibamos e possamos ser palavra e alimento para os outros.
Pelo que, e retomando o milagre da fracção do pão como sinal da Eucaristia, não podemos deixar de descobrir em cada Eucaristia um apelo de Deus à escuta da sua Palavra, um convite à satisfação da nossa fome de Deus, e um compromisso com a satisfação da fome de pão e palavra dos outros com quem partilhamos a vida.
Que o Senhor através do seu Santo Espírito nos purifique os ouvidos e o coração para escutarmos o que nos pede e se nos oferece através das necessidades de pão e palavra dos irmãos, e à semelhança de Maria sabermos partir ao seu encontro plenos de solicitude e generosidade.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

São Tiago Apóstolo

Celebramos hoje a festa de São Tiago, um dos filhos de Zebedeu, companheiro de Jesus desde a primeira hora com seu irmão João, e o primeiro Apóstolo a dar a vida por Jesus às mãos de Herodes no ano 43 da nossa era.
É desta morte e deste sacrifício que Jesus fala quando a mãe dos filhos de Zebedeu se aproxima dele para lhe pedir um lugar de governo para cada um dos filhos. Desde a primeira hora que deixaram tudo para o seguir e portanto é mais que natural que possam sentar-se à sua direita e à sua esquerda no momento do governo. É uma recompensa por tudo o abandonado.
Mas Jesus tem uma outra visão do poder, para além da visão e da consciência que tem da sua própria missão, uma missão bastante distante das lógicas do poder e do governo deste mundo, e que se funda sobre o serviço, o cuidado do outro. É daí que deriva o poder de que Jesus se proclama rei e senhor, porque se oferece, se dá, até ao dom supremo da própria vida.
E neste sentido convida os discípulos, Tiago e João e todos os outros que secretamente aspiravam ao mesmo lugar, a fazer o mesmo, a segui-lo nesse dom e nesse serviço, a colocar-se em último lugar para servir a todos e dessa forma poder exercer o verdadeiro poder.
Poder que, usando palavras de São Paulo, transportamos em frágeis vasos de barro, entre mãos ávidas de possuir e explorar, de apoderar-se e ser servidas. Contudo, é aí e dessa forma que o Senhor nos convida a servir, a exercer o poder do amor e da gratuidade, sabendo que uma qualquer falta de atenção nos pode colocar à beira do abismo do egoísmo.
Não podemos por isso, e tendo presente a parábola do mercador de pérolas, deixar de procurar uma realidade melhor, a pérola preciosa, que neste caso é um serviço ao outro sem qualquer interesse, sem qualquer esperança de resposta ou retribuição, de recompensa. É esse o segredo do tesouro, é afinal esse o grande poder a que o Senhor Jesus nos convida, tudo dar para nessa dádiva se transfigurar o doador, a dádiva e aquele que recebe.
Que o Espírito Santo nos conceda o dom da Sabedoria para sabermos dar e servir, a exercer o poder como Jesus nos convida a fazer.

domingo, 24 de julho de 2011

Homilia do XVII Domingo do Tempo Comum

A leitura do Evangelho de São Mateus deste domingo põe fim à apresentação das parábolas do Reino, que há duas semanas iniciámos com a parábola do semeador, prosseguimos na semana passada com a parábola do trigo e do joio e hoje concluímos com as parábolas do tesouro e da pérola. Duas parábolas pequenas, bastante simples, mas que desenvolvem uma síntese sobre a realidade do Reino de Deus, concluindo o anúncio e a pregação de Jesus junto ao lago.
Podemos dizer que são parábolas que nos falam sobre as formas de apropriação do Reino, sobre a forma como podemos desenvolver em nós a atenção e o cuidado face à semente que é semeada na nossa vida e no nosso coração, para que ela produza o desejado cem por um.
Neste sentido, e conhecendo o homem e o seu coração, Jesus utiliza a realidade que mais nos pode cativar o desejo, que mais nos pode mover a uma atenção e a uma busca, a realidade do tesouro, fonte de tantos contos orientais e de devaneios imaginativos como o da gruta do Ali Baba. Nada poderia suscitar mais o nosso desejo. E cativada a atenção não há necessidade de maiores discursos, de mais profundas considerações, porque o nosso coração e a nossa atenção já estão despertos e focados.
Nas duas parábolas verificamos que o encontro do tesouro e da pérola decorre da própria situação de cada um dos personagens, pois não fazem nada de extraordinário para encontrarem o tesouro. É quase um acaso, um acidente no decorrer do seu quotidiano. Neste sentido o tesouro e a pérola, apresentam-se com uma oferta, como um dom gratuito colocado à disposição de todos os homens nas próprias circunstâncias da sua vida.
O que nos levanta a questão das buscas especiais, dos desejos de acontecimentos extraordinários, de experiências espirituais muito particulares e fora do comum e do quotidiano. Esquecendo que Deus se encontra na nossa vida, nas realidades até pequenas do nosso quotidiano, buscamo-lo longe, fora de casa, não cuidando nem dando atenção às suas manifestações e sinais da presença tão próxima como na alegria do trabalho, na amizade dos colegas, na vida dos nossos familiares e sua exigências.
O encontro do tesouro e da pérola não são no entanto o fim, não representam a conclusão da história, mas bem pelo contrário o seu começo, pois é a partir desse encontro que se desenvolvem um conjunto de actividades no sentido de tudo dispensar para adquirir esse tesouro e essa pérola. O trabalhador do campo vende tudo o que tem para adquirir o campo, bem com o comprador de pérolas para adquirir a pérola preciosa e única.
Mas, e ainda que as duas parábolas digam respeito ao Reino e à sua apropriação, há uma diferença substancial, podemos dizer até processual entre as duas, pois a parábola do tesouro centra-se na gratuidade, o Reino é o tesouro encontrado, enquanto que a parábola da pérola se centra no comprador, o Reino é semelhante a um comprador de pérolas.
Neste sentido, não podemos esquecer que o Reino de Deus, de que Jesus nos fala, se nos apresenta como uma oferta, como um tesouro que de facto podemos encontrar quase por acaso no nosso lavrar de campo, nas nossas rotinas quotidianas; mas é simultaneamente um trabalho pessoal, um exercício de busca, de uma pérola mais perfeita face àquelas que já possuímos ou conhecemos.
Como tantos homens o mercador de pérolas move-se voluntariamente em busca, no desejo de encontrar, insatisfeito com o que tem, porque sabe que existe uma pérola mais perfeita, mais preciosa, face à qual todas as outras são relativas. E quando encontra essa pérola, quando por acidente e no seu buscar quotidiano encontra o seu tesouro, dispõe-se a vender tudo para o possuir, a possuir.
Neste processo ambas a parábolas contrastam fortemente com as parábolas do semeador e do trigo e do joio, nas quais prevalece uma dimensão enorme de tempo e paciência. Aqui não há tempo a perder, é necessário arriscar tudo de imediato, pois outro pode apanhar o tesouro e arrebatá-lo das nossas mãos. Contraste inevitável na medida em que a acção nas duas primeiras parábolas se coloca do lado de Deus e nas parábolas do tesouro e da pérola se coloca do lado do homem. E este não tem muito tempo.
Assim, não nos resta outra alternativa senão pedir ao Senhor, e à semelhança de Salomão, que nos dê a ciência e o conhecimento para saber discernir os tesouros que se encontram no nosso caminho, as presenças do Reino que se manifestam no nosso banal quotidiano, e a perseverança de continuar procurando nesse mesmo quotidiano e sem desfalecer a pérola única e perfeita, face à qual tudo o mais é relativo.

sábado, 23 de julho de 2011

Parecer de frei Simão de Távora ao Sermão de São Domingos de frei José de Santa Maria Madalena

Ao deixar o Parecer de frei Simão de Távora, Muito Reverendo Padre Mestre, Presentado na Sagrada Teologia, Consultor do Santo Oficio, à publicação do Sermão do Grande Patriarca São Domingos, da autoria de frei José de Santa Maria Madalena, publicado em Lisboa em 1735 e pregado na igreja do Convento de São Domingos na festa do mesmo Patriarca em 1734, faço-o pela curiosidade da história que refere do Cita Ciluzo.
É uma história, uma fábula, que já mais que uma vez me apareceu nas Celebrações da Palavra no Externato Marista de Lisboa, ainda que sem as referências clássicas que aparecem neste parecer. A sua referência em épocas tão distantes e contextos tão díspares mostra-nos como há valores que são intemporais e fundamentais para a verdadeira formação do homem enquanto homem.

Aprovação do M.R.P.M. frei Simão de Távora da Ordem dos Pregadores, Presentado na Sagrada Teologia, Consultor do Santo Oficio, &c.
Mandou-me Vossa Paternidade Muito Reverenda ler o Sermão, que pregou o Reverendo Padre Presentado frei José de Santa Maria Madalena Director da Venerável Ordem Terceira de nosso Patriarca São Domingos, na festa do mesmo Santo Patriarca, a que assistiu a Venerável Ordem Terceira de nosso Patriarca São Francisco, e me parece muito digno de se imprimir, não só por não conter coisa dissonante à nossa Santa Fé, e bons costumes, mas pela utilidade espiritual, que aos filhos de ambos estes nossos Santíssimos Patriarcas há-de resultar da lição dele: e assim como toda a sua ideia, e assunto com muita novidade, e erudição discursado é dirigido a unir em mutuo amor, e afecto recíproco estas duas Veneráveis Ordens, para lhe não faltar a maior perfeição, que no juízo de São Bernardo na mesma união consiste: Ubi unio, ibi perfectio; assim uniu o autor no seu Sermão o sentencioso dos conceitos com a sólida explicação das escrituras, o elegante do estilo com a agudeza dos pensamentos, a doutrina mais santa com as razões mais convincentes, e mais claras, que me persuado se pode tudo acabar de encarecer com aquele prodigioso sucesso, e singular documento, que refere um douto filho do grande Patriarca Santo Agostinho dera um discretíssimo Cita chamado Ciluzo a seus filhos, para viverem em perpétuo vinculo da mais estreita amizade, mandando-lhe quebrar umas poucas de lanças unidas, e atadas, o que jamais puderam conseguir, e facilmente chegaram a executar em cada uma delas separadas, e desunidas das outras, dizendo-lhes à vista desta natural experiência muito digna de se notar estas misteriosas palavras: Si concordes eritis, validi, invictique manebitis: contrà si desidiis contrahemini, imbecilles eritis, et expugnatu faciles: Conclui o historiador desta sorte: Non potuit Scytha magis scitè rem ob oculos ponere. Do mesmo modo digo eu fazendo juízo deste Sermão, que não só pela sua matéria, mas também pela sua forma não podia o autor magis scité desempenhar o assunto. Este é o meu parecer Vossa Paternidade Muito Reverenda ordenará, o que for servido. São Domingos de Lisboa, 26 de Setembro de 1734. Frei Simão de Távora.”

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Levaram o meu Senhor e não sei onde o colocaram (Jo 20,13)

A memória de Santa Maria Madalena traz à nossa meditação e reflexão a história desta mulher que o Evangelista São João nos diz que permaneceu chorando junto ao sepulcro mesmo depois de o ter visto vazio e de ter ido anunciar aos discípulos que o Senhor Jesus não estava no túmulo.
Para a Igreja Ortodoxa é a Apostola dos Apóstolos e para a Ordem de São Domingos é a grande mestra dos pregadores, daqueles que como ela são convidados a anunciar a ressurreição de Jesus.
E é neste modelo e exemplo que nos confrontamos irremediavelmente com os equívocos de Maria Madalena relativamente ao ressuscitado e as palavras “levaram o meu Senhor e não sei onde o colocaram”. Palavras que em qualquer momento podemos fazer nossas, pois nós muitas vezes também não sabemos onde colocaram o nosso Senhor, também não sabemos como fomos capazes de o deixar levar.
Na escuridão da noite, tal como Maria Madalena, também nós buscamos o Senhor, o corpo morto do Senhor, para lhe prestar uma última homenagem, um último respeito, ou realizar talvez uma autópsia, dissecando nos instrumentos da nossa auto-suficiência o corpo e a história desse homem que loucamente nos quis filhos de Deus.
E nessa noite esbarramos com o sepulcro vazio, sem um corpo para dissecar, e choramos porque perdermos o objecto do nosso desejo, aquele corpo que nos poderia confirmar a satisfação da posse. Esquecemos que neste sepulcro não há corpo, não pode haver um corpo, porque o corpo é sempre um limite, uma possibilidade de propriedade, e com Jesus o corpo é manifestação, é encarnação, passagem de Páscoa libertadora.
E no choro da perda, tal como Maria Madalena, nem nos damos conta que no sepulcro ficaram as ligaduras e o lençol, e que à cabeceira e aos pés se encontram os anunciadores da palavra de Deus, esses seres de luz que são os anjos. Os indícios de um outro corpo, de uma outra presença são-nos imperceptíveis, ainda que presentes e inequívocos, e inevitavelmente manifestados quando interpelados pelo nome que nos foi dado.
Maria! Foi o suficiente para que o choro e o sentimento de perda terminassem, para que se manifestasse essa presença ainda pouco antes irreconhecível e imperceptível. O nome é o novo corpo, afinal uma outra encarnação, a possibilidade de passagem e relação. E é no nosso nome, e nesse apelo ou convite que nos podemos encontrar com o corpo de que somos membros, o corpo que é luz e vida, o corpo do ressuscitado.
Graças ao amor, e à perseverança de se manter frente ao sepulcro vazio, Maria Madalena foi a primeira a ver o Jesus ressuscitado, ela que o julgava perdido e sem possibilidade de encontro. Também nós, como ela e seguindo o seu exemplo, somos convidados a buscar perseverantes na noite o Senhor que julgamos perdido, ou não sabemos onde encontrar. E se o nosso desejo de encontro, o nosso amor, for suficiente para persistirmos na busca, ainda que entre lágrimas, o encontro acontecerá e far-se-á maravilhoso pelo apelo do nome, do nome de cada um de nós.
Como a Amada do Cântico dos Cânticos, que o medo da noite escura e as sentinelas vigilantes da cidade não nos intimide de sair em busca do nosso Amado Jesus.

Meditação do Mistério da Coroação de Maria por frei José de Câmara

Concluímos a apresentação das meditações do Rosário, preparadas por frei José da Câmara para o seu livro “Arte da Perfeição Cristã”, com a meditação sobre o Mistério da Coroação de Nossa Senhora. Aproveitamos para apresentar a forma completa como aparece cada texto, com a enunciação do Mistério, a Meditação, a Dezena e Oração Conclusiva.

Neste Mistério se medita, como a gloriosa Virgem Maria com grandes festas, e júbilos de toda a Corte Celestial foi coroada por seu Filho, de que os Santos receberam glória particular.
Meditação.
Considera, alma minha, o trânsito da Virgem Santíssima em corpo, e alma para o Empíreo; porque passados três dias depois de sua ditosa morte, se tornou a unir sua Santíssima Alma, já gloriosa, e Bem-Aventurada, ao seu Sagrado corpo, que ressuscitando com os quatro dotes de impassibilidade, subtileza, agilidade, e claridade, se levantou do sepulcro com tanta formosura, e beleza, que só os Anjos, e Bem-Aventurados podem conhecer, e alcançar as perfeições soberanas, com que ressuscitou aquele corpo Santíssimo. Oh Virgem, Soberana Mãe de Deus, quem vos vira tão triunfante, e cercada de tanta glória, como a com que vós ressuscitastes, e com que estais nesse Empíreo! Logo que esta Senhora ressuscitou soaram músicas Celestes, cantando todos os Anjos a nove Coros, e com a mesma harmonia soberana, subiu esta Rainha dos Anjos para a glória.
Doutrina é dos Santos Padres, que a este Triunfo tão glorioso, assistiram não só os Anjos, e todos os mais Bem-Aventurados; mas também se achara presente seu querido, e amado Filho. Oh como seria vistosa essa região do ar povoada de tantos Anjos, de tantos Santos do Céu, e do mesmo Rei supremo! Com esta Majestade entrou em corpo, e alma a Rainha dos Anjos no Empíreo, aonde seu querido Filho lhe tinha preparado um sublime trono de glória. Pondera com que agrados a receberia toda a Trindade Santíssima, pois as três pessoas Divinas, de glória a coroaram! Ora quem fora já para o Empíreo para ponderar esta glória! Se neste Mundo não há glória, a que aquela se possa comparar; despreza, alma minha, as glórias deste Mundo, cuida só em conseguir a eterna glória.
A Humanidade Santíssima de Cristo se está vendo, e revendo na formosura de sua Mãe, e o mesmo sucede à Mãe com a formosura do Filho. Oh que bem merecido prémio daquele penoso Martírio, que tiveram os corações do Filho, e mais da Mãe quando se encontraram na rua da amargura! Então se viram rodeados de mágoas, agora se acham cheios de júbilos. O ver a Mãe ao Filho entre tantos tormentos lhe causou a maior dor, e o ver o Filho a Mãe com tanta dor, lhe motivou a maior mágoa: agora porém ver o Filho à Mãe entre tantos júbilos, e a Mãe ver entre tantas glórias a seu Filho lhe motiva o maior prazer. Oh quem se vira já livre das prisões do corpo para ir ponderar perfeitamente estes júbilos, e contemplar estas glórias! Qual será a dos Bem-Aventurados vendo a Rainha dos Anjos, e dos homens tão gloriosa!
Que poderá esta Rainha soberana pedir a Deus, que não alcance? Suplica-lhe, alma minha, com confiança remédio para as tuas necessidades, especialmente para as da alma.
Reze-se um P. N. com dez Ave-Marias, e um Glória Patri.
V. Domine, exaudi Orationem meam.
R. Et clamor meus ad te veniat.
Oremos
Oh Rainha de todos os Cidadãos do Céu: sede servida de aceitar de nós esta Coroa de Rosas, e concedei-nos, Senhora nossa clementíssima, que se acenda em nós tal desejo de vos ver coroada com tanta glória, que nenhuma outra coisa queiramos, nem pretendamos.
R. Ámen.”

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Àquele que tem dar-se-á e terá em abundância… (Mt 13,12)

O facto de Jesus falar em parábolas à multidão e as razões porque o faz não deixam de ser surpreendentes. Como confidencia aos discípulos, há um interesse em que não vejam nem ouçam o que de facto quer dizer e quer mostrar, como se a profecia de Isaías tivesse uma necessidade intrínseca de se cumprir. Contudo, a eles, discípulos, é dado ver e compreender. Mas será que de facto vêem e compreendem o que testemunham?
Algumas passagens dos Evangelhos, e por vezes até alguma exasperação de Jesus, mostram-nos que não foi bem assim, que os discípulos apesar do que viam e ouviam, apesar da intimidade com Jesus e das explicações em particular, não chegaram a compreender verdadeiramente qual era a missão de Jesus. Os seus interesses esbarravam na simplicidade e na humildade da pessoa e mensagem de Jesus.
Contudo, são eles os felizes, aqueles que podem ser invejados porque vêem e ouvem o que muitos quiseram ouvir e não ouviram, quiseram ver e não viram. Esta felicidade e esta disparidade com a multidão que ouve e vê mas não compreende, resultam afinal não do conhecimento, que mostraram tão pouco ter, mas da abertura à pessoa que fala, do acolhimento que manifestaram a Jesus.
E por isso as palavras de Jesus de que se dará àquele que tem e àquele que pensa que tem até isso lhe será tirado. Aquele que tem abertura à sua pessoa, que o acolhe na sua simplicidade e humildade será cumulado dos dons desse acolhimento e dessa abertura, ainda que não compreenda a verdade que está a acolher, mas na qual se integra pelo mesmo acolhimento e abertura. Pelo contrário, aquele que se recusa a acolhê-lo, que se encerra em si mesmo e nas suas concepções, na sua capacidade intelectual de conhecimento, acabará por perder aquilo que congeminou e arquitectou orgulhosamente porque sem a luz do Espírito esse conhecimento levará a um beco sem saída, a um poço sem fundo.
Neste sentido, e como os discípulos, somos convidados a acolher Jesus, a sua pessoa e a sua novidade, com aquilo que comportam de mistério e de incompreensível, de surpresa que nos abre e a um desejo maior. Podemos saber pouco, conhecer miseravelmente, podemos até ser pobres pecadores, que se reconhecem infiéis, mas a disponibilidade para a abertura dá-nos o que buscamos, a compreensão do possível e a graça do querer continuar.

Meditação do Mistério da Assunção por frei José da Câmara

Continuamos a apresentação das meditações do Rosário preparadas por frei José da Câmara para o seu livro “Arte da Perfeição Cristã”. Nesta meditação do Mistério da Assunção da Virgem Maria ao Céu não podemos deixar de reparar na afirmação de frei José da Câmara de que Nossa Senhora comungava todos os dias. Numa época em que a comunhão diária ainda não era comum, bem pelo contrário havia uma certa restrição na frequência do Sacramento, não deixa de ser significativa esta afirmação e de se apresentar, de alguma forma, como uma sugestão para a comunhão diária dos fiéis.

“Meditação
Considera, alma minha, nos doze anos, que a Virgem Santíssima viveu neste Mundo depois da Ressurreição de seu Filho, que fervorosos actos de Amor de Deus exercitaria! Que aumentos de graça receberia! Os quais juntos aos graus de graça, em que foi concebida, e aos que mereceu em todo o mais tempo de sua vida, como estaria cheia de graça aquela Alma Santíssima na hora, em que deste Mundo se ausentou! Exercitou-se nestes doze anos em visitar aqueles Lugares Santos, que seu Santíssimo Filho pisou com o Sagrado de sua plantas: o Presépio, aonde nasceu; o Horto, aonde orou; o Calvário, aonde morreu; o Cenáculo, aonde obrou as maiores finezas; e o Sepulcro, aonde foi sepultado. Em todas estas estações mil vezes beijava aquela terra, alcatifando-a de lágrimas, em que o fogo da devoção, e Amor Divino, que em seu peito ardia, a obrigava a romper. Comungava todos os dias. Oh com que afectos o faria! Oh quem o poderá considerar, para de alguma sorte, conhecer as enchentes da graça, que neste Sacramento recebia! Nestes exercícios, e outros de fervorosa caridade se exercitou a Virgem Santíssima, até que chegou o feliz dia, no qual estando em contemplação altíssima diante de uma Imagem de seu Filho, foram tais os incêndios do Amor de Deus, que não cabendo já tanto amor naquele peito, sentiu querer apartar-se sua Santíssima Alma daquele Sagrado corpo. Apareceu-lhe o Arcanjo Gabriel, dando-lhe a alegre notícia de seu felicíssimo trânsito; e ajuntando-se na sua presença os Sagrados Apóstolos, que andavam dispersos pelo Mundo, de todos se despediu, e a todos consolou.
Pondera bem, alma minha, como seria para os Santos Apóstolos custosa esta ausência, pois ainda que consideravam, que era eterno o descanso, para onde a Rainha dos Anjos se ausentava, não se podiam negar ao sentimento natural da saudade! Porém todo o sentimento suavizou a Virgem Santíssima com a doçura da sua despedida, e com a promessa da sua protecção no Empíreo, para onde sua Santíssima Alma foi levada por Jesus Cristo, seu Filho, na companhia de toda a Corte Celestial. Entrando no Palácio da Glória foi exaltada sobre todos os Coros dos Anjos. Que adorações lhe renderiam os Espíritos Angélicos, e todas as mais almas dos Bem-Aventurados reconhecendo-a, e venerando-a, como Rainha dos Céus, e mais da terra! Chega tua, alma minha, a adorar no Empíreo a esta soberana Senhora, alegrando-te muito de a veres tão exaltada, e dando muitas graças à Santíssima Trindade, que a elevou a tanta glória.
No Empíreo tens aquela Majestade soberana, a quem deves servir por toda a vida para com a sua intercessão chegares a lograr a sua presença, e com ela grande glória. Qual será a que a Virgem Senhora nossa tem no Empíreo? Se os graus da gloria correspondem nos Bem-Aventurados aos merecimentos, que tiveram nesta vida; sendo inexplicáveis os que na sua teve a Virgem Senhora nossa, só quando no Empíreo te achares, alma minha, é que poderás compreender qual é nele a sua glória, porque nesta vida mortal não se pode ponderar; pois por mais, que consideres, ainda é muito maior a glória, que no Céu tem esta Senhora.”
Pede-lhe te alcance de seu Filho auxílios eficazes para que mudando de vida, e perseverando em graça, vás para o Céu ponderar a sua glória."

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Meditação do Mistério do Pentecostes por frei José da Câmara

No seguimento das meditações para os Mistérios do Rosário preparadas por frei José da Câmara para o seu livro “Arte da Perfeição Cristã”, apresentamos hoje a Meditação da Descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos e a Virgem Santíssima reunidos no Cenáculo.

“Meditação
Considera, alma minha, a grande pontualidade, com que Cristo Senhor nosso cumpriu a sua promessa. Tinha prometido aos Sagrados Apóstolos, que os não havia de deixar desamparados, e que para isso em seu nome o Eterno Pai havia de mandar o Espírito Santo para os consolar, e encher de sua Divina graça; e assim se verificou pontualmente, passados dez dias depois da Ascensão de Cristo, estando todos juntos em oração, e esperando, que se cumprisse a promessa. Oh como estariam aqueles saudosos corações desfazendo-se em afectos, e exercitando-se em actos de Amor de Deus, para com eles receberem a visita, que esperavam, pois tinham por Mestra, e Directora a Virgem, Senhora nossa! Todas as almas Católicas são animado Templo de Deus, em que o Espírito Santo habita; mas para que habite nelas é necessário, que no amor de Deus se afervorem. Se queres, alma minha, ser Templo de Deus; se desejas, que o Espírito Santo em ti habite, abrasa-te no Amor Divino, que logo o Espírito Santo sobre ti há-de descer.
Desceu o Espírito Santo sobre os Sagrados Apóstolos enchendo-os de graça Divina. Desceu em línguas de fogo para abrasar aquela línguas, que haviam de pregar pelo Mundo o Evangelho. Oh quem merecera uma faiscazinha deste fogo para no Amor Divino se abrasar, e nos incêndios deste Divino fogo se consumir, e purificar! Considera a glória, consolação, e alegria, que teria a Virgem Santíssima de estar seu Filho na Glória, e de lá mandar o Espírito Santo para efeitos tão excelentes.
É a Virgem Soberana Esposa do Espírito Santo. Oh como encheria o Divino Espírito a alma de sua Esposa de novos aumentos de graça sobre tantos graus de graça, como a Senhora já possuía! Repartiu o Espírito Santo os seus dons aos daquela Sagrada Companhia conforme a disposição de cada um. A Virgem Santíssima foi a que os dispôs, como Mestra, recomendando-lhes a oração, jejuns, e tudo o mais concernente para a devida preparação de Mistério tão soberano: e se a Virgem Senhora Nossa com tão Santos ditames dispôs aos Apóstolos, e Discípulos, como se disporia a si mesma! É certíssimo, que muito mais, do que todos sem comparação alguma. Oh como lhe comunicaria o Espírito Santo, seu Esposo, mais abundâncias de graça, que a todos os mais juntos! Quem vira naquela hora os luzidos resplendores, com que sua Alma brilhava! Mas se tantas luzes são inacessíveis aos olhos mortais, sejam os olhos da consideração os que ponderem estas luzes. Que júbilos, e alegrias se ajuntariam naquele puríssimo Coração, quando viu em um instante tão mudados os Apóstolos, tão crescidos na virtude, e tão cheios de caridade!
Pede ao Espírito Santo, alma minha, por intercessão da Senhora queira descer sobre ti, dando-te a sua graça, e confirmando-te nela para que o sirvas, e ames, e nunca mais o ofendas.”

terça-feira, 19 de julho de 2011

Meditação do Mistério da Ascensão por frei José da Câmara

Continuando a apresentação das meditações para o Rosário preparadas por frei José da Câmara, e que se encontram no seu livro “Arte da Perfeição Cristã”, trazemos hoje à luz a meditação do Mistério da subida de Jesus ao céu.

“Meditação
Considera, alma minha, ao teu Redentor ressuscitado, tratando familiarmente com os seus Sagrados Discípulos, aparecendo-lhes muitas vezes antes, que subisse ao Céu. Quarenta dias gastou primeiro, que se ausentasse. Oh como lhe custava o apartar-se dos homens! Oh como trazia no coração os Discípulos, pois tantas vezes os buscava! Como os iria dispondo para suportarem o rigor da saudade, que eles haviam de ter quando se chegasse a ausentar! Pondera, como para alívio desta se deixou Sacramentado para estar até ao fim do Mundo sempre na nossa companhia! Pode haver amor mais fino! Considera-o bem, alma minha. E como correspondes a tanto amor? Custa tanto a Cristo o ausentar-se dos homens, e ainda ausentando-se ficou no Sacramento do Altar tão verdadeira, e realmente, como está no Céu, para onde subiu! Como são correspondias dos homens tantas finezas? Com sacrilégios, e desatenções, como são as que recebe daqueles, que indignamente o comungam. Quantos haverá destes no Mundo? E serás tu, alma minha, algum deles? Se em alguma ocasião o foste, chora com lágrimas de sangue este agravo; que desatino é o maior, que se pode imaginar, corresponder com sacrilégios a quem por ti obrou tantas finezas.
Considera o como o teu Jesus mandou aos Sagrados Discípulos, que todos se juntassem no Monte Olivete com a Virgem Senhora nossa. Que doçura experimentaria em seu coração amante esta Santíssima Virgem, quando seu Filho lhe deu o abraço da despedida: e ainda que por uma parte a afligiria o rigor daquela ausência, por outra a consolaria o ir seu Filho para a Glória abrir as portas do Céu, que desde o pecado de Adão estavam para os homens fechadas. Lançou Cristo a sua bênção àquele numeroso ajuntamento: Oh como ficariam aquelas almas consoladas! Pondera aos Sagrados Apóstolos vendo subir para o Céu ao nosso Redentor arrebatados, e elevados na sua imensa glória! Oh como ficariam sentidos, quando diante dos olhos se lhe opôs uma nuvem para o não verem subir! Porém a Virgem Santíssima continuou nesta gloriosa visão, sem que lhe servisse de impedimento a nuvem, que se entrepôs. Que alegria seria a daquela Senhora soberana, vendo o glorioso triunfo, com que seu Filho entrou no Céu, cercado de Santos, e acompanhado de Anjos, indo a Senhora Santa Ana reclinada nos seus braços! Que suavidade lhe causaria ver os inexplicáveis obséquios, que no Empíreo, como a Senhor do Céu, e da terra, lhe tributaram os Anjos!
Já tens, alma minha, as portas do Céu abertas para nele entrares; tens os merecimentos de Cristo, que te ajudam a subir; o que falta unicamente, é buscares a estrada, que conduz aos homens para a Glória. É esta a estrada das virtudes; busca esta, deixando já o estado da culpa, que é caminho para o Inferno. Procura com um arrependimento verdadeiro a estrada da perfeição, que é o caminho do Céu.
Pede ao teu Redentor, que por intercessão da Senhora te lance do Empíreo a sua bênção para poderes acertar esta estrada, e caminhares por ela para a Glória.”

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Meditação do Mistério da Ressurreição por frei José da Câmara

Prosseguindo a apresentação do livro “Arte da Perfeição Cristã” de frei José da Câmara, trazemos ao conhecimento público a meditação preparada para o Mistério da Ressurreição de Jesus.

“Meditação
Considera, alma minha, como tendo estado a Alma Santíssima de Cristo trinta e seis horas no Limbo acompanhada dos Santos Padres, que lá estavam, veio unir-se com o corpo, que estava no sepulcro. Tornou a informar aquela clara, e luzida alma o Santíssimo Corpo do teu Redentor, ressuscitando tão belo, e resplandecente, que não é possível explicar a sua grande formosura. Não pode a língua humana expressar a graça, beleza, soberania, e excelência, com que ficou resplandecendo aquela humanidade Santíssima com os quatro dotes gloriosos de impassibilidade, subtileza, agilidade, e claridade. Para de alguma sorte o poderes ponderar, alma minha, hás-de fazer reflexão do como hão-de ressuscitar os Bem-Aventurados. Sabes como? Com o corpo mais luzido que o Sol, mais puro do que o ouro, mais resplandecente que os diamantes mais finos; em fim, nenhuma formosura terrena há-de ter comparação com a formosura do corpo de qualquer Bem-Aventurado. Pois se este há-de ser o traje dos Bem-Aventurados, qual seria o do Rei da Glória no dia da sua Ressurreição!
Com esta formosura inexplicável apareceu Cristo à Virgem Santíssima, acompanhado dos Senhores São Joaquim, e Santa Ana, de seu Esposo São José, e dos mais Santos Ascendentes da Senhora. Considera, que glória seria a do coração da Virgem, que se achava entre tantas aflições, e agonias por ter tão impressos na alma os tormentos de seu Filho, vendo-o agora tão luzido, e resplandecente, imortal, e impassível, que havendo triunfado do pecado, do Inferno, do Demónio, e da morte, recobrara nova, e gloriosa vida! Que colóquios lhe diria! Que afectos lhe renderia! Como se encheria de júbilos aquela alma! Tendo até aquela tão impressa na memória a imagem de seu Filho entre dois ladrões crucificado, agora que o vê tão glorioso entre tanto Anjos, e Santos, que doçuras experimentaria aquele peito soberano! O certo é, alma minha, que foi necessário especial favor do Céu para não acabar esta Mãe de alegria, assim como o tinha sido d’antes para não morrer de pena. Dá os parabéns à Virgem Santíssima de tanta glória; dá-os à Madalena, alma minha, e aos Sagrados Apóstolos, que também não é explicável o contentamento, que tiveram quando viram ao teu Redentor ressuscitado.
Para todo o Mundo foi alegre este dia, porque para todo o Mundo ressuscitou neste dia a sua glória. Mas que desgraça será se, entre tantos prazeres, te achares alma minha, acompanhada de tristezas por ter veres cercada de culpas? Mal poderá haver em ti desta Celestial alegria, se te achares entre as sombras do pecado. Na tua mão está participares das glórias deste dia detestando de todo o teu coração as tuas culpas; para o que te sirva de motivo o que deves ao teu Redentor, que para te merecer uma ressurreição gloriosa a este corpo veio a padecer tanto no Mundo. Por isso se para eu ressuscitar no último dia com a glória, que com os seus trabalhos mereceu para mim o meu Jesus, é necessário detestar a minha má vida, já a detesto, meu Senhor, de todo o meu coração, para alcançar a ressurreição gloriosa, que vós para mim merecestes com a vossa Sagrada morte.
Pede ao teu Redentor, alma minha, por intercessão da Senhora te queira ressuscitar, se pelo pecado estás morta, para que nesta vida gozes da sua Divina graça, e na outra da sua Glória.”

domingo, 17 de julho de 2011

Homilia do XVI Domingo do Tempo Comum

O Evangelho deste domingo continua a trazer à nossa meditação e contemplação o ministério público de Jesus e a sua pregação da Boa Nova através das parábolas, que uma vez mais se alicerçam nos elementos tradicionais da cultura rural. As sementes do joio e do trigo, o grão de mostarda e o fermento, não eram realidades estranhas àqueles para quem Jesus falava.
Contudo, e paradoxalmente, aquilo que parece fácil, extremamente compreensível, transforma-se em algo semelhante a um enigma, transforma-se numa realidade que necessita uma explicação para ser acessível e compreensível. E para o paradoxo ser ainda maior, são aqueles que num primeiro momento poderiam compreender o que Jesus dizia que se mostram mais desconhecedores, que se apresentam mais ignorantes, necessitando por isso em privado de perguntar o significado do enunciado.
As parábolas parecem assim querer revelar uma realidade que necessita maturação, que necessita um olhar transparente e arguto, capaz de ver para além do óbvio e do imediato. E no caso da parábola do trigo e do joio, reforçada pelas parábolas do grão de mostarda e do fermento, essa maturidade e esse tempo não podem deixar de nos servir de pista interpretativa.
A parábola do trigo e do joio coloca-nos assim, e antes de mais, face à nossa capacidade de observação e às nossas expectativas. Os servos, do senhor que tinha feito a sementeira, esperavam um campo pleno de trigo, mas encontram o joio entre o trigo semeado. A realidade e a história têm assim essa capacidade de nos surpreender, de não vir ao encontro das nossas expectativas e seguranças garantidas. Há uma margem de imprevisto, até de uma certa irracionalidade no devir dos acontecimentos e da nossa história. Até mesmo na nossa história com Deus.
Contudo, é face a esse imprevisto que Deus nos convida à confiança e à paciência, a uma atenção ao joio que no meio da seara não impede o trigo de crescer, nem de madurar e frutificar. Apesar do inimigo ter semeado o joio, a semente do mal, o trigo e a semente do bem continuam na terra e continuam com a toda a sua capacidade de crescimento e produção. O joio não afecta o trigo no seu desenvolvimento, uma vez que se lhe mantém externo.
A força intrínseca da semente de mostarda e do fermento na massa, de que se compõem as outras duas parábolas de Jesus, ratifica esta mesma ideia, pois é a partir do seu interior e da sua pequenez que tanto a semente como o fermento desenvolvem a sua actividade e a sua força. Não podemos perder assim a fé e a esperança na capacidade interior de crescimento e alteração, uma vez que tais capacidades não advêm da semente em si mesma mas da sua natureza criada e do seu criador. São como os gemidos inefáveis, imperceptíveis aos ouvidos humanos mas perceptíveis Àquele que tudo conhece e vê no íntimo do coração, porque os aí colocou.
Neste sentido e face à preocupação dos servos, a parábola de Jesus convida-nos a uma confiança, a uma tranquilidade no que diz respeito aos resultados da colheita, pois ela será sempre boa, haverá sempre colheita apesar do joio. Como na parábola dos talentos cada um renderá de acordo com as suas capacidades, na medida em que a isso se dispuser e empregar as suas energias intrínsecas.
Outra realidade face à qual a parábola do trigo e do joio nos coloca é a do tempo adequado para a selecção, ou seja para o exercício da justiça. Jesus garante-nos que será feita uma justiça, uma selecção e separação entre o trigo e o joio. Serão os seus anjos a fazê-la no momento em que a seara estiver pronta para a colheita, ou seja suficientemente enraizada, crescida e madura para ser colhida. Nessa altura não haverá qualquer perigo de se arrancar o joio, pois não trará consigo qualquer pé de trigo mais fraco ou ainda por crescer.
Coloca-se assim a questão da justiça e do desejo de justiça que habita o coração do homem; uma justiça que frequentemente se deseja imediata, rápida e eficaz, mas que nesta rapidez se manifesta apenas como uma fraqueza e uma pura ilusão do coração do homem. Jesus convida-nos, no seguimento da Sabedoria, a uma paciência, a uma bondade e a uma indulgência nessa satisfação de justiça, nesse exercício da separação do trigo do joio. Indulgência e bondade tanto mais necessárias, na medida em que em nenhum momento nos é dito como identificar o trigo e o joio, como é possível exercer a justiça com toda a destrinça.
A explicação que Jesus dá em casa aos seus discípulos deixa algumas questões em aberto, como a não identificação dos servos do Senhor, aqueles que afinal querem arrancar o joio antes do trigo estar maduro, exercer essa justiça para a qual ainda não estão preparados. Ao não fazer a identificação dos servos da parábola, Jesus intima os discípulos a assumirem essa identidade, a assumir que não estão ainda preparados, ou nunca estarão preparados para fazer essa separação e exercer essa justiça.
A sua missão, a tarefa para que são convidados, é de semear, é de cuidar da terra para que a semente lançada frutifique, uma vez que a colheita já tem os seus trabalhadores contratados, os anjos do Senhor. Também a nós, a cada um de nós, é feita a mesma intimação, para que participemos do projecto da Sabedoria de desenvolver a justiça através da construção do humano. A recolha dos frutos, sejam eles os que forem, cabe ao Senhor.

sábado, 16 de julho de 2011

Comunidade do Convento de São Domingos de Lisboa em 1790

Aos dez dias do mês de Outubro de 1790, o Desembargador José Alexandre Cardoso Soeiro, juntamente com o Escrivão José da Silva Machado, apresentou-se no Convento de São Domingos de Lisboa para proceder a uma averiguação das rendas, bens e despesas do mesmo convento, em virtude de uma ordem recebida da Rainha.
O primeiro item a ser respondido diz respeito ao número de frades que habitam no convento, às suas idades e rendimentos pessoais, as chamadas tenças. É graças aos dados coligidos por estes dois funcionários reais, que podemos hoje conhecer a composição da comunidade do Convento de São Domingos de Lisboa por esta data, a idade dos seus membros e os seus rendimentos.
No manuscrito, que se encontra à guarda da Torre do Tombo, podemos perceber que os dados relativos ao Provincial se repetem, facto que também vai aqui assinalado, pois essa repetição obriga a um membro a mais na lista dos habitantes do Convento.

1 – Padre Mestre Provincial frei José de São Vicente Ferrer, Ex-Jesuita, 46 anos.
2 – Padre Mestre Doutor frei José da Rocha, Inquisidor do Santo Oficio e Deputado da Real Mesa da
Comissão, 52 anos.
3 – Padre Mestre frei Agostinho da Silva, 58 anos.
4 – Padre Mestre frei José Malaquias, 76 anos.
5 – Padre Mestre frei Crispim de Santo Tomás, 75 anos.
6 – Padre Mestre frei Bento Cardoso, 72 anos.
7 – Padre Mestre frei Gualter de Santo Tomás, 67 anos.
8 – Padre Mestre frei José de Santo António Silveira, 60 anos.
9 – Padre Mestre frei Bernardo Amado, 63 anos.
10 – Padre Mestre frei Manuel Bruno de Santa Ana, 54 anos.
11 – Padre frei Pedro de Santo Tomás, 54 anos.
12 – Padre Presentado frei Jerónimo do Rosário, 59 anos.
13 – Padre Presentado frei José de São Vicente Ferrer, 46 anos. [Repetição do nº 1]
14 – Padre Presentado frei Francisco da Silveira, 47 anos.
15 – Padre Presentado frei João da Silva, 65 anos.
16 – Padre Presentado frei Miguel da Mota, 65 anos.
17 – Padre Presentado frei Manuel da Família Sagrada, 61 anos.
18 – Padre Presentado frei Jorge José da Gama, 56 anos.
19 – Padre frei Luís de Santa Inês, 72 anos.
20 – Padre frei André de Santa Ana, 61 anos.
21 – Padre frei Joaquim de Santo Tomás, 60 anos.
22 – Padre frei Bernardo do Rosário, 66 anos.
23 – Padre frei Jerónimo Bandeira, 58 anos.
24 – Padre frei Joaquim Vieira, 58 anos.
25 – Padre frei Joaquim de Santa Rita, 52 anos.
26 – Padre frei Joaquim de Santa Rosa, 54 anos.
27 – Padre frei José do Rosário, 58 anos.
28 – Padre frei António de Santo Tomás, 54 anos.
29 – Padre frei António de Santa Ana, 56 anos.
30 – Padre frei Inácio de Nossa Senhora, 54 anos.
31 – Padre frei Francisco de Santo Tomás, 52 anos.
32 – Padre frei Francisco Luís de Nossa Senhora, 47 anos.
33 – Padre frei Jacinto de Santo Tomás, 45 anos.
34 – Padre frei José de Santa Ana, 48 anos.
35 – Padre frei Henrique Creyton, 40 anos.
36 – Padre frei José de São Vicente Ferrer, 36 anos.
37 – Padre frei Francisco Pinheiro, 33 anos.
38 – Padre frei António de São Jacinto, 27 anos.
39 – Padre frei Manuel Ferreira, 29 anos.
40 – Padre frei Francisco Bernardino, 26 anos.
41 – Padre frei António José de Santo Tomás, 30 anos.
42 – Padre frei José Leonardo, 28 anos.
43 – Padre frei António de São Joaquim Almeida, 25 anos.
44 – Padre frei Francisco do Rosário, 26 anos.
45 – Padre frei Filipe da Anunciação, 25 anos.
46 – Padre frei Jerónimo de Santo Tomás, 24 anos.
47 – Padre frei Pedro de Santa Constança, 26 anos.
48 – Padre frei Vicente de Nossa Senhora, 24 anos.
49 – Padre frei Duarte de Santa Clara, 26 anos.
50 – Padre frei António Alberto, 25 anos.

Coristas
51 – Frei Francisco de Santa Joana, 20 anos.
52 – Frei Fernando da Conceição, 20 anos.
53 – Frei Bento Ferreira Narciso, 20 anos.
54 – Frei Custódio de Santo Tomás, 20 anos.
55 – Frei Manuel Inácio, 19 anos.
56 – Frei João Venâncio, 20 anos.
57 – Frei António Sérgio, 20 anos.
58 – Frei Francisco da Conceição, 22 anos.
59 – Frei Joaquim Xavier, 21 anos.
60 – Frei Leocádio do Rosário, 18 anos.
61 – Frei Frutuoso Joaquim de Faria, 19 anos.
62 – Frei Manuel Joaquim Durão, 18 anos.
63 – Frei António Sutil, 20 anos.
64 – Frei João Crisóstomo, 21 anos.
65 – Frei José de Santa Joana, 18 anos.
66 – Frei António José de Carvalho, 20 anos.
67 – Frei José de Santo Tomás Rebelo, 20 anos.
68 – Frei João de Castro, 18 anos.
69 – Frei João Pinto de Queirós, 17 anos.
70 – Frei Sebastião da Madre de Deus, 16 anos.

Conversos
71 – Frei Domingos de Santa Rosa, 72 anos.
72 – Frei Carlos de Santo António, 80 anos.
73 – Frei José do Rosário Lima, 63 anos.
74 – Frei Joaquim de Santa Rosa, 67 anos.
75 – Frei Luís da Conceição, 55 anos.
76 – Frei José de Santa Ana, Ex-Jesuita, 60 anos.
77 – Frei José da Madre de Deus, 34 anos.
78 – Frei Domingos de São José, 33 anos.
79 – Frei João do Rosário, 28 anos.
80 – Frei João de Sousa, 23 anos.
81 – Frei Policarpo dos Reis, 50 anos.
82 – Frei José da Madre de Deus, 35 anos.
83 – Frei António de São Domingos, 22 anos.
84 – Frei Boaventura de Santo Tomás, 27 anos.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Meditação do Mistério da Morte de Jesus na Cruz por frei José da Câmara

Apresentamos a última meditação para os Mistérios Dolorosos composta por frei José da Câmara para o seu livro “Arte da Perfeição Cristã”.

“Meditação
Considera, alma minha, como chegando o teu Redentor ao Monte Calvário tão aflito, cansado, e atormentado, com a Cruz, que levava aos ombros, diante de sua Santíssima Mãe lhe despiram os vestidos, sem respeito à sua modéstia, e recato; e com a maior crueldade, que se pode imaginar, pregaram com duros pregos as mãos, e pés do teu Jesus naquela Cruz, trespassando-lhe a carne, e quebrando-lhe os ossos. Pondera bem que intensas seriam as dores do Filho neste Martírio, e como chegaria ao coração da Mãe este espectáculo.
Pregado na Cruz o levantaram com tanta tirania, que lhe abalaram os ossos todos, saindo rios de sangue com movimento tão violento daquela humanidade tão ferida. Entre dois ladrões o colocaram, padecendo todo o género de tormentos. Na fama blasfemando-o, na honra injuriando-o, nos amigos desamparando-o, e na alma entristecendo-se. Todos os sentidos do teu Jesus aqui padeceram muito pelos excessos, com que os teus sentidos exteriores haviam de ofender a Deus. O sentido do ver padeceu muito, vendo aquela Mãe Santíssima tão aflita, e trespassada na alma com uma espada de dor. O sentido do ouvir padeceu muito ouvindo os opróbrios, que lhe diziam, e blasfémias, com que o injuriavam. No olfacto sofrendo o mau cheiro dos corpos mortos no Calvário. No gosto bebendo fel, e vinagre. No tacto sofrendo aqueles duros, e agudos cravos, que lhe trespassaram as mãos, e os pés, e neles se estava sustentando aquela Santa humanidade. Como diz isto bem com os teus melindres!
Pondera muito de vagar quem é o que padece? Que padece? Por quem padece? E para que padece? Quem padece, é o mesmo Deus. O que padece, são os tormentos mais cruéis, que viu o mundo. Por quem os padece, é por ti, que tão mal lhe pagas tantas finezas. Para que padece, é para te livrar da escravidão do Demónio. Há-de ser possível, alma minha, que custando ao teu Jesus tanto este resgate, ainda hajas de querer voluntariamente o cativeiro do Demónio? Pelo pecado te fazes sua escrava, e cativa; e hás-de buscar este cativeiro depois de estares resgatada a tanto custo? Não seja assim daqui por diante, alma minha; não ofendas mais ao teu Jesus: cuida em emendar a vida, e aproveita-te do muito, que naquela Cruz por teu amor padeceu. Recolhe-te naquelas Chagas, entra naquele coração, já que tens a porta aberta. Pede-lhe mito eficazmente perdão das tuas culpas, que para todas tens remédio naquelas feridas. Promete de nunca mais ofender ao teu Deus, e lava com rios de lágrimas aqueles rios de sangue.
Pondera a espada de dor, que atravessaria a alma daquela Virgem Santíssima, vendo padecer a seu Filho tais tormentos. Não te apartes desta Senhora: pede-lhe com lágrimas, e gemidos te alcance de seu Filho o aproveitares-te do seu preciosíssimo sangue, e do fruto de sua Paixão Santíssima.”

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Meditação do Mistério de Jesus a caminho do Calvário por frei José da Câmara

Apresentamos a meditação proposta por frei José da Câmara para o quarto Mistério Doloroso do Rosário, no seu livro “Arte da Perfeição Cristã”.

"Meditação
Considera, alma minha, ao teu Redentor pelas ruas de Jerusalém afrontado tão ignominiosamente diante de tanto povo. Qual seria a sua aflição com uma Cruz às costas entre dois ladrões, sendo ele a mesma inocência? Mas ainda que estas ignominias lhe feriam tanto o sensitivo, com que ternura abraçaria aquela Cruz, em que havia de dar a vida pelos homens, e remir o género humano? Que palavras ternas lhe diria, pois tão voluntariamente a abraçava! Com que afectos ofereceria ao Eterno Pai aquele sacrifício tão custoso em satisfação dos teus pecados? Assim caminha com aquele Sagrada Lenho aos ombros, e com uma corda ao pescoço! Porque àquela Santíssima humanidade faltavam já as forças naturais, foram inumeráveis as quedas, que naquela jornada padeceu. Pondera bem de vagar este Mistério. Considera ao Rei da Glória todo banhado de sangue, com uma coroa de espinhos na cabeça, que lha não tiraram aqueles algozes, para que fosse mais dilatado o seu tormento.
Era aquela Cruz muito pesada pela matéria, de que era composta; mas ainda que por este princípio o não fosse, bastava levar nela o teu Redentor os pecados de todo o Mundo, para ser inexplicável o seu peso. Com tão grande peso aos ombros um Homem, sobre quem tinham chovido, havia tão poucas horas, tantas tristezas, tantos açoites, tantas bofetadas, e tantas crueldades, como estaria desfalecido? Como havia de poder dar um passo, sem que logo a ele se seguisse uma queda? Caminha, alma minha, em seguimento do teu Redentor; e se os teus pecados fizeram com que dele te apartasses, busca-o pelos sinais daquele sangue, que nas ruas de Jerusalém caiu, e logo o acharás. Aqueles são os vestígios, que ficaram impressos no caminho da salvação: não busques outra estrada, que esta é a estrada corrente, pois nela se divisam tantas correntes de sangue. Considera o estado, em que vai o teu Redentor, sendo as tuas culpas a causa dele chegar a tal estado! Fazes tenção de continuar nos teus pecados, para lhe aumentar mais os tormentos? Queres, que seja mais pesada aquela Cruz pondo-lhe aos ombros mais culpas? Não seja assim, alma minha, à vista do teu Redentor, tão inumanamente ferido: acabem-se já os teus insultos, pois estes são os que lhe ocasionaram tantos danos.
Pondera, que espectáculo seria para aquela Mãe Santíssima, encontrar na rua da amargura a seu Filho neste estado! Que dor trespassaria o coração da Mãe vendo ao Filho tão ferido, e a alma do Filho vendo a Mãe tão magoada! Caminha acompanhando com a consideração ao teu Jesus, e sua Santíssima Mãe, ponderando o muito, que padeceriam até chegarem ao Monte Calvário.
Considera quem é o que padece, que padece, por quem, e para quê. Pede à Virgem Santíssima queira alcançar de seu Filho, que naquela Cruz se crucifiquem os teus pecados, dando-te um verdadeiro arrependimento deles."

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Meditação do Mistério da Coroação de Espinhos por frei José da Câmara

Prosseguindo a apresentação das meditações de frei José da Câmara para o seu livro “Arte da Perfeição Cristã” deixamos a meditação sobre o Mistério da Coroação de Espinhos.

“Meditação
Considera, alma minha, aquela Sacrossanta cabeça do teu Redentor cercada de tão penetrantes espinhos, que lhe chegaram aos ossos, como disse São Bernardo, manando dela tanto sangue, que lhe cegava os olhos, e não se divisava em seu Divino semblante mais que sangue. Que dores padeceria o teu Jesus neste passo? Na cabeça residem os sentidos, como em parte mais nobre, e qualquer moléstia nesta parte penaliza o corpo todo; e atormentando aquela coroa tanto a cabeça do nosso Redentor, se lhe renovaram as dores em todas as mais partes do corpo. Pondera bem estas finezas: pois o coroar-se Deus homem de espinhos, é para te dar a entender, que o padecer por ti lhe tece a mais gostosa coroa. Oferece-lhe também os teus trabalhos, desejando ter ocasiões de padecer muito por ele, que se assim o fizeres, em lugar de coroa de espinhos lhe tecerás uma coroa de flores. Mas se continuas em o ofender, mais espinhos acrescentarás àquela coroa, porque os teus pecados, e os do Mundo todo foram os que deram os espinhos para aquela coroa se tecer, e para aquela Divina cabeça tanto se atormentar.
Com a coroa de espinhos lhe puseram uma cana verde por Ceptro, e vestiram uma Púrpura rota, zombando, e escarnecendo dele, como de Rei fingido, sendo o Rei da Glória. Se qualquer desatenção à tua pessoa, te chega a ferir no coração, como estaria o do teu Redentor, vendo-se diante de todo aquele concurso tão afrontado na honra? Que ignominias, que injurias, e que opróbrios lhe diriam? E nem uma só palavra respondeu o teu Jesus, para te ensinar a sofrer opróbrios, e a padecer afrontas. Oh que pouco o imitas, pois qualquer palavrinha menos atenta, com que no Mundo te tratam, é para ti intolerável, originando tantas malquerenças, tantos ódios, e tantas vinganças!
O intento de Pilatos neste passo era abrandar aquele povo obstinado, oferecendo-lhe aos olhos o teu Redentor tão ferido; mas nem com verem tanto sangue se comoveram à compaixão os corações daquelas feras, antes começaram a clamar: Que morresse crucificado: Que se perdoasse a morte a um ladrão: E que se tirasse a vida ao Autor dela. Pode haver maior temeridade? Pode imaginar-se maior desatino? Há-de ser preferida a vida de um ladrão, tão grande malfeitor na Republica, à vida de um homem Deus, Redentor daquele povo, e de todo o Mundo? Já vejo que me dizes, alma minha, que não pode haver maior barbaridade. Pois que é o que tu obras, quando chegas a ofender mortalmente ao teu Deus? Não estimas mais a criatura, do que o Criador? É certo, que sim: pois sendo Deus o último fim, a que tudo se deve ordenar, tu tiras a Deus a razão de último fim, para na criatura o empregares, estimando mais a criatura do que a Deus. Ora confunde-te das tuas loucuras, conhece os teus desatinos para chorares as tuas culpas, e nunca mais ofenderes a quem por amor de ti padeceu tanto.
Dilata-te em ponderar as finezas, que neste passo obrou Jesus por teu amor. Considera quem é o que padece, que padece, por quem, e para quê. Pede à Virgem Santíssima te assista para poderes meditar tantas finezas, correspondendo a elas com afectos, e não com ingratidões, como até aqui tens obrado.”

terça-feira, 12 de julho de 2011

Meditação da Flagelação de Jesus por frei José da Câmara

Continuamos a apresentação das meditações para o Rosário do livro “Arte da Perfeição Cristã” de frei José da Câmara. Meditamos hoje o Mistério da Flagelação de Jesus.

“Meditação
Considera, alma minha, como despiram dos seus vestidos ao teu Redentor diante de todo aquele concurso, e o ataram a uma coluna. Bem tens aqui que meditar ponderando o que padeceu neste passo a modéstia do teu Jesus. Como estaria injuriada aquela modesta humanidade, vendo-se tão descomposta! Se Adão se envergonhou de se ver despido no Paraíso, como ficaria o teu Jesus oprimido do pejo, estando despido naquele pátio! Escarnecia aquela vil canalha; mas de quem? Daquela humanidade Santíssima. Blasfemava aquele povo ingrato; mas de quem? Daquela Santidade suprema.
Aqui lhe deram cinco mil e tantos açoites com tão inexplicável crueldade, que chegaram a despedaçar aquela humanidade inefável, estando já tão dolorida, e magoada com as violências da prisão desde o Horto até às casas de Annás, e Caifás, e daí com desprezos, e bofetadas levada a casa de Pilatos, e de Pilatos à de Herodes, e de Herodes outra vez a Pilatos. Nesta humanidade tão delicada, e perfeita, mas também tão quebrantada, e dolorida, se empregaram os golpes de açoites com os mesmos instrumentos, com que se castigavam os escravos. Oh Senhor do Céu, quem vos pudera perguntar, qual foi o maior sentimento, que vossa Alma padeceu, se o veres-vos despido, se o seres tão cruelmente açoitado! Mas pondero, que mais vos afligiria ultrajarem a vossa modéstia, despindo-vos, que açoitando-vos, porque ao tempo, que padecíeis os açoites, considero que com o Eterno Pai teríeis estes colóquios: Satisfaça-se, Pai meu, vossa justiça, ainda que em mim se multipliquem os tormentos. Muitos, e muito cruéis são os açoites, que padeço; mas maior é o amor, com que vos amo, e o desejo, que tenho de padecer pelos homens. Veja-vos eu em paz com eles, ainda que sobre mim se torne todo o peso da guerra. Oh amor Soberano! Oh meu Jesus, que mal tenho correspondido a tanto amor!
Com as almas remidas com aquele sangue fala também neste Mistério, oh alma minha, o teu Jesus: Oh almas, quanto me custastes? Considerai bem o estado, em que as vossas culpas me puseram! Ponderai, o como estou nesta coluna! Vós é que sois as escravas, e eu sou o que levo os açoites para satisfazer pelas vossas culpas. Vedes-me tão lastimoso, tão ferido, e tão despedaçado? Pois muito mais me lastimais, feris, e atormentais, quando me chegais mortalmente a ofender. Compadecei-vos, almas, de mim; não me trateis tão mal; não me multipliqueis os tormentos; sejamos amigos, que se assim se aliviarão as minhas penas, e me não custarão tanto estes açoites. Dá atenção, alma minha, a estas vozes, penetrem-te o coração estes ecos.
Pondera quem é o que padece, que padece, por quem padece, e para que padece. Pede à Virgem Santíssima te assista para o saberes meditar, sentindo seus açoites, e mais afrontas, que neste passo sofreu o teu Jesus, sendo tudo grande motivo para chorares teus pecados, e nunca mais o tornares a ofender.”

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Meditação da Agonia no Horto por frei José da Câmara

Prosseguimos a apresentação das meditações para o Rosário preparadas por frei José da Câmara para o se livrinho “Arte da Perfeição Cristã”. Desta feita a meditação do Primeiro Mistério Doloroso, a Agonia de Jesus no jardim das oliveiras.

"Meditação.
Considera, alma minha, ao teu Redentor e Senhor do Universo posto de joelhos no Horto de Getsémani com as mãos levantadas, com os olhos fixos no Céu, e arrasados em lágrimas; com o coração oprimido da maior tristeza, que se pode imaginar, orando ao seu Eterno Pai pelos homens, e representando-se lhe nesta Oração todas as dores, aflições, opróbrios, afrontas e morte que havia de padecer. Oh como seriam veementes as angústias, que oprimiam aquele coração Sagrado, pois caindo o teu Redentor por terra, começou sua humanidade Santíssima a suar gotas de sangue em tanta abundância, que chegaram a correr pela terra! Gotas de sangue, alma minha! Aonde se viu no Mundo tal suor? Se o suor frio denota grande aflição em um corpo humano, que aflição seria a de um corpo, do qual dimanaram suores frios de sangue?
Considera, como tão profunda foi a tristeza, que o nosso Redentor padeceu, que com natural afecto de verdadeiro homem chegou a pedir ao Eterno Pai, que passasse dele aquele Cálice da morte! Mas contudo com vontade muito deliberada, e conforme para dar a vida pelos homens. Pondera, se correspondes assim às finezas do teu Jesus, quando te achas acometida de alguma tribulação ou trabalho. Tudo são em ti impaciências, sem te saberes conformar com a vontade de Deus. Ora aprende a sofrer tribulações daquele exemplar Divino, e quando te vires em trabalhos considera muito de vagar as aflições do teu Jesus no Horto de Getsémani. Podes ter neste Mundo aflição, que seja ao menos leve sombra das que ele padeceu naquele Horto? É certo, que não, porque foram tão veementes, que a suores de sangue o obrigaram: pois se o teu Redentor entre tantas tribulações, como as em que seu coração se via, estava com a vontade do Eterno Pai tão conforme; porque razão nos teus trabalhos te não hás-de conformar com a vontade de Deus?
Considera, que naquela Oração se lhe representaram também os pecados de todos os homens, e os teus, com que o havias de ofender, não te querendo aproveitar do valor daquele sangue. Isto lhe causou novas aflições àquele coração já tão aflito; e estas tuas ingratidões o puseram na última agonia. Retrata, alma minha, os teus erros, vale-te daquele sangue, para conseguires de Deus o perdão das tuas culpas, tendo o mais vivo pesar de o haveres ofendido, e prometendo de nunca mais o tornares a ofender. As angústias de sua Santíssima Mãe, que lhe haviam de causar os tormentos do teu Jesus, foram também grande motivo para as suas aflições; sendo necessário, que para que estas lhe não acabassem logo a vida, descesse do Céu um Anjo a confortá-lo.
Dilata-te, alma minha, em ponderar estas angústias: medita, quem é o que padece, que padece, por amor de quem padece, e para que padece. Pede à Virgem Santíssima que te assista, para com todo o fervor o meditares."

domingo, 10 de julho de 2011

Homilia do XV Domingo do Tempo Comum

A leitura do Evangelho de São Mateus deste décimo quinto domingo do Tempo Comum quase que dispensa uma homilia, pois o Senhor Jesus na intimidade do grupo explica aos seus discípulos o sentido da parábola do semeador que pouco antes tinha proferido e apresentado à multidão junto às margens do lago.
Ainda assim, e tendo presente essa mesma explicação, não podemos deixar de chamar a atenção para alguns pormenores que se prendem com a semente enquanto Palavra e o terreno enquanto coração e vida. No conjunto do texto e face à explicação da parábola feita por Jesus podem passar-nos despercebidos.
Assim, e antes de mais não podemos perder de vista a generosidade de Deus, a forma abundante como semeia a Palavra, sem qualquer preocupação face ao terreno que acolhe a semente. Deus semeador sai a semear a Palavra, a sua Palavra de Vida, que tanto pode cair no caminho, num terreno pedregoso, no meio das silvas ou até num terreno verdadeiramente bom e capaz de produzir o que a semente em si transporta de potencialidade.
Neste sentido e face a tantas situações da nossa vida, às suas fragilidades e limitações, às nossas infidelidades e incoerências, não podemos esquecer que Deus vem ao nosso encontro, que vem semear no campo da nossa vida e do nosso coração, um bocado indiferente ao nosso acolhimento da sua Palavra. Deus é generoso e paciente e por isso não só semeia com abundância mas também semeia ao longo do tempo, esperando e confiando que um dia a sua Palavra e a semente sejam acolhidas, colham raiz, cresçam e frutifiquem.
Ainda, e relativamente à semente, não podemos esquecer também o que nos diz o profeta Isaías, ou seja, que a Palavra não regressa à boca do Pai sem ter produzido os seus frutos, sem ter cumprido a sua missão. A Palavra é sempre fértil, alteradora, provocadora, e geradora de uma nova situação.
Deus pede-nos assim, ou confronta-nos assim com uma disponibilidade e uma atitude que nos pode parecer impossível, pouco compatível com os nossos desejos de realização e resultados, por vezes imediatos. Deus, à sua semelhança, e no nosso trabalho pastoral, catequético, testemunhal, pede-nos essa liberdade de semear sem querer ver os frutos e colhê-los. A nossa missão é semear a Palavra de Deus porque os frutos um dia aparecerão e alguém os colherá.
A falta de prática religiosa das novas gerações e algumas situações familiares que nos são muito próximas são neste sentido provocantes, questionadoras, porque nos interrogam sobre o que falhou ou onde falhámos na tarefa do anúncio da Palavra, para que essas pessoas não estejam hoje a ser fiéis, não sejam cristãos convictos e empenhados, não respondam aos nossos desejos e critérios de pertença comunitária eclesial, depois de tudo o que lhes tentámos ensinar e transmitir.
São realidades muitas vezes angustiantes e desanimadoras, mas face às quais não podemos deixar de ter esperança e confiança na capacidade geradora da Palavra, e ter presente o tempo e cuidados que exige uma semente para que possa criar raízes, deitar rebentos e produzir frutos, ou seja, a responsabilidade do trabalho que nos está entregue e ainda não realizámos cabalmente.
E neste trabalho aparece-nos um grande desafio e uma grande tarefa que é a da preparação do terreno para que a semente possa ser acolhida e frutificar, esse cuidado humano que é necessário para que a Palavra se possa desenvolver. Necessitamos cuidar o substrato humano, com as suas virtudes, para que a partir dele a semente divina possa crescer e viver. Para que haja um bom cristão não se pode abdicar de um homem virtuoso, de um bom cidadão.
Tarefa que não se apresenta fácil, na medida em que nos custa abrir o coração à conversão, disponibilizarmo-nos para mudar a nossa vida no sentido de uma maior fidelidade, coerência, acolhimento da Palavra de Deus com tudo o que ela representa de alterante. E na medida também em que a nossa sociedade e cultura cultiva cada vez mais um conjunto de valores que se nivelam pelo mínimo, pelo mínimo esforço, pelo mínimo sacrifico, pela mínima entrega, pela mínima beleza e bondade.
Contudo, é necessário esse esforço, esse trabalho, que para além de todo o sofrimento do presente será sempre relativo e ínfimo face aos frutos alcançados. Como nos diz São Paulo na Carta aos Romanos, gememos as dores da maternidade, mas tal suportamos na perspectiva da libertação, de que vivemos já as primícias na semente da Palavra acolhida.

sábado, 9 de julho de 2011

Licença e Censuras da Ordem à publicação do livro “Arte da Perfeição Cristã”

A publicação de um livro religioso no século XVIII acarretava as devidas licenças por parte do Santo Oficio, do Paço Real e do Bispo diocesano ou legitimo Prelado Superior. Apresentamos a licença que foi emitida por parte do Prior Provincial da Ordem dos Pregadores para a impressão do livro "Arte da Perfeição Cristã" de frei José da Câmara e as censuras que a fundamentaram e aprovavam.

Censura do M.R.P. Fr. José da Purificação, Mestre na Sagrada Teologia, Académico da Academia Real da História Portuguesa, Ex-Definidor de Capítulo Geral da Ordem dos Pregadores, e Regente que foi dos Estudos do Convento de São Domingos de Lisboa.
M.R.P. Provincial
Manda-me Vossa Paternidade Muito Reverenda que lendo eu o livrinho das Meditações do Santíssimo Rosário, que o Padre Frei José da Câmara deseja por meio da estampa imprimir nos corações, mais que nos bronzes, o informe com o meu parecer. E considerando eu, que o Santíssimo Rosário é o património da nossa Sagrada Religião, como ainda entre os estranhos o reconhece o Doutíssimo Navarro, seu devotíssimo: Rosarium est patrimonium Ordinis Dominicani; e que Nosso Pai São Domingos nos o deixou por herança, não só para lhe colhermos os seus frutos, como temos colhido abundantíssimos de virtudes, de letras, e de honras; mas também para os comunicarmos, e repartirmos pelos Fiéis Católicos: como também vendo eu o Rosal do Santíssimo Rosário, que plantou Nosso Pai São Domingos, tão multiplicado no mundo, que todo ele está cheio de Rosários, como já há tempo bem advertiu o Sapientíssimo João Labbé: Dominicus Rosas inseruit, et Rosariis Orbem implevit; digo com a devida obediência ao preceito de Vossa Paternidade Muito Reverenda que não obstante o terem saído à luz, e actualmente estarem a sair tantos livrinhos de Meditações do Rosário, bem pode sair à luz este livrinho; para que multiplicado na estampa, como se multiplicam Rosários nas Oficinas, fique cheio o mundo deles, e de outros livrinhos, como hoje está cheio de Rosários. Este é o meu parecer: Vossa Paternidade Muito Reverenda mandará o que for servido. São Domingos de Lisboa aos 3 de Outubro de 1738.
Frei José da Purificação.

Censura do M.R.P. Fr. Crispim de Oliveira, Mestre na Sagrada Teologia, Qualificador do Santo Oficio, Pregador da Capela Real do Sereníssimo Senhor Infante D. Francisco, Examinador Sinodal do Arcebispado de Lisboa Oriental, e Prior que foi do Convento de São Domingos de Évora.
M.R.P.M. Provincial
Por ordem de Vossa Paternidade Muito Reverenda vi o livrinho, que o Padre frei José da Câmara quer dar ao prelo, intitulado Arte da Perfeição Cristã, e certamente devo louvar o grande acerto do seu espírito; porque sendo muitas as artes, com que o demónio nos vence, e com que muitos homens se perdem; bem é haverem também muitas, com que o demónio se vença, e com que os homens se salvem: para estes dois fins não há melhores armas, nem caminho tão seguro, como tudo o que aqui se escreve nesta Arte, ou neste livrinho. As armas lá foram forjadas no fogo daquele grande amor, que Maria Santíssima tem aos homens; e umas tais armas, como estas, que inimigos pode haver a quem não vençam? O caminho, também Maria Santíssima o ensinou ao nosso grande Patriarca São Domingos, quando o constituiu venturoso Apostolo do seu Santíssimo Rosário; e caminho ensinado por uma tal Senhora, a quem não há-de meter na Bem-Aventurança? Bastava conter-se neste pequeno livrinho aquele grande brasão, com que a Mãe de Deus quis autorizar a sempre venturosa Família Dominicana, para ser merecedor de uma, e muitas estampas. Isto é o que me parece. Vossa Paternidade Muito Reverenda fará o que for servido. São Domingos de Lisboa, em 14 de Outubro de 1738.
Frei Crispim de Oliveira.

Frei José de França, Mestre em a Sagrada Teologia, Deputado do Santo Oficio, Prior Provincial da Ordem dos Pregadores nestes Reinos de Portugal, &c. Em virtude das presentes, e autoridade de nosso oficio, damos licença ao Padre frei José da Câmara, para dar à estampa um livrinho de Meditações dos Mistérios do Santíssimo Rosário com as suas Indulgências, por nos constar pela aprovação dos Padres Mestres, que o reviram, que será de muita utilidade aos que o lerem. Dada neste Convento de Santa Cruz de Viana, aos 30 de Outubro de 1738.
Frei José de França, Prior Provincial.
Reg. a fol.17.
Frei Simão de Távora, Presentado, Secretário, e Companheiro.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Meditação da Perda e Encontro de Jesus no Templo no livro “Arte da Perfeição Cristã”

Terminamos os Mistérios Gozosos do Rosário do livro “Arte da Perfeição Cristã”, com a meditação da Perda e Encontro de Jesus no Templo de Jerusalém, composta por frei José da Câmara.

“Meditação
Considera, alma minha, a pontualidade da Virgem Santíssima em ir celebrar a solenidade da Páscoa com seu Esposo São José, e com o Menino Jesus, e por esta ocasião o perdeu a Senhora no Templo, sem culpa sua, e sendo seu querido Filho a sua alma, a sua vida, e toda a sua consolação, como ficaria o coração desta Senhora quando se achou sem seu Filho? Lembravam-lhe os cruéis e poderosos tiranos, que tantas diligências tinham feito buscando-o para lhe tirar a vida desde que nasceu; e com o receio de que estes o tivessem achado, tais foram os seus temores, horrores, e amarguras por espaço de três dias, que com seu Esposo o andou buscando, que o não acabar às mãos da dor, foi porque milagrosamente lhe conservou a vida o mesmo Menino Deus. Oh alma minha: quantas vezes terás perdido a Deus, estando fora da sua Graça? E que dor te causou esta perda? Comias, e dormias com todo o sossego! Considera bem a tua loucura! Ainda hoje não sabes se estás fora da sua Graça, e assim descansas? Maria Santíssima estando tanto na sua graça, só porque de vista o perdeu, foi tão grande a sua mágoa e tão excessivo o desvelo de o buscar; e há-de ser possível, que tu, alma minha, tão pouco cuides em buscar a graça de Deus, que não sabes se a perdeste? Ora busca ao teu Deus com o maior desvelo, procura-o com um vivo pesar de o teres ofendido, que só assim o hás-de achar no mesmo instante, em que o buscares.
No Templo achou Maria Santíssima a seu Filho no meio dos Doutores, ouvindo o que diziam, e respondendo ao que lhe perguntavam. Ouvia com paciência, e respondia com discrição; por isso se admiravam todos das suas perguntas, e das suas respostas. Para estar com os homens deixou o Menino Deus a sua Santíssima Mãe! Oh como extremosamente os ama! Mas oh como os homens correspondem mal a este amor! O Menino Deus perdido por não deixar os homens, e os homens perdidos por deixarem a Deus! Não é justo, nem razão, alma minha, que assim seja; não deixes ao teu Deus, nem por quanto há no mundo.
Pondera que alegria seria a da Santíssima Virgem quando no Templo descobriu aquele Tesouro riquíssimo, aquela preciosa Pérola, e aquela soberana Jóia de infinito valor! Quem poderá explicar o prazer que recebeu quando viu aquela desejada Luz, que era a luz dos seus olhos? Nestes ficaram as lágrimas, mas mudou-se a causa delas, porque d’antes nasciam de dor e sentimento; agora nascem de uma consolação Celestial, de uma alegria suma, e de um alívio soberano.
Pede à Virgem Santíssima te alcance de seu Filho graça, para que nunca percas a sua amizade: mas se a desgraça for tanta, que assim suceda, que com uma verdadeira contrição o busques, e com ela logo o aches.”